Jardim do Helton
Um pomar de frutas raras
Mônica Manir | Edição 126, Março 2017
Podia ser Jardim do Éden, mas é Jardim do Helton. Enquanto caminha sobre uma relva densa e felpuda, o produtor rural de 36 anos vai nomeando os exemplares de seu riquíssimo pomar. Ali viceja o ora-pro-nóbis de folha dourada. Acolá, brotam grãos do paraíso. Mais adiante, espalham-se a flor-da-redenção, o santol, a fruta-do-milagre e, lógico, o cão, só que disfarçado de rosa. É a rosa-de-cão, também conhecida como quiabento ou rosa-mole.
Helton Josué Teodoro Muniz. Assim se chama o camponês que percorre animadamente o Sítio Frutas Raras, localizado em Campina do Monte Alegre, a cerca de três horas de São Paulo por estradas de asfalto e chão batido. Mais que um guia da propriedade, ele é mentor, tutor, semeador, patrocinador e porta-voz da maior coleção de plantas frutíferas do país. Em 7 hectares de terra, antes ocupados por pasto, o rapaz agrega 1 300 espécies, 308 delas em mudas à venda. Dessas, 67 são exóticas e 241 nativas. Segundo a edição de 2015 do RankBrasil, livro de recordes nacionais, não existe por aqui nenhum outro pomar tão variado.
Sem pestanejar, o produtor rural consegue dizer de cabeça o nome científico e o popular de todas as plantas que cultiva. Conhece seus dotes ornamentais, seus sabores, seus aromas, seus poderes curativos e as pragas que as açoitam. Também sabe se servem à agricultura familiar, se atraem pássaros ou abelhas e se resistem a secas ou geadas. “Dá para fazer torta, bolo e suco desta aqui”, esclarece, lambuzando-se da carnuda e perfumada Eugenia neonitida, vulgo pitangatuba.
Não muito longe do pomar, no viveiro de mudas, Emilene Muniz está absorta. Sentada num banquinho, retira ervas daninhas que avançam sobre o cutiti e o guapuici. Há uma década, a morena se casou com Helton. O primeiro contato dos dois, fugaz, ocorreu num congresso de Testemunhas de Jeová, em Cesário Lange, região metropolitana de Sorocaba. Numa segunda oportunidade, trocaram endereços. Logo depois, certo de que encontrara um grande amor, Helton mandou uma carta pedindo a jovem em casamento.
Na época ele já mexia com agricultura e, lentamente, Emilene se deixou seduzir pelas botas de borracha, as estantes com sementes e os diários do marido. Desde 1998, Helton anota em pequenos cadernos tudo que planta. Registra igualmente quais as mudas que vingaram e quais sucumbiram. Difícil para a moça é compreender o palavreado científico que a rodeia quando o parceiro recebe a visita de botânicos, agrônomos ou biólogos. Como não ficar zonza ao ouvir coisas do tipo: diclamídea septífraga com cálice formado de sépalas tomentosas, que se abrem e deixam aparecer a corola com verticilo de três pétalas ovadas?
Há algum tempo, Helton desperta a curiosidade acadêmica não apenas por seu vasto acervo frutífero, mas pelo autodidatismo. Ele nunca cursou uma universidade. Nascido em Piracicaba, faltou-lhe oxigênio no cérebro durante o parto, o que resultou num comprometimento neuromotor. O menino só veio a andar com 5 anos. Sua escrita revelou-se vagarosa e a fala, um tanto enrolada, deficiências que exigiram incontáveis sessões de fisioterapia e o atrapalharam bastante na escola. Quando o garoto completou 15 anos, calhou de sua mãe, Elisabete Muniz, deixar o banco onde trabalhava. A família decidiu, então, morar nas terras dos antepassados maternos em Campina de Monte Alegre. “A gente não tinha noção do que um adolescente faria num sítio”, relembra Jorge Muniz, tapeceiro profissional, fotógrafo diletante da natureza e pai de Helton. “Por dom de Deus”, nas palavras do próprio Jorge, o primogênito de dois irmãos começou a colecionar sementes e a trocá-las com leitores da revista Globo Rural. As sementes viraram 600 mudas, mas delas não saíram muitas patacas. “Eram normais. Não valiam, em real, nem a água que a gente gastava para mantê-las”, conta Jorge.
Pouco a pouco, Helton mergulhou em enciclopédias de papel e digitais à procura de espécimes raras, cujas sementes poderiam render mais dinheiro. Nascia, dentro do sítio, o Viveiro de Mudas Saputá, que acabou originando o pomar. “Saputá é um cipó que produz frutas amarelas e doces, do tamanho de um limão-galego. Os pescadores as usavam como isca para pegar pacu no rio Paranapanema”, explica Helton. Desde o advento do viveiro, colaboradores espalhados por todo o Brasil lhe enviam sementes pelo correio e o ajudam a expandir a coleção.
Não bastassem as dificuldades motoras, o frutólogo amarga as agruras da diabete, descoberta aos 16 anos. “Na adolescência, ele não se conformava com o regime – aquele negócio de duas colheres de arroz e três de feijão. Emagreceu 8 quilos em quinze dias”, recorda Elisabete. “Aí eu disse: ‘Come uma pratadona, mas faz um desgaste.’” O primogênito aceitou a sugestão e até hoje capricha no garfo. Retirou apenas o açúcar refinado da dieta. Para “desgastar”, anda pelo sítio junto das cadelas Nina e Polly. O macho Billy morreu recentemente. A fauna caseira ainda conta com a gata Mila e alguns filhotes de beija-flor, que habitam um ninho no fio do chuveiro.
Em 2008, o piracicabano lançou o primeiro livro, Colecionando Frutas, em que descreve 100 espécies e ensina como cultivá-las. No ano passado, publicou Frutas do Mato e finalizou mais um compêndio. O novo título, sobre outras 85 plantas, aguarda patrocínio. Como de praxe, o autor digitou os originais com apenas dois dedos. “Helton é um banco de biodiversidade ambulante”, define Neide Rigo, consultora de gastronomia e criadora do blog Come-se. “Pode reparar: nos bolsos da jaqueta e da calça, ele sempre carrega umas sementes.” O chef crudívoro Eduardo Corassa, que comprou quarenta mudas do viveiro para plantar em Saquarema, no Rio de Janeiro, também elogia o produtor rural. “Somos macacos grandes. Vivíamos num Jardim do Éden, mas nos separamos dele. O Helton faz um trabalho importantíssimo de resgate dessa simbiose.”
No sítio, sentada à mesa de casa, a uns 50 metros da residência do filho, Elisabete abre um tupperware que tirou da geladeira. Dentro dele, encontra-se um doce de corte preparado há dez anos com azeitona-do-ceilão e sem conservantes artificiais. A família o mantém refrigerado para saber até quando vai durar. Por incrível que pareça, continua fresco, como está fresca uma tela concluída por Elisabete no dia anterior. Ela, que se dedica à pintura na esperança de combater uma persistente depressão, é Betty Kolors no Facebook e Betty Arco-Íris para os íntimos. “O Helton tem um trabalho ímpar. Deviam dar diploma de uma pessoa gênio a ele”, diz, sem podar o orgulho.
Meses atrás, seu filho achou uma planta que talvez ainda não esteja identificada. Parece o cambuí-pitanga, cujo sabor se assemelha ao do jambo. Pesquisadores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, ligada à USP, levaram uma amostra da árvore para analisar. “Quem sabe não vira uma Eugenia heltonia…”, conjectura o frutólogo de olhos verde-oliva. Seu nome, aliás, é uma homenagem dos pais a Elton John. Eles adoravam Skyline Pigeon, mas não se lembram de Empty Garden.