O jeitinho brasileiro tem implicações diferentes, de acordo com a classe social. Se implementadas as políticas do bolsonarismo de favorecimento à contravenção no trânsito, o aumento de mortes não se dará no segmento dos donos de carros de luxo CRÉDITO: DIA DA INAUGURAÇÃO DO VIADUTO MINHOCÃO, NO CENTRO DE SÃO PAULO, 25/01/1971_YWANE YAMAZAKI_ESTADÃO
Jeitinho sobre rodas
O bolsonarismo e o trânsito
Roberto Andrés | Edição 154, Julho 2019
Sozinho em seu carro, um homem discursa. Enquanto a imagem tremida mostra as curvas de uma estrada que vai para Santos, a voz ao fundo esbraveja contra os radares eletrônicos, que teriam como único objetivo “roubar o motorista brasileiro” – a palavra roubar com os erres prolongados, no estilo Galvão Bueno.
Quem faz simultaneamente os papéis de narrador, cinegrafista e motorista na peça audiovisual é o então deputado federal Jair Bolsonaro. A data é maio de 2016, quando o ex-capitão, em pré-campanha presidencial, oscilava em torno de 7% das intenções de votos nas pesquisas. O vídeo registra, segundo o autor, uma viagem do Rio de Janeiro a Paraty, feita para denunciar o que ele chama de “indústria das multagens eletrônicas”.
Àquela época, dirigir utilizando o telefone celular ainda era uma infração média, mas o aumento relevante desta prática fez com que, ao final de 2016, ela passasse a ser considerada gravíssima, gerando sete pontos na carteira de motorista. No ano seguinte, utilizar um celular ao volante já era a terceira maior causa de mortes por acidentes de trânsito no Brasil, segundo a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego. Estudos da Organização Mundial de Saúde apontam que a conduta aumenta os riscos de acidentes em cerca de quatro vezes.
Não que Jair Bolsonaro e seus apoiadores estivessem preocupados com estudos. Tampouco causava espanto que um político cuja linha discursiva passava por combater a corrupção e a impunidade cometesse impunemente infrações de trânsito que colocavam a vida de outros em risco, e que ainda publicasse a própria ação na internet.
Durante sua longa campanha presidencial, o ex-capitão seguiu prometendo acabar com a “indústria das multagens”, mas só viemos a saber que ele e sua família eram recordistas em infrações de trânsito recentemente, quando já governavam o país. Segundo apurou a Folha de S.Paulo, a família Bolsonaro acumulou ao menos 44 multas nos últimos cinco anos. Michelle e Flávio, mulher e filho do presidente, superaram vinte pontos em infrações em doze meses, o que deveria resultar na suspensão de suas carteiras de habilitação.
De toda forma, essa informação dificilmente teria algum impacto na campanha, assim como sua revelação recente pouco incomodou o presidente. Este é um fenômeno do bolsonarismo. Se alguma figura do mundo político tradicional (pensemos, por exemplo, em Geraldo Alckmin, Marina Silva ou Fernando Haddad) tivesse seu grupo familiar formado por incorrigíveis contraventores do trânsito – para não falar de amigos e parentes de milicianos –, e ela própria incorresse recorrentemente em infrações graves, é de se imaginar que a exposição pública do fato provocasse algum tipo de problema.
Mas o bolsonarismo constituiu-se, desde sempre, por um “duplipensar” bastante comum em ambientes polarizados, em que as más condutas dos outros são abomináveis, enquanto as dos nossos são menores e justificáveis, isso quando não são vistas como virtudes. Colocando-se como alguém de fora da política (embora esteja nela há décadas), o ex-capitão se dá o direito de atacar a corrupção ao mesmo tempo que comete suas infrações – afinal, quem nunca levou umas multas no trânsito?
O bolsonarismo realiza assim a proeza de, sob o pretexto de atacar a suposta corrupção de uma suposta indústria da multa, liderar uma verdadeira cruzada a favor da contravenção no trânsito. Retirar radares das estradas, aumentar a pontuação máxima da carteira de motorista, eliminar testes de substâncias químicas, extinguir a multa pela ausência da cadeirinha de criança – todas essas medidas favorecem e induzem a condutas que aumentam os riscos de acidentes e mortes.
Até o final dos anos 90, a principal vítima do trânsito brasileiro era o pedestre, reflexo do crescimento acelerado, desigual e precário vivido pelas cidades do país no século passado, em que faltavam desde normas básicas de trânsito até faixas de pedestres, quanto mais políticas eficientes de limitação de velocidade.
A promulgação do Código de Trânsito Brasileiro, em 1997, trouxe uma legislação mais dura, acompanhada nos primeiros anos por campanhas educativas, fazendo com que as mortes em acidentes de trânsito caíssem por alguns anos. As mortes de pedestres reduziram-se quase pela metade entre 1997 e 2000 – passando de 24 112 para 13 643, segundo o Mapa da Violência –, mas a queda não se deu em outras frentes, que necessitariam de medidas mais estruturais, especialmente diante do crescimento continuado da frota.
A partir do início deste século, assistimos à explosão do número de motocicletas e motonetas nas cidades brasileiras. A frota passou de cerca de 4 milhões, em 2000, para quase 27 milhões em 2018. As mortes de motociclistas quase quadruplicaram no período. Este é o segmento com maior número de vítimas hoje no trânsito. O boom de veículos fomentado pelas políticas de incentivo à indústria automobilística a partir do segundo governo Lula contribuiu para que o país atingisse, em 2014, a taxa de 23,7 mortos em acidentes de trânsito por 100 mil habitantes, maior do que tinha em 1997. Nos últimos anos a taxa vem caindo, mas segue como uma das mais altas do mundo.
Após o massacre ocorrido em uma escola pública em Suzano, na Grande São Paulo, o deputado federal Eduardo Bolsonaro afirmou que uma arma “faz tão mal quanto carro”, pois, “para fazer mal, precisa de uma pessoa por trás dela”. Trata-se de um sofisma, já que armas servem somente para atirar, enquanto carros são feitos para que as pessoas se desloquem. O inverso, porém, é verdadeiro: a adoção desmedida de automóveis tem levado a impactos tão nocivos quanto o das armas. Em vez de incentivar a circulação de pistolas, melhor faríamos se restringíssemos a circulação de carros.
No Brasil, esses dois artefatos idolatrados pelo bolsonarismo duelam arduamente pela dianteira no quesito letalidade. As estatísticas de mortes no trânsito e de mortes por armas de fogo vêm há décadas crescendo lado a lado, chegando aos números escandalosos que ocupam os picos dos rankings globais. As políticas públicas que foram capazes de arrefecer essas tendências, como o Código de Trânsito e o Estatuto do Desarmamento, não foram levadas a fundo para que pudessem de fato revertê-las – e agora estão em franca desmontagem pelo governo.
O resumo parcial da década é que, entre 2011 e 2016, morreram, em média, 42 781 pessoas por ano no trânsito brasileiro – 117 vidas ceifadas por dia. Há uma crescente bibliografia que busca mensurar os impactos dessa carnificina, como o estudo das pesquisadoras Silvânia Andrade e Maria Helena Prado de Mello-Jorge, que estimou em 1,3 milhão os anos potenciais de vida perdidos graças a acidentes de trânsito somente em 2013, com uma taxa de 33,8 anos perdidos por óbito registrado. Outro estudo, conduzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada junto à Polícia Rodoviária Federal em 2015, calculou em 40 bilhões de reais por ano o custo total de acidentes de trânsito no Brasil, somando-se gastos hospitalares, perda de produtividade, perdas materiais e institucionais.
Não faltam evidências, demonstradas em pesquisas empíricas em tantos países, de que a aplicação de radares e redutores de velocidade, bem como a punição severa de infratores, têm a capacidade de reduzir acidentes e mortes. Mesmo um documento produzido recentemente pela Polícia Rodoviária Federal, submetido ao Ministério da Justiça e à Câmara de Deputados, apontou que o uso dos equipamentos eletrônicos contribuiu para reduzir em 59% o número de acidentes entre 2014 e 2018.
Aqui, chega-se a um nó do bolsonarismo. Como é possível que a base social motorizada do presidente apoie massivamente medidas que tenderão a aumentar os acidentes e mortes no trânsito e, por consequência, colocar suas vidas em risco? Ou, ainda, como é que um político que vende a ideia de “colocar ordem” nas coisas atue para favorecer a desordem nas estradas e vias urbanas? O nó não se limita ao bolsonarismo: faz parte de uma certa cultura do “jeitinho” bastante cara ao país, com base na hierarquia e na violência, que encontrou no trânsito um locus privilegiado para se expressar.
Quem soube explicitar muito bem as características particulares da dinâmica social do trânsito no Brasil foi o antropólogo Roberto DaMatta, no livro Fé em Deus, Pé na Tábua, publicado em 2010. O livro atualiza as reflexões do autor de Carnavais, Malandros e Heróis (obra conhecida pela análise de rituais brasileiros e do uso arraigado, entre nós, de expressões como “sabe com quem está falando?”) a partir de uma série de entrevistas com motoristas, motociclistas e pedestres, evidenciando como um lugar que deveria ser pensado como igualitário e regido por leis universais torna-se a expressão profunda da hierarquia social, da desobediência às leis, da violência e do jeitinho.
Nas palavras do antropólogo, “se o carro é um sonho e se o sonho é uma prova de ascensão social, então o carro não faz parte deste mundo real de indivíduos iguais que têm o direito de transitar nas ruas, conscientes – por outro lado – não do dever de obedecer às regras do trânsito, mas de um mundo onde os superiores podem (e até mesmo devem) deixar de seguir as regras porque não são otários ou pessoas comuns”. É a esse sujeito, que realizou seu sonho de ascensão social e que não quer se submeter às leis das pessoas comuns, que Jair Bolsonaro se dirige quando diz que não são necessários radares de trânsito, “porque ninguém é otário” para entrar em uma curva em alta velocidade e que, portanto, “não precisa ter um pardal para multar o cara lá”.
A insistência dos bolsonaristas de que não há necessidade de certas regras e fiscalização porque pessoas conscientes respeitam boas condutas é somente mais um traço de um país com alta hierarquia social, em que “respeitar conota opção, sendo mais indicado para quem se pensa como superior”, enquanto “o verbo obedecer é compulsório, sendo, portanto, muito mais adequado para quem aprendeu a se pensar ou é classificado e pensado como inferior”, conforme argumenta o antropólogo.
Como o respeito é opcional, o desrespeito é corriqueiro e justificável. Já o desrespeito dos outros é visto como infração. Em suas entrevistas, DaMatta notou que muitos motoristas apontavam como solução para o trânsito mais fiscalização e punições para infratores, ao mesmo tempo que não consideravam deixar de realizar suas paradas em fila dupla, ultrapassagens em trechos proibidos, furadas de sinal e excessos de velocidade. Aliás, só enxergavam essas ações como infrações quando eram multados, o que em muitos casos gerava um sentimento de injustiça.
O ditado popular que dá título ao livro poderia ser um slogan do bolsonarismo. “Quem tem fé em Deus é aquele mesmo sujeito que, sem dó ou piedade, enfia o pé na tábua”, comentou DaMatta, mas não podemos deixar de notar que, se Deus está acima de todos, a qualquer brasileiro deve ser dado o direito de enfiar o pé na tábua sem a presença de radares que estariam tirando o “prazer de dirigir”, como disse Jair Bolsonaro no programa de Silvio Santos. Com efeito, Fé em Deus, Pé na Tábua soa como a versão mais popular, com pega religiosa, do “Acelera SP”, slogan de campanha em que João Doria advogava pelo aumento de velocidade nas ruas da capital paulista, contra as evidências de que sua redução havia resultado em arrefecimento de acidentes e mortes no trânsito.
As promessas oferecidas pelo automóvel – empoderamento, distinção, velocidade e eficiência nos deslocamentos – só se realizam quando o acesso a ele é restrito. O sonho de deslizar o carango velozmente no asfalto liso, de se mover livremente, de ser notado e demonstrar poder, reduz-se a uma rotina maçante de engarrafamentos em meio a milhares de outros carros indistintos quando a posse de automóveis em uma cidade ou região começa a se universalizar.
Pensemos na São Paulo do início da década de 50, que, com uma população de cerca de 2,1 milhões de pessoas, tinha aproximadamente 70 mil veículos. A maioria da população se deslocava em bonde (cuja malha passava de 600 quilômetros) ou a pé, e alguns poucos privilegiados circulavam em carros próprios, vivenciando ruas desobstruídas na maior parte do tempo, tendo sua posição social reafirmada pela posse do bólido.
Passemos à Belo Horizonte do início desta década, que, com uma população de 2,4 milhões de habitantes, possuía 1,4 milhão de veículos. Dirigir já significava perder horas no trânsito, conviver com estresse e poluição, ver contrariadas as expectativas de deslocamento rápido, e desaparecer em meio à massa ignóbil de motoristas e motociclistas.
A frustração resultante da universalização é inerente ao modelo do automóvel, o que tem a ver com o que economistas chamam de falácias da composição – uma solução que parece boa individualmente deixa de funcionar quando várias pessoas a adotam. De fato, o transporte individual motorizado é um meio ineficiente para o deslocamento em áreas adensadas. No mesmo espaço em que um ônibus transporta confortavelmente 45 pessoas, dois carros transportam, em média, menos de três pessoas. Um estudo feito pelo Instituto de Energia e Meio Ambiente em 2017 aponta que, na cidade de São Paulo, carros tomam 88% do espaço das ruas, mas não transportam nem um terço dos passageiros; enquanto os ônibus, que ocupam 3% das ruas, chegam a transportar 40% dos passageiros. Veículos particulares geram altos índices de acidente e são responsáveis pela maior parte dos poluentes emitidos no trânsito.
Para atender aos interesses relativos ao crescimento da indústria automobilística (que agrada aos governos nacionais pelos efeitos em cadeia na economia, mas também à indústria do petróleo), foram buscadas soluções para os problemas resultantes do crescimento da frota. Uma premissa que se mostrou falsa, mas foi exaustivamente testada, é a de que bastava aumentar o espaço das ruas para abrigar mais carros. Assim, cidades do mundo todo foram tomadas pela febre “rodoviarista” ao longo do século XX, com a construção desmedida de autoestradas, avenidas, túneis, viadutos. A fim de amenizar a frustração dos motoristas, transferiu-se o ônus para o restante da sociedade, degradando os centros urbanos, tornando árdua a vida do pedestre, destruindo árvores e cobrindo rios, levando às alturas a poluição sonora e a do ar, aumentando o tempo no trânsito dos outros modos de deslocamento.
No Brasil, pode-se creditar a vanguarda dessa tendência ao Plano de Avenidas de Prestes Maia – gestado na década de 20 e posto em prática a partir dos anos 30 em São Paulo – ou, ainda, à Brasília de Juscelino Kubitschek, inaugurada em 1960, mas de fato levada a cabo durante o período histórico preferido de Jair Bolsonaro: a ditadura civil-militar iniciada em 1964. A obra mais representativa desse período é o viaduto Minhocão em São Paulo, realizada pelo então prefeito biônico Paulo Maluf. O antigo Elevado Presidente Artur da Costa e Silva, como era oficialmente chamado, e que em 2016 foi renomeado Elevado Presidente João Goulart, atravessa o Centro de São Paulo por 3,5 quilômetros, produzindo grande degradação urbana em toda a região, e hoje é fruto de incansáveis debates sobre sua demolição.
As obras rodoviárias urbanas nunca serviram de fato para resolver os problemas de mobilidade, embora possam ter feito a alegria das construtoras. Aliás, dois anos antes do golpe de 1964, o economista americano Anthony Downs apresentou a Lei Fundamental do Congestionamento, na qual demonstrava que a demanda de espaço por automóveis em grandes cidades é elástica, e que o aumento da oferta tende a ser saturado rapidamente. Em suma, combater engarrafamentos construindo mais pistas é como combater a obesidade alargando o cinto: você só adia a solução do problema, que continua a crescer. A teoria de Downs foi validada por estudos empíricos e hoje é raro encontrar alguma cidade de referência que ainda invista em ampliação de espaço para automóveis. Ao contrário, há diversos exemplos de viadutos e autopistas demolidos nas últimas décadas, devolvendo qualidade ao espaço urbano – e sem notícias de que sua ausência tenha inviabilizado o trânsito.
Na Europa e em algumas cidades do mundo rico na América e na Ásia, políticas de zoneamento territorial e restrição de automóveis nos centros, somadas à boa oferta de transporte público, foram capazes de atenuar o impacto do crescimento das frotas. Ainda assim, resta para as classes sociais que puderam comprar carro nas últimas décadas um sentimento de ter chegado à festa quando ela está no fim. Sentimento que pode ser explosivo quando governos decidem implementar políticas adequadas do ponto de vista do benefício coletivo, mas que soam como afrontas justamente no momento em que as camadas mais pobres puderam ascender socialmente – como ilustra bem a revolta dos coletes amarelos na França contra o imposto climático sobre combustíveis e os radares de redução de velocidade.
No Brasil, setores recentemente motorizados, como a “nova classe média” que pôde comprar um automóvel ou uma motocicleta durante os governos petistas, têm peso na base social bolsonarista. Não custa lembrar que a chegada da esquerda ao governo federal, com Lula, foi um verdadeiro banho de água gelada em todos que lutavam pela redução da desigualdade socioespacial nas cidades brasileiras, calcada na imobilidade urbana e no restrito acesso à terra. Apesar dos esforços dos que atuaram nos primeiros anos no Ministério das Cidades e que lograram aprovar bons marcos regulatórios, a política real foi de espraiamento urbano e segregação social via Minha Casa Minha Vida, incentivo desenfreado aos automóveis na mesma medida de abandono dos transportes coletivos, além de financiamento, via Programa de Aceleração do Crescimento Mobilidade, de novas (velhas) obras rodoviárias. Tudo isso agravou em muito as condições de vida nas cidades, especialmente da população mais pobre, mais sujeita à precarização dos transportes coletivos, aos graves índices de poluição do ar, à explosão de acidentes com motocicletas.
De modo que nunca conseguimos, nem mesmo quando o Brasil decolava como player global, equalizar minimamente a toxicidade do modelo automobilista. A venda exacerbada de carros serviu para arrefecer por aqui os efeitos da crise econômica de 2008, mas essa política de curto prazo apenas postergava a frustração que viria quando a bolha do consumo estourasse, já que não foram levadas adiante políticas para minimizar os impactos do aumento da frota, quanto mais para a transição na direção de um modelo econômico e urbano que priorizasse modos de transporte mais eficientes, justos e sustentáveis. (Justiça seja feita à gestão de Fernando Haddad na Prefeitura de São Paulo que, mesmo com limitações, representou um dos poucos esforços políticos pela agenda de mobilidade urbana nos anos recentes, com o investimento em corredores exclusivos para ônibus e ciclovias, além da redução da velocidade.)
A frota total de veículos no Brasil, classificada pelo Denatran em vinte categorias que incluem automóveis, caminhões, motocicletas, ônibus e tratores, passou de cerca de 30 milhões em dezembro de 2000 para mais de 100 milhões ao final de 2018, um crescimento de 236% em menos de duas décadas. A categoria mais numerosa é a de automóveis, hoje em torno de 55 milhões, enquanto a menor é a de bondes elétricos: das 348 unidades circulantes no início do século, restam apenas 42, de modo que este simpático e ecológico modo de deslocamento está sob risco de extinção no país – na contramão de cidades europeias que têm retomado ou ampliado suas linhas de tramways.
Dois grupos chamam a atenção pela explosão de suas frotas: o primeiro é o das motocicletas e motonetas, que cresceram quase 600% e hoje representam, como vimos, o maior segmento dos acidentes com vítimas fatais; o segundo é o das caminhonetes e utilitários (conhecidos como SUVs, sigla em inglês para Sport Utility Vehicle) que cresceram respectivamente cerca de 2,5 mil % e 197 mil % no período mencionado e somadas já constituem mais de 4 milhões de unidades.
Estes dois grupos encontram-se nas pontas da escala social motorizada no país. Os mais pobres, muitos deles jovens do sexo masculino, buscam na moto comprada a prestação uma fonte de renda ou apenas uma saída para a imobilidade gerada por cidades segregadas e sistemas de transporte coletivo precarizados. Já os mais ricos encontraram uma forma de diferenciação social nos carros enormes, que, embora recebam a alcunha de “utilitários”, raramente são usados para algo a mais do que o transporte de passageiros.
As duas tendências expressam tentativas de se burlar as limitações frustrantes do trânsito real, de maneira similar ao que o sociólogo Francisco de Oliveira chamou de jeitinho e jeitão, em artigo na piauí_73, outubro de 2012. Para o autor, “o peculiar modo nacional de se livrar de problemas, ou de falsificá-los, constitui o famoso jeitinho brasileiro”. Sua tese é de que a classe dominante brasileira “burlou de maneira permanente e recorrente as leis vigentes”, transmitindo esse atributo às classes dominadas. O jeitão dos ricos estaria na raiz do jeitinho dos pobres.
No caso do trânsito, o jeitinho encontrado pelos pobres foi ganhar tempo dirigindo a motocicleta no limite das regras de segurança, utilizando um espaço que não foi destinado ao tráfego – o estreito corredor entre as faixas de rodagem – para passar na frente, em uma dinâmica malandra bastante conhecida entre nós, na qual a mobilidade social só se dá pelas frestas e enfrentando riscos. Jeitinho que foi oficializado quando, em 1997, o presidente Fernando Henrique Cardoso vetou o artigo do Código de Trânsito que proibia a circulação das motocicletas no corredor entre as faixas.
O jeitão do andar de cima, por sua vez, evoca a velha tradição hierárquica nacional ao apostar na diferenciação pelo tamanho do carro (sabe com quem está falando?), o que lhes permite assistir à rua do alto – um pouco como os membros da Corte portuguesa que circulavam no Rio de Janeiro em cadeirinhas sustentadas por escravos. Dribla-se a impotência do trânsito que não anda com a sensação de superioridade e algum ganho prático residual derivado do fato de se possuir um carro robusto, ou truculento, nas disputas corriqueiras por pequenos ganhos nas vias congestionadas.
Ao olhar para a selvageria do trânsito nas ruas do país, em que estão presentes diferenciação social, tentativa de obter vantagens, violência e ressentimento, enxerga-se a expressão concreta daquilo que Oliveira define como a burla brasileira: “uma forma de adotar o capitalismo como solução incompleta na periferia do sistema. Incompleta porque o capitalismo trouxe para cá a revolução das forças produtivas, mas não as soluções formais da civilidade”.
Mas o jeitinho e o jeitão sempre tiveram, no Brasil, implicações muito diversas nos corpos e na vida das distintas classes. Enquanto os mais pobres morrem e lotam leitos de hospitais em números de guerra civil ao tentarem ganhar tempo com suas motocicletas, os mais ricos são protegidos por airbags em seus carrões turbinados. Se as políticas de favorecimento à contravenção no trânsito do bolsonarismo forem implementadas, o aumento de estatísticas de mortes e gravemente acidentados certamente não se dará no segmento dos proprietários de utilitários, caminhonetes e carros de luxo. De todo modo, para se blindar dos números, o bolsonarismo já atua para desqualificar a imprensa e os institutos de pesquisa. Se hoje o alvo é o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, que segundo o presidente “não reflete a realidade”, amanhã serão os dados do Datasus, que enumeram as causas de morte no país.
Como o governo presidido por Jair Bolsonaro realiza pouco em matéria de políticas públicas e medidas para beneficiar a economia, o bolsonarismo precisa alimentar sua base eleitoral recorrentemente com outras entregas, muitas delas no terreno simbólico ou imaginário. Essas entregas buscam propiciar um pequeno gozo cotidiano via tela de celular e devem ser entremeadas por novos fantasmas a serem combatidos. Assim se obtém a sensação de que algo está sendo feito, mas que a tarefa é ainda muito maior.
As compensações de ordem punitivo-imaginárias, que dizem respeito à expurgação de comunistas, gayzistas, ativistas e tantos outros, podem responder bem ao revanchismo que prolifera nos momentos de crise, mas talvez tenham data de validade. Em algum momento as pessoas podem começar a perceber que suas vidas não mudaram muito fora do WhatsApp.
A aposta bolsonarista, que animou o presidente a ir até o Congresso apresentar o projeto de mudança das leis de trânsito, está em extravasar as entregas corriqueiras da mão que segura o celular para a que segura o volante. Para o motorista que não se vê como uma pessoa comum, que se sente tolhido por regras que antes não existiam e roubado pela “indústria das multagens”, para quem os radares são interferências indevidas em seu prazer de dirigir, o sentimento de poder e o gozo recorrentes de conduzir sua máquina com mais “liberdade” – podendo realizar impunemente o dobro de infrações e com menos radares nas ruas – não é pequeno.
Claro que há muito de inconsequência e pulsão de morte nesse gozo, mas isso sempre fez parte de um certo Brasil profundo, para quem Jair Bolsonaro se apresenta como herói de uma restauração anticivilizatória. A bem ver, essa é a essência do projeto bolsonarista: inocular nas pessoas um vírus de individualismo e irracionalidade, baseado no ressentimento e em teorias conspiratórias, obscurantista em seu desdém pelas evidências científicas, em busca do retorno a uma certa ordem – a ordem do mais forte.