ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Jó talvez desistisse
Se queres comer sushi no Leblon, leva Guerra e Paz
Clara Becker | Edição 65, Fevereiro 2012
Letícia começou em voz alta, um, dois, três, quatro, cinco. Perto do dez emudeceu e prosseguiu a contagem na cabeça. Era gentil aquilo, um modo de atenuar a agonia do casal cujas perspectivas de uma mesa fugiam de algarismo em algarismo em direção a um futuro cada vez mais utópico. O veredito chegou com a fatalidade de um muro: “Senhor, tem dezessete mesas na sua frente.”
Vestida num tubinho preto, o batom tão escarlate quanto os sapatos altíssimos, a jovem hostess do Sushi Leblon, restaurante japonês do Rio de Janeiro, registrou a resposta, que lhe foi dada em tom de admirável resiliência: “Pode colocar meu nome, João Martins.” Anotou o nome na terceira folha de sua prancheta, processo acompanhado com olhos de lince por dois clientes que se penduravam em cada um de seus ombros. Buscavam se certificar de que, por uma dessas distrações da vida, João Martins não fosse anotado antes do nome deles, que já mofavam ali desde a última era glacial.
Eram 21h30 de uma quinta-feira de janeiro. Quando saiu de casa, João Martins não tinha ilusões – a fila era certa, disso sabia. Prudente, forrara o estômago com uma maçã. Martins não tem paciência para filas, mas para sua maior desdita, sua mulher, sim. O Sushi Leblon é o restaurante preferido dela, e não só pelas virtudes gastronômicas como também pelo rico espetáculo de antropologia, na sua mais avançada vertente Caras. “Fico reparando nas bolsas, nos sapatos”, conta. Com olhos de Lévi-Strauss, aponta: “Aquelas duas mulheres estão com a mesma sandália. Você percebeu?” João Martins não havia percebido, razão pela qual, para ele, ao contrário do que acontece com sua mulher, o tempo ali não passa voando. “Sou da seguinte opinião: se tem fila, é porque é bom. Se não fosse, as pessoas não se sujeitariam a isso”, resume ela. De fato, muitas se sujeitam. A calçada derramava gente para todos os lados. Alguns se preparavam para uma espera de até três horas.
Geff Ruas, gerente do Sushi Leblon, garante que a fila é democrática. “Tem gente de chinelo, de Chanel, de bermuda, de terno. A gente não tem preconceito.” Será servido qualquer um capaz de desembolsar cerca de 80 reais por uma refeição, provando assim que democracia perfeita não existe. Ruas sublinha que famosos não furam fila. “Nenhuma celebridade chega aqui sem avisar. Eles fazem reserva com antecedência e sabem que a nossa tolerância é de dez minutos. O Aécio Neves nunca chegará aqui depois de 20h30.” Se o ex-governador de Minas não sabia disso, agora está avisado.
Até em casamento a fila já deu. “Eles se conheceram na calçada, ele já na boca de sentar, ela lá atrás”, rememora Ruas. “Como nossos garçons são proibidos de passar bilhetes, o rapaz sugeriu que ela furasse a fila e viesse dividir a mesa com ele. Em uma semana estavam namorando; em três, ela ficou grávida. Agora voltam todos os anos para comemorar o aniversário de casamento.”
Às 22 horas, os clientes já se esparramavam até o meio da rua. “Já teve gente atropelada”, contou um dos manobristas, completando, meio a troco de nada, que “foi até uma atriz quem atropelou”. Apontando para o chão, informa: “Esse bueiro aqui é danado pra prender salto fino. O salto fica e a mulher vai.” Guarda entre suas boas memórias o dia em que conheceu Madonna, além dos diversos Porsches e BMWs que já estacionou, cujas fotos armazena no celular, com ele ao volante, claro.
Letícia estava em plena alternância de suas frases-padrão: “Só mais um minutinho”, “Tem uma mesa que está na sobremesa”, “Já tem uma mesa pagando” – além da sincera, embora dolorosíssima, “Ainda faltam no mínimo cinquenta minutos”. Volta e meia, soltava versões em inglês, para benefício dos vários turistas que achavam a fila tão exótica quanto o Carnaval.
Eram cerca de 23 horas quando a mulher de Martins foi dar um “check na situation”. Horror: eles haviam sido demovidos da terceira para a quinta posição. São dessas coisas duras da vida que precisam ser enfrentadas com a fortitude de um estoico grego envolto em panos. Engana-se quem acaba de condenar o restaurante por favorecimento ilícito. A explicação era casta: duas preferências se apresentaram à porta do estabelecimento, um casal idoso e, logo depois, uma grávida.
Macérrima, com barriguinha de tanque, a gestante trouxera por precaução o atestado de gravidez. Era um gesto desnecessário. Educada, Letícia jamais exige contraprovas e costuma acreditar até em estágio embrionário de gravidez. É necessário registrar que grupos de dez salpicados de um único idoso ou gestante perdem a prioridade. Levar a tiracolo a anciã octogenária, mesmo grávida, é estratégia infrutífera.
O passa à frente das prioridades fez com que duas beldades italianas à beira de uma mesa desistissem. Partiram à cata de pastos menos concorridos. Em dezembro, tinham até tentado reservar, mas o restaurante limita a 40% as mesas para isso, e as reservas já estavam preenchidas até o início de fevereiro. (Quem quiser reservar hoje, final de janeiro, só comerá em março.)
“Senhor João Martins!” O grito chegou aos ouvidos de Martins como dulcíssima melodia. É provável que nem Eurídice, lá no Hades, tenha se comovido tanto ao ouvir os acordes maviosos da lira de Orfeu. Passava das 23h30 e a fome era negra. Martins e a mulher estavam discretamente encostados no poste que carrega as placas das ruas Dias Ferreira e Rainha Guilhermina. Ele aliviava a dor lombar e ela o incômodo do salto.
Sairiam uma hora mais tarde, lançando olhares de compaixão em direção aos desvalidos que ainda aguardavam para entrar. Três australianos, bochechas vermelhas de tanta caipirinha de kiwi com lichia (sim, é verdade), cantavam em voz alta. A amiga que indicara o restaurante avisou que era para chegar cedo, mas dormiram depois da praia e se atrasaram. Àquela altura já não tinham dúvida de que o Sushi Leblon seria excepcional: “Não tem como não ser o melhor sushi do mundo, estamos bêbados e morrendo de fome.”
Restaurateurs, aprendam: fila é meio passo para a glória culinária.