João Grilo no banco dos réus
Tribunal julga o personagem de O Auto da Compadecida
Jonathas Cotrim | Edição 171, Dezembro 2020
No dia 31 de outubro, sábado, o sertanejo João Grilo foi levado a júri popular em Petrolina, no interior de Pernambuco, denunciado por matar duas pessoas: o cangaceiro Severino de Aracaju e seu comparsa, Cabra. O crime foi cometido depois da invasão da cidade de Taperoá. O terrível cangaceiro se fiou na conversa de que João Grilo tinha uma gaita benzida, capaz de ressuscitar pessoas, e quando viu já tinha passado desta para melhor. Cabra, o comparsa de Severino, tombou logo em seguida, esfaqueado por João Grilo e seu amigo Chicó.
Os quatro são personagens da peça O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, e foram os protagonistas da segunda edição do Júri Épico, que simula o julgamento de figuras populares da cultura nordestina. Mistura de tribunal e teatro, o encontro é organizado, para fins didáticos, por duas escolas da região, a Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (Facape) e a Rede UniFTC, com o apoio da OAB de Petrolina, da Defensoria Pública e do Ministério Público de Pernambuco.
Toda a organização é feita por estudantes de direito, orientados pelo professor Anderson Wagner Araújo, da UniFTC, idealizador do projeto. “É uma coisa impensável, em meio à formalidade e ao dogmatismo jurídico, a gente trazer arte e música para mostrar que o direito é vivo, é cultura e toca na nossa sociedade. Não é letra fria, é vida”, diz Araújo.
O Júri Épico deste ano aconteceu num espaço para eventos e contou com a participação do juiz Elder Muniz, da 2º Vara Criminal da Comarca de Petrolina, cinco promotores e cinco defensores, entre eles o criminalista Zanone Júnior, que foi um dos advogados de Adélio Bispo, o homem que esfaqueou o presidente Jair Bolsonaro, em 2018. O júri popular foi escolhido por sorteio entre os integrantes da plateia, composta em grande parte por estudantes de direito. As testemunhas, extraídas também de outras peças de Suassuna, como O Santo e a Porca e A Pena e a Lei, foram interpretadas por atores da companhia Teatro Popular de Arte, que encena as obras do escritor paraibano há três décadas (o grupo tem, inclusive, uma declaração de Suassuna autorizando a montagem de suas peças).
O ator Domingos Soares, de 51 anos, um dos fundadores da companhia de teatro, foi quem deu vida ao réu. Ele demarca a diferença entre seu João Grilo – que Soares encarna há vinte anos – e o criado pelo ator Matheus Nachtergaele, no filme O Auto da Compadecida, de 2000. “O meu João Grilo é mais sério, baseado nas minhas imaginações. Sou nascido e criado no sertão de Pernambuco, é um universo familiar para mim”, afirma o ator, que divide o trabalho no teatro com a rotina de auditor fiscal.
A primeira edição do Júri Épico foi realizada em 2019 para julgar Lampião. O ilustre cangaceiro foi condenado pelos numerosos crimes que cometeu. Na vida real, Lampião nunca esteve num tribunal: foi degolado pelas forças policiais que o capturaram em 1938. Para a edição deste ano – transmitida ao vivo pelo YouTube –, optou-se por um personagem fictício. “João Grilo é um símbolo de muitos nordestinos. A gente pensa nele como um espertalhão, mas é uma pessoa que luta para sobreviver, que entra em conflitos éticos, morais”, diz o professor Araújo. No ano que vem, ele planeja colocar no banco dos réus outro personagem histórico: Frei Caneca, líder de revoltas republicanas e independentistas que foi julgado e fuzilado em 1825.
A preparação do julgamento começa com a elaboração de um roteiro por alunos de direito. O material serve de guia aos juristas e atores, mas sempre deixa margem para improvisos. Dessa vez, aliás, como a pandemia impediu que fossem realizados ensaios, a improvisação foi um recurso importante no tribunal-teatro.
O julgamento de João Grilo começou às nove da manhã, com todos os participantes portando máscaras de proteção. Ao ser interrogado, o réu – que enfrentava seu segundo tribunal, já que na peça é julgado por Jesus, acusado pelo diabo e defendido pela Compadecida (Nossa Senhora) – afirmou que agiu em legítima defesa. “Era muito desigual, eu e Chicó completamente desarmados, com um cangaceiro sanguinário apontando um rifle pro lado da gente”, justificou o sertanejo, alegando que as suas “embrulhadas” foram feitas para tentar sobreviver às ameaças de Severino de Aracaju.
Ouvidas as testemunhas de ambos os lados, entraram em cena os promotores. A tese principal da acusação visou desqualificar a personalidade de João Grilo, que foi caracterizado como uma pessoa manipuladora, mentirosa e trapaceira. “João Grilo não é o melhor representante do povo sertanejo nordestino. A representação do sertanejo passa por dois requisitos essenciais: honestidade e valor ao trabalho. E tudo que ele não tem é honestidade”, argumentou a promotora Cíntia Granja.
Para a surpresa do público, a defesa não discordou da tese principal dos promotores, porém lembrou que o crime em julgamento era apenas o de assassinato. “João tem vários desvios de caráter, vários pontos negativos. O divisor de águas aqui é se João agiu ou não dentro da lei. Eu não posso condenar um homem que defendeu a própria vida da morte anunciada”, alegou o criminalista Zanone Júnior.
Apesar do clima respeitoso da encenação, o confronto entre teatro e tribuna produziu alguns momentos de tensão. Mais de uma vez os personagens extrapolaram os limites do rito jurídico, o que irritou alguns promotores. Um dos membros do MP pediu que o juiz explicasse ao público que a argumentação do defensor Marcílio Rubens havia excedido os limites tradicionais do rito – Rubens se valeu de música e poesia em sua defesa e, ao final, trocou a toga por trajes sertanejos. “Existe um certo duelo de postura, mas algo que eu venho buscando é a harmonia do processo judicial com a arte”, diz Araújo.
O julgamento durou doze horas, com pausas. Por volta de 21h30, o júri popular apresentou sua decisão: João Grilo é inocente. O personagem, comovido, abraçou seus defensores e comemorou recitando a sua reza: “Já fui barco, fui navio, agora sou escaler. Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher. Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré!”
O público aplaudiu e, como já era noite, fogos de artifício explodiram no céu de Petrolina. Depois de enfrentar na peça o julgamento divino, João Grilo agora resolveu suas pendências com a justiça dos homens.
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