ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2010
La grana è mobile!
Cada pobre no palácio / Ganha leite e panetone
Daniela Pinheiro | Edição 47, Agosto 2010
Sentado na poltrona, o governador embolsa um maço de dinheiro e, cortês, agradece; o presidente da Câmara Legislativa armazena pacotinhos de 50 reais na meia; depois de pegar o seu quinhão, um parlamentar abraça os companheiros e dá graças a Deus pelo fruto da roubalheira; a deputada tranca a porta antes de rechear a bolsa preta com a propina – cenas edificantes do escândalo conhecido como “o mensalão do DEM de Brasília”. Passado um ano, o governador conheceu de perto o xilindró, seu vice renunciou ao cargo, o parlamentar do abraço também, o da meia foi cassado, a da bolsinha foi lhe fazer companhia e o DEM do Distrito Federal virou uma assombração.
Os compositores da Nápoles do século XVIII trocariam sopapos pelo direito de musicar esse libreto. Como Brasília não é a pátria da ópera-bufa nem da camorra, ele estava dando sopa por aí, até ser transformado no Auto do Pesadelo de Dom Bosco – Ópera de Rua, em Um Ato. A peça acompanha o julgamento de ladravazes que tungaram as riquezas de um reino imaginário da Idade Média, num trololó de que participam o monarca, o suserano, a bruxa, o burgomestre, o reverendo, uns vassalos e até o grão-vizir. Seu autor, Jorge Antunes, famoso pela capacidade incessante de trabalho, é compositor, regente e professor no Departamento de Música da Universidade de Brasília, além de no momento aventurar-se também como candidato do PSOL ao Senado.
A ópera obedece ao sistema modal, comum aos menestréis medievais e aos repentistas nordestinos, e junta cantoria, repente e desafio. O libreto possui 96 estrofes de versos heptassílabos, com redondilhas, madrigais e galhardas.
Antunes se permitiu alguma licença poética ao transpor a vida real para a arte. Assim, enquanto o governador José Roberto Arruda, ex-Democratas, insistiu em se declarar inocente dizendo que a dinheirama era para comprar panetone, o monarca Xaró Parruda, mais sincero, solta a voz de barítono e, no terreno que lhe cabe, não se furta a revelar sua desfaçatez:
Eu venci de modo fácil,
Eu cheguei como um ciclone.
Cada pobre no palácio
Ganha leite e panetone.
Se na vida real o vice-governador e empreiteiro Paulo Octávio teve de renunciar, o suserano Paul Batávio não vê por que largar o osso:
Sou um grande construtor,
Eu não sou um cafajeste.
Meu reinado é puro amor,
Sou um líder inconteste.
Aos 68 anos, baixo, magro, calvo e com um rabo de cavalo fininho, Antunes tem no currículo mais de duzentas composições, entre sinfonias, peças de câmara, coro e música eletroacústica, tema de seu doutorado na Universidade de Paris-Sorbonne. É de sua autoria a ópera Olga, baseada no livro de Fernando Morais; a obra levou dezoito anos para ser composta e estreou em 2006, no Teatro Municipal de São Paulo.
A ideia de transformar o mensalão do DEM em ópera se impôs naturalmente e exigiu bem menos tempo: apenas um mês. “Eu ficava vendo no noticiário a repetição daqueles videozinhos ordinários, vergonhosos, impressionantes, com cenas patéticas e bufas, e percebi que era um roteiro pronto”, disse Antunes na sala de sua casa.
Como parecesse líquido e certo de que não haveria patrocínio – que empresa pública ou privada se disporia a molhar o pé nessas águas? –, Antunes despachou 200 e-mails e conseguiu a adesão de sessenta colegas, que toparam participar da empreitada sem ganhar um tostão. Os ensaios começaram tímidos, mas, 45 dias depois do primeiro estalo, o Auto do Pesadelo estreou em praça pública, no Setor de Diversões Sul de Brasília. No total foram quatro récitas – uma delas num teatro da Funarte, no dia 21 de abril, dentro das comemorações pelo cinquentenário da capital federal.
E poderia ter ficado nisso, porque a colaboração dos amigos não eliminava o fato de que a montagem custava dinheiro. O que não custava nada era responder a um edital de patrocínio público. Antunes arriscou, e no final de maio recebeu a boa nova: classificado em primeiro lugar, ganhara 120 mil reais para levar a sua ópera de rua a oito cidades-satélites de Brasília, como Ceilândia, Candangolândia e Gama. “O detalhe mais surpreendente é que o dinheiro vem dos cofres do governo do Distrito Federal”, disse. “Fico satisfeito por não ter havido perseguição política.”
Vestido a rigor, batuta na mão, Antunes comanda os músicos da orquestra – todos com chapéu em forma de panetone – e, como dublê de meirinho, vai anunciando a entrada dos acusados. Um deles resolveu imitar o presidente da Câmara Legislativa, Leonardo Prudente, e forrou as meias de grana. A diferença é que o burgomestre Leo Bardo Pró-Dente tem um bom atenuante:
O monarca me chamou,
Fui no canto da sereia.
Um esperto me filmou
E a coisa ficou feia.
Minha conta lá no banco
Tem milhões, está bem cheia.
Só trabalho. Sou bem franco:
Pouca grana pus na meia.
Durval Barbosa, o araponga da câmera escondida, amigo e traidor de Arruda, colaborou com a polícia em troca de redução da pena. Igualzinho ao vassalo Borval da Bóza:
Eu cansei do populista
Apoiando a cachorrada.
Resolvi virar artista,
Cineasta da moçada.
Exibi podres do Rei
E dos sérios de fachada.
Os canalhas dedurei:
Delação bem premiada!
Um dos trechos mais fortes da ópera encena o que caiu na boca do povo como “a oração da propina”, aquele ritual pio em que deputados se enroscam num abraço e rezam, expressando uma gratidão sincera pelas bênçãos auferidas com a corrupção. O deputado Júnior Brunelli, líder da rodinha e da bancada evangélica – além de corregedor da Câmara –, renunciou ao mandato e, em seguida, ingressou com os dois pés no olvido. Merecidamente, visto nunca ter tido nem a metade da graça do reverendo Júnior Embromelli:
Meus irmãos, povo querido,
Sou um grande homem de bem.
Se me chamam de bandido,
Digo amém, amém, amém!
A oração que faço agora
Não me rende um vintém.
Mas se a grana vem na hora,
Digo amém, amém, amém!
Em seu final épico, o Auto do Pesadelo coroa a vontade do Povo (o coro), a qual se materializa juridicamente no parecer de um barítono inclemente, o juiz Vox Própolis.
Antunes imagina que a experiência parlamentar possa ser muito inspiradora e acha que saberia aproveitar uma eventual cadeira no Senado: “É um ambiente fértil para ideias e situações operísticas”, brincou, com toda a seriedade. No momento, para não negar a fama de azougue criativo, ele também rabisca os primeiros compassos de outra ópera, agora sobre um caso político de grande notoriedade nos anos 90. Mas ele encarece: “Por favor, não publique o que é! Já me surrupiaram a ideia de uma ópera sobre o Lampião e outra sobre o Chico Mendes.”
piauí respeita a vontade de suas fontes, mas recomenda que anões do orçamento, proprietários de Fiats Elba, mercadores de segundo mandato e capitalistas de ranário fiquem em dia com o cardiologista e comecem a torcer para que o escândalo do vizinho soe mais musical.