O gênio em campo pela seleção argentina na Copa do México, em 1986: “Com o Diego, eu vou até o fim do mundo, mas com Maradona não vou nem até a esquina”, disse o seu preparador físico Fernando Signorini, que também foi seu amigo, até que, por falta de complacência, foi excluído do entourage maradoniano CREDITO: JEAN-YVES RUSZNIEWSKI_TEMPSPORT_CORBIS_GETTY IMAGES
¡A la mierda! ¡Se murió!
Cada episódio da vida de Maradona parece uma metáfora
Andrés Di Tella | Edição 171, Dezembro 2020
Tradução de Sérgio Molina e Rubia Goldoni
Foi curioso como fiquei sabendo. Hoje de manhã, dia 25 de novembro, pela primeira vez depois de muitos meses eu pus os pés numa livraria e pude comentar com o livreiro minha emoção pelo simples fato de estar lá, dentro de uma livraria, folheando livros… Na hora de pagar, ele me disse: “Parece que o Diego está muito mal.” Respondi, quase no automático: “Mas quantas vezes ele já não morreu? O Diego é imortal.” Nos últimos tempos, anunciaram a morte iminente de Maradona pelo menos duas vezes. Quando o livreiro olhou o portal de notícias na internet, ficou pálido: ¡A la mierda! ¡Se murió! Ficamos os dois emocionados. Um minuto antes, ele tinha me recomendado o último ensaio de Joan Fontcuberta sobre a materialidade da fotografia. Não sei por que, mas achei muito apropriado que a notícia me fosse dada com enorme pesar justamente por aquele eruditíssimo livreiro portenho. Maradona ultrapassava todas as fronteiras.
Tive a sorte de vê-lo jogar no início da temporada de 1979, quando ele começava a despontar no seu primeiro clube, o Argentinos Juniors. Ainda não tinha dado o salto para a fama no Mundial Juvenil no mesmo ano, realizado em Tóquio. Vale lembrar que naquele tempo só se transmitia uma partida de futebol por semana, gravada, na tevê, e raramente era do Argentinos Juniors. Maradona só tinha sido visto em ação por quem frequentava o estádio; para muitos, ele não era mais que um rumor. Naquele domingo eu estava na arquibancada dos visitantes, em meio à torcida do River Plate, no estádio de La Paternal, hoje chamado Diego Armando Maradona. Quando os jogadores entraram em campo, um torcedor me disse, com a soberba river-platense: “Vamos ver esse tal de Maradona. Quero ver ele jogando contra um time grande…” Maradona deu um baile, fazendo dois gols, e o River perdeu para o humilde Argentinos Juniors por 3 a 1.
Entre essa lembrança e a notícia da manhã de hoje, infinitas recordações, infinitas emoções, como o leitor pode imaginar, incluindo alguns encontros mais recentes: estive numa entrevista coletiva lotada de gente no estádio do Boca Juniors, quando Diego voltou à Argentina depois de ser suspenso na Copa de 1994. O que mais me impressionou foi o fato de ele responder a mais de cem jornalistas como se estivesse falando com cada um a sós, no canto de um bar, às três da manhã; criava um incrível efeito de intimidade. Entendi que toda a vida dele tinha transcorrido assim, em público. Na época também colaborei com um amigo que estava realizando um documentário sobre Maradona para a tevê britânica. Fui à Villa Fiorito, a villa miseria, ou favela, onde ele se criou, literalmente, em meio à lama. “Eu vivi num ‘condomínio privado’…”, brincou depois. “Privado de água, de luz, de telefone…” Em mais uma das incontáveis reviravoltas de sua vida cheia de paradoxos, a morte o surpreendeu num elegante condomínio privado num subúrbio rico ao Norte de Buenos Aires.
Estive também no seu mítico dúplex na esquina das ruas Segurola e Habana, no bairro de classe média de Devoto, para onde ele se mudou com os pais assim que foi possível. Essa esquina se tornou lendária, entrando para o léxico popular. Julio César Toresani, um jogador insignificante cuja fama se limita a este incidente, teve um bate-boca com Maradona durante um jogo e depois fez declarações à televisão pondo em dúvida a virilidade do número 10. Maradona o desafiou, dizendo que aparecesse, caso fosse homem, em “Segurola com Habana, sétimo andar”. E arrematou com uma frase que ressaltava a insignificância do jogador: “Toresani é um alfajor de frango: não existe.” Essa criatividade, essa capacidade de conceber numa imagem concreta, uma quimera (o alfajor de frango, caros amigos brasileiros, não existe), me parece digna da melhor poesia surrealista. André Breton definia o impossível recorrendo à figura do “peixe solúvel”.
Sempre admirei a inteligência e a capacidade de invenção linguística de Maradona: há todo um repertório de frases patenteadas por ele que usamos sempre. “Deixou a tartaruga escapar” refere-se a alguém muito lento para reagir ou que deu um cochilo imperdoável. De novo, a imagem é muito concreta e engraçada: Como é possível deixar escapar uma tartaruga? Falando de um indivíduo muito “rápido”, muito “esperto”, no qual não se pode confiar, Maradona sentenciou: “Esse aí fuma embaixo d’água.” Breton também tiraria o chapéu. “Preciso consultar as meninas”, dizia o jogador, quando queria evitar dizer “Não”. É meu dever registrar que ele também disse, com doses iguais de picardia e ternura: “Ganhar do River é como acordar de manhã com um beijo da mãe.” A mais famosa é esta: “Foi a mão de Deus”, sobre o gol de mão que fez contra a Inglaterra, na Copa de 1986. Ele se referia à ajuda divina ou à sua própria mão? Enfim, eu poderia continuar por horas, mas a maioria das frases célebres maradonianas é impublicável, por serem machistas, homofóbicas ou simplesmente chulas. Numa palavra: futebol. “A bola não se mancha”, outra das mais famosas, fala justamente da pureza do jogo, para além de toda a corrupção que cerca o esporte, ou mesmo dos seus próprios pecados, que não foram poucos.
Mas sua inteligência não se limitava às tiradas. Na entrevista que meu amigo fez com ele para o documentário da tevê britânica, em 1994, Maradona foi capaz de se lembrar de cada um dos jogadores da seleção inglesa que ele havia driblado quase dez anos antes – quando ocorreu a épica jogada do “gol do século” –, recordando nos mínimos detalhes, como se ele fosse um algoritmo humano, as características e fraquezas de cada um, se era canhoto ou destro, habilidoso mas lento. A inexplicável velocidade de seu processo mental e físico enquanto executava uma jogada fez Maradona ser o que foi.
O mais difícil de entender para quem não acompanha o futebol ou nunca viveu na Argentina é o fato de a vida extrafutebolística de Maradona ser para nós, argentinos, quase tão importante quanto suas façanhas dentro do campo. Ele tinha pendurado as chuteiras havia quase um quarto de século. Sua última fase como jogador, cheia de casos de doping, terminara com uma sequência insólita de cinco pênaltis perdidos, quando jogava para seu amado Boca Juniors. Nessa última temporada, ele era quase um ex-jogador. Suas intervenções posteriores, já fora das quatro linhas, como técnico, também não foram muito felizes. Seu estrondoso fracasso à frente da seleção argentina – incluindo uma inédita derrota por 6 a 1 contra a Bolívia e culminando no baile de 4 a 0 que levou da Alemanha, o eterno rival dos argentinos nas copas – não lhe valeu glória nenhuma, muito pelo contrário. Então por que Maradona não se eclipsou, como outros grandes ex-jogadores, mas, em vez disso, teve sua lenda aumentada continuamente?
Cada episódio de sua vida, cada incidente de sua existência cheia de aventuras parece ser uma metáfora. O gol do século contra a Inglaterra assim como o gol de mão encerram numa mesma partida tudo o que nós, argentinos, temos de mais genial e vergonhoso. Somos os melhores e os piores, e é impossível separar uma coisa da outra. Havia nele um pouco de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. “Com o Diego, eu vou até o fim do mundo, mas com Maradona não vou nem até a esquina”, disse seu preparador físico Fernando Signorini, que também foi seu amigo, até que, por falta de complacência, foi excluído do entourage maradoniano. O entorno de Maradona! Como é possível que nem um único integrante desse círculo tenha sido uma pessoa normal, apagada e convencional? São todos personagens de novela (de novela brasileira). Sua generosidade espontânea com estranhos, assim como a traição a seus amigos mais fiéis, também parece algo que transcende Maradona e diz respeito a todos nós. Como se ele fosse uma imagem no espelho de todos os argentinos, às vezes lisonjeira, às vezes muito sombria.
Sua suspensão por doping na Copa dos Estados Unidos originou uma de suas frases célebres: “Me cortaram as pernas!” Todos os argentinos se convenceram de que obscuros interesses haviam conspirado para “tirar” Diego – e a Argentina – da Copa que estávamos fadados a ganhar (nem me lembro quem acabou ganhando, hehe). Era mais uma metáfora do Maradona-Argentina. As regras foram escritas para os outros. Maradona era a encarnação do sentimento de excepcionalidade argentina. Assim como ninguém consegue explicar Maradona, ninguém consegue explicar a Argentina.
A própria decadência da seleção em sua etapa pós-maradoniana parece uma metáfora do país e de sua triste decadência, mesmo contando com Messi, o único jogador que poderia tomar o alto trono de Maradona. Mas, justamente, é como se o fantasma de Maradona pesasse sobre os ombros de Messi a ponto de ele nunca conseguir ganhar nada ao jogar com a seleção, como que tocado por um castigo ou uma maldição. Na última Copa, quando Messi fez o gol – um golaço – que classificou a Argentina in extremis, a imagem que se espalhou não foi a dele mesmo, mas a foto de Maradona na arquibancada, comemorando o gol de olhos fechados e com as mãos erguidas para o céu, na semipenumbra, como um Deus.
Acontece que os argentinos querem que Messi seja como Maradona, que brigue com o mundo, seja engraçado, espontâneo, brilhante, louco, em suma, insubmisso. Mas Messi não é Maradona nem nunca poderá ser. Nesse sentido, Messi é como Pelé, sintetizado na famosa frase de Romário: “Calado, Pelé é um poeta.” Se bem que, falando apenas de futebol, não sei se o título de melhor do mundo que Messi manteve por tantos anos é um milagre maior do que a Copa de 1986 e o Scudetto com o Napoli conquistados por Maradona. Mas essa discussão não tem cabimento. E já sabemos que o futebol nunca é “só futebol” (o que seria essa quimera?).
Entre as infinitas imagens de Maradona, cuja vida foi das mais bem fotografadas de todos os tempos, entre as imagens de toda uma vida – a minha – com Maradona, não sei por que decido ficar com a última foto que tiraram dele em campo. Gordo, quase desfigurado, caminhando com dificuldade, mas ainda com algo desafiante no olhar, vestido com o moletom de técnico do Gimnasia y Esgrima, de La Plata. Sua última etapa, à frente de um clube quase condenado de antemão ao rebaixamento, acabou por me mostrar quem ele era. Mas quem ele era? O destino de Diego Maradona é como o símbolo de algo que estou prestes a entender.