Misael Elias de Morais (no centro), ao lado do ventilador pulmonar e de membros de sua equipe: o Nutes é a única instituição de pesquisa do país que tem uma linha de fabricação de protótipos de equipamentos médicos certificada pela Anvisa CREDITO: AUGUSTO PESSOA_2021
Lá no Bodocongó
Um parque tecnológico floresce em Campina Grande, na Paraíba
Fernando Tadeu Moraes | Edição 179, Agosto 2021
Em 2019, o engenheiro eletrônico Misael Elias de Morais bateu à porta do Ministério da Saúde, em Brasília, atrás de recursos para desenvolver novos produtos no Núcleo de Tecnologias Estratégicas em Saúde (Nutes), laboratório que ele coordena na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), em Campina Grande. Morais apresentou várias propostas ao ministério, inclusive a de um novo modelo de ventilador pulmonar. Era um pleito que se justificava: havia poucas opções do produto no mercado nacional, e cerca de metade das compras dos hospitais era feita no exterior. “Não compensa, é mais barato comprar da China”, disse um de seus interlocutores no ministério, comandado na época por Luiz Henrique Mandetta. O engenheiro voltou para Campina Grande com as mãos abanando.
Um ano depois, com a pandemia, o preço dos ventiladores pulmonares explodiu no mercado mundial. A importação deixou de compensar, e a produção brasileira desses aparelhos essenciais nos casos graves de Covid-19 não estava preparada para atender à demanda. Imediatamente, Morais tirou seu projeto da gaveta e nem perdeu tempo recorrendo ao Ministério da Saúde de novo. Montou uma equipe multidisciplinar – engenheiros, técnicos, designers e fisioterapeutas – para produzir os ventiladores pulmonares no Nutes. “Reuni todo mundo que trabalha no laboratório e disse: ‘Precisamos dar uma resposta à sociedade, ajudar da melhor maneira que pudermos’”, conta Morais, de 71 anos. Ele tem o rosto coberto por duas máscaras faciais sobrepostas, que entretanto não escondem sua expressão bonachona, realçada pelos cabelos brancos e ralos.
Os pesquisadores optaram por produzir em Campina Grande a versão mais complexa do equipamento, ideal para ser utilizada nas UTIs, e não a de transporte, mais simples. Como faltavam peças no mercado nacional e não havia tempo a perder, o grupo recorreu às que podia encontrar no comércio da cidade, mesmo que fossem originalmente destinadas a outro tipo de equipamento. Foi assim que uma válvula solenoide, usada para controlar a entrada de ar no motor de carros, acabou sendo adaptada no ventilador para coordenar a inspiração e a expiração dos pacientes.
O primeiro protótipo ficou pronto em um mês, ao custo de 8 mil reais, valor bancado com recursos do laboratório e de professores. “É um custo bem competitivo. Antes da pandemia, um ventilador de UTI custava cerca de 60 mil reais. Depois, virou uma loucura: o preço subiu três, quatro vezes”, diz à piauí o engenheiro biomédico Eduardo Valadares, de 46 anos, professor da UEPB que integra o projeto.
O ventilador do Nutes chamou a atenção do governo da Paraíba, que resolveu investir no projeto. Em meados de julho deste ano, o aparelho encontrava-se nas provas finais para ser submetido à análise da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “É um equipamento de alto risco, que pode causar danos sérios ao paciente, por isso precisamos ser muito criteriosos nos testes de segurança e qualidade técnica”, afirma Valadares. Ele acredita que, mesmo depois do fim da pandemia, haverá uma demanda grande pelo produto. “Existe um déficit histórico de ventiladores nas UTIs do país.” A previsão é de que possa ser comercializado por 30 mil reais – cerca de metade do preço de mercado usual.
A criação dos ventiladores pulmonares não é a única tarefa a que se dedicam atualmente os pesquisadores de Campina Grande. A cidade continua sendo a capital brasileira das festas juninas, mas também é um fervilhante polo de inovação tecnológica do país – um ecossistema de alto impacto, como foi classificada pela Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores. É um atributo aplicado a apenas outros oito municípios brasileiros: quatro capitais estaduais (Porto Alegre, Curitiba, Florianópolis e Recife) e quatro cidades do interior (São José dos Campos, Campinas e São Carlos, em São Paulo, e Santa Rita do Sapucaí, em Minas Gerais). Todas essas cidades se destacaram por criar ambientes que estimulam a inovação e o empreendedorismo tecnológicos. Em pleno Agreste Paraibano, Campina Grande está fazendo a sua parte.
Quem desembarca no modesto Aeroporto Presidente João Suassuna e segue para o Centro de Campina Grande não se dá conta de imediato do dinamismo da segunda cidade mais populosa da Paraíba, com 412 mil habitantes. Os amplos terrenos baldios de vegetação ressequida que ladeiam a estrada logo dão lugar a uma paisagem de atmosfera provinciana, constituída predominantemente de casas e construções baixas. Alguns poucos arranha-céus, boa parte deles de construção recente, quebram a monotonia do horizonte como se sinalizassem que está havendo ali uma nova onda de prosperidade.
Depois da cidade baiana de Feira de Santana, Campina Grande tem o maior PIB entre os municípios do interior do Nordeste com mais de 200 mil habitantes – 8,6 bilhões de reais em 2017 (ano da última pesquisa do IBGE, divulgada apenas em 2020). Isso se deve sobretudo à agropecuária, que tem papel histórico na expansão econômica da cidade, e à atividade industrial bastante variada, que produz desde insumos agrícolas até calçados. Ao todo, estão instaladas na cidade mais de 1,3 mil fábricas, a maioria de pequeno porte. Nos últimos anos, no entanto, as empresas de informática firmaram-se como um dos veios essenciais da economia local.
Há uma razão para se ver tantos jovens nas ruas: Campina Grande é também um movimentado centro universitário. Tem dezesseis instituições de ensino superior, públicas e privadas, com cerca de 50 mil alunos, sendo 2,7 mil deles em cursos de pós-graduação. O ambiente acadêmico é dominado pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), criada em 2002, e pela própria UEPB, fundada em 1966, além de vários centros de pesquisa. Parte substancial do conhecimento produzido neles é aproveitado por empresas nacionais e estrangeiras, principalmente no campo das tecnologias da informação e comunicação – as áreas mais apetitosas no mundo globalizado.
As duas universidades estão instaladas em um bairro situado a dez minutos de carro do Centro da cidade – o Bodocongó, o cenário da inovação por excelência em Campina Grande.
A origem da palavra “Bodocongó” é até hoje motivo de controvérsia entre os paraibanos. A explicação mais difundida é a de que, na língua dos indígenas que habitaram o lugar, significaria “águas que queimam”. Supõe-se que era assim que os kariris se referiam ao Rio Bodocongó, por causa da sua elevada salinidade. Na segunda década do século XX, o rio foi desviado para formar o Açude do Bodocongó, o terceiro da cidade depois dos chamados açudes Velho e Novo, com águas de melhor qualidade, mas que já não conseguiam atender à demanda da cidade. E aqui se tem outra polêmica local, até hoje irresolvida: Por que cargas d’água o governo recorreu às águas de um rio salobro para fazer um açude que não serviria para o consumo doméstico?
O Açude do Bodocongó não foi útil para saciar a sede dos campinenses, mas instalou-se como marco na paisagem e no imaginário da cidade, servindo até às visões mais idílicas, como a de um forró cantado por Jackson do Pandeiro, que iniciou a carreira musical em Cam-pina Grande: Eu fui feliz lá no Bodocongó/Com meu barquinho de um remo só/Quando era Lua, com meu bem, remava à toa/Ai, ai, ai, que vida boa lá no meu Bodocongó.
O açude propiciou sobretudo a expansão da cidade: ao seu redor se instalaram fábricas e numerosas habitações operárias e populares que, com o tempo, também levaram à degradação ambiental das águas. Depois chegaram as duas universidades públicas, com seus campi, e uma penca de instituições, como o Nutes, a Fundação Parque Tecnológico da Paraíba, a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba, o Centro de Inovação e Tecnologia Telmo Araújo. Agora, o bairro foi escolhido para abrigar o novo Parque Tecnológico da Paraíba, que será instalado numa área de 260 mil m2 e terá capacidade para abrigar até 280 empresas. É no Bodocongó que Campina Grande faz sua aposta mais ousada no futuro.
Na origem da prosperidade e da inquietação campinense está a lavoura do algodão, que floresceu na primeira metade do século XX e atingiu o apogeu quando a Segunda Guerra Mundial abalou a indústria algodoeira britânica. No início dos anos 1940, Campina Grande tornou-se o segundo maior entreposto comercial do chamado “ouro branco”, atrás somente de Liverpool, na Inglaterra. Foi um período de grande pujança econômica para a cidade paraibana. O comércio se expandiu fortemente, estabelecimentos bancários acorreram para lá e fábricas foram criadas, o que fez com que a Federação das Indústrias do Estado da Paraíba se instalasse na cidade, onde permanece até hoje – é a única instituição do gênero sediada fora de uma capital.
O espaço urbano sofreu grande transformação. Ruas foram alinhadas, pavimentadas e arborizadas. Novas avenidas foram abertas. Os serviços de coleta de esgoto e abastecimento de água passaram a ser mecanizados. Na região central, ergueu-se um amplo conjunto de prédios públicos e privados art déco – estilo arquitetônico em voga na época, com suas formas escalonadas, aerodinâmicas e fachadas com baixos e altos relevos, pontuadas por figuras geométricas –, que permanece em parte preservado.
Mas o boom econômico durou pouco. No fim da mesma década de 1940, a cultura algodoeira começou a esmorecer, e Campina Grande teve que se preocupar com o seu futuro. “Nesse momento, coincidentemente, havia um grupo de jovens da elite da cidade que compreendeu ser necessário investir em outras possibilidades, além da agricultura”, conta a historiadora Rosilene Montenegro, professora da UFCG. Eram pessoas que se alinhavam às ideias desenvolvimentistas do pós-guerra e resolveram implementá-las em Campina Grande, por meio de investimentos em educação e ciência.
Foram esses homens – engenheiros, economistas e profissionais liberais – que se empenharam na implantação, em 1952, da Escola Politécnica da Paraíba, a primeira do estado, apostando na engenharia civil e na tecnologia para ser a nova rota de desenvolvimento. “Era uma ideia arrojada trazer uma faculdade para uma cidade do Agreste. O prefeito da época inclusive era contra, defendendo que os recursos fossem investidos no ensino básico”, diz Montenegro. Mas o espírito pioneiro logo envolveu a população local, em particular os comerciantes, que fizeram doações ou forneceram produtos de que a faculdade necessitava para se viabilizar.
Desde o início, os fundadores da Politécnica concordaram que não fariam concessão a amizades e compadrios, e que a instituição teria os melhores professores. O mesmo valia para a seleção dos alunos. No primeiro vestibular, em 1954, apenas 6 dos 26 candidatos conseguiram ser aprovados, e foi necessário um novo exame para preencher a turma. O ambiente de ensino exigente logo se converteu em prestígio, atraindo estudantes de todo o Nordeste. Em 1960, a Politécnica foi integrada à recém-criada Universidade Federal da Paraíba (UFPB), com sede na capital do estado.
Um impulso extra para a faculdade campinense veio do engenheiro Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque (1932-2011), um homem tido como visionário pelos pesquisadores paraibanos e que nas décadas seguintes viria a ser reitor da UFPB e presidente do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). “Ele não tinha medo de arriscar, nem deixava de fazer algo que considerasse importante por causa de algum entrave burocrático”, conta seu sobrinho Vicente Albuquerque Araújo, engenheiro civil de 60 anos que acompanhou o tio em parte de suas andanças profissionais. “Não à toa a frase preferida do Lynaldo era: ‘Triste do poder que não pode.’”
Foi Cavalcanti de Albuquerque quem deu início na Politécnica aos cursos de engenharia mecânica e engenharia elétrica, além de fazer uma série de apostas ousadas, que, anos depois, se provariam cruciais para o surgimento do polo tecnológico de Campina Grande.
Uma dessas apostas foi a compra para a Politécnica de um computador, instrumento então raríssimo no Brasil e inexistente em instituições de ensino do Nordeste e do Norte. Em 1967, com a proposta em mãos, Cavalcanti de Albuquerque foi a João Pessoa, para falar com o reitor da UFPB, na época um militar interventor. A ideia foi considerada megalômana e acabou rechaçada. “Se a universidade adquirir um computador um dia, ele vai ser instalado no campus de João Pessoa”, disse o militar.
A solução encontrada por Cavalcanti de Albuquerque foi criar uma entidade de direito privado sem fins lucrativos reunindo professores da Politécnica, que foram atrás dos recursos. “Foi lançada uma campanha de arrecadação que mobilizou a cidade”, conta a historiadora Montenegro. A maior parte da verba reunida veio de duas rifas: uma de um carro e outra de um boi doado por um fazendeiro cujo filho havia se formado na escola.
Em 1968, o IBM 1130 foi recebido na cidade com pompa e circunstância. Lançado três anos antes nos Estados Unidos, o computador ocupou uma sala inteira da Politécnica, mas sua capacidade de processamento era equivalente à de uma calculadora simples dos dias atuais. Mesmo assim, serviu para que os pesquisadores da faculdade prestassem diversos serviços de consultoria na área de engenharia e para instituições públicas, fazendo até guias de recolhimento dos impostos da prefeitura.
O impacto do IBM 1130 foi ainda maior dentro dos muros da Politécnica. “Se não fosse esse computador, não teriam sido criados nos anos seguintes a pós-graduação em engenharia elétrica e o curso de ciência da computação”, diz a historiadora. Como uma profecia que se realizava, essas duas especialidades, que hoje compõem na UFCG um núcleo próprio, o Centro de Engenharia Elétrica e Informática (Ceei), tornaram-se as bases para o surgimento do ecossistema tecnológico da cidade.
Primeiro veio o mestrado em engenharia elétrica, criado em 1970, quando não havia uma pós-graduação sequer no campo da engenharia nos estados do Nordeste e do Norte. O doutorado surgiu nove anos depois. O pioneirismo se aliou à qualidade, e o curso logo ganhou destaque no país, recebendo boas cotações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Na avaliação mais recente, de 2017, galgou o topo nacional ao obter a nota 7, equivalente a um padrão internacional de excelência – patamar só alcançado na área pelas pós-graduações da Universidade de São Paulo (USP), em São Carlos, e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC- Rio).
Na visão do pesquisador Antonio Marcus Nogueira Lima, de 63 anos, um dos mais antigos e destacados docentes da engenharia elétrica da UFCG, três fatores contribuíram para o sucesso da pós-graduação. O primeiro foi a forte presença de estrangeiros. Um levantamento mostra que havia 343 professores de 34 nacionalidades em toda a UFPB no período de 1970 a 1980. Quase metade desse contingente foi absorvido pelos cursos das áreas de ciência e tecnologia do campus de Campina Grande. “Na graduação, eu tive aulas com poloneses e um dos meus orientadores de mestrado era indiano. A vinda de todos esses estrangeiros formou uma massa crítica muito rica e ajudou a dar destaque internacional para o curso”, diz Nogueira Lima.
A boa reputação acadêmica facilitou a realização de parcerias com o setor industrial – e esse foi o segundo fator que contribuiu para a pós-graduação em engenharia elétrica deslanchar. “Essas parcerias se mostraram fundamentais, já que o orçamento da universidade não era suficiente para a montagem de bons laboratórios de pesquisa”, conta o pesquisador. “Com os recursos adquiridos conseguimos construir prédios e montar uma estrutura de pesquisa muito boa, que nos credenciou para realizar mais projetos, numa espécie de ciclo virtuoso.” A relação com o mercado existia desde os tempos da antiga Politécnica, mas se dava sobretudo em nível regional. As coisas mudaram com a Lei de Informática, de 1991, que concedeu incentivos fiscais para companhias do setor de tecnologia investirem em pesquisa e desenvolvimento além de estipular um percentual mínimo a ser aplicado em parcerias com instituições públicas das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
O terceiro motivo, aponta Nogueira Lima, foi a criação da UFCG, em 2002, pois garantiu que a instituição tivesse autonomia para tomar decisões e agilizar processos. Até então, ela era parte da UFBP. “Se eu quisesse estabelecer um projeto maior com alguma empresa eu precisava ir até João Pessoa e disputar uma audiência com o reitor da Universidade Federal da Paraíba. É visível como, a partir de 2002, a quantidade de parcerias e projetos com o setor produtivo cresceu.”
A primazia acadêmica do curso de engenharia elétrica ganhou, no ano passado, mais um indicador a justificá-la. Uma pesquisa divulgada na revista científica Plos Biology – publicada pela Public Library of Science (Plos), dos Estados Unidos – apontou os nomes dos 2% dos pesquisadores mais citados na base de dados Scopus, o maior banco de citações da literatura científica com revisão por pares. Na lista, havia quatro pesquisadores da UFCG – três pertencem ou pertenceram ao Departamento de Engenharia Elétrica. Nogueira Lima é um deles.
Com o envolvimento cada vez maior de docentes da engenharia elétrica na área de processamento de dados, estimulados pela instalação do IBM 1130, surgiu a necessidade de um curso específico de informática. Em 1977, foi criado o bacharelado em ciência da computação. “Desde 2008, nós fazemos um trabalho de pescaria nas escolas por meio da Olimpíada Paraibana de Informática, aplicada a partir do ensino fundamental”, diz o cientista da computação Tiago Massoni, de 43 anos, coordenador do curso. Esses alunos descobertos na olimpíada já chegam com uma bagagem maior e costumam se destacar no curso. Não raro são contratados por empresas ainda na graduação, muitas delas estrangeiras. “A Microsoft já veio várias vezes: organiza um encontro, faz umas entrevistas e contrata cinco, seis pessoas. No Spotify, que tem sede na Suécia, a gente brinca que existe uma colônia de Campina Grande. Já foram trabalhar lá nove ou dez alunos nossos.”
Empresas de software recorrem também à expertise do departamento de computação para solucionar suas demandas tecnológicas. Para Massoni, isso permite que o curso seja muito prático, o que ele considera “o maior diferencial”. Não só as disciplinas são pensadas com esse objetivo como os estudantes se envolvem em projetos concretos, aprendendo também na prática.
Massoni estima que 90% dos 850 alunos do bacharelado em ciência da computação estejam atuando na criação de algum produto. Um desses projetos, que envolveu cerca de cinquenta estudantes, foi o desenvolvimento do sistema nacional de inquéritos eletrônicos da Polícia Federal, implantado em 2016. “Agora nós estamos trabalhando para adicionar inteligência artificial a esse sistema. Dessa forma, será possível, por exemplo, fazer sumários de inquéritos, cruzar todo tipo de informação e encontrar documentos similares, dando maior celeridade às investigações”, diz ele. Atualmente, os cursos em engenharia elétrica e ciências da computação respondem por cerca de 50% da produção científica da UFCG em congressos internacionais e 25% das publicações da universidade em periódicos internacionais.
Do Ceei saem também algumas das patentes que têm dado à UFCG uma posição de destaque nos rankings nacionais. Em 2017, 2018 e 2019 (último ano divulgado), a universidade ocupou o segundo lugar entre instituições de ensino e empresas de todo o país que mais depositaram patentes de novos produtos e processos – 70, 82 e 90 respectivamente. Nas duas últimas edições, a lista foi encabeçada pela UFPB.
As relações entre esses dois cursos e o setor produtivo chegou a um ponto alto com a criação do Virtus, um núcleo de pesquisa, desenvolvimento e inovação fundado em 2015 com recursos da universidade. O espírito do local já se revela na arquitetura do prédio, com sua ampla fachada retangular de vidros espelhados, típica dos edifícios corporativos. “A gente brinca que o contrato com uma empresa começa a ser fechado na hora que ela vê o prédio”, diz o cientista da computação Hyggo Almeida, de 40 anos, diretor do Virtus, que é vinculado à UFCG.
O núcleo surgiu da ambição de intensificar a relação com a indústria, algo que não seria possível com o modelo tradicional de laboratório universitário. Na descrição de Almeida, o Virtus mantém a essência da universidade pública, pois todos os projetos têm a participação de alunos e professores, que precisam deixar algum tipo de retorno para a instituição, “mas segue um modelo inspirado no mundo corporativo”, como a busca por uma gestão profissional dos projetos. Esse sistema dá mais segurança para as empresas investirem. “Todos os passos, desde o contato com o cliente até a entrega do produto, são padronizados e documentados. As empresas, naturalmente, adoram, e isso acaba se tornando um grande diferencial nosso em relação a outras universidades.”
A procura, de fato, é grande. São conduzidos no Virtus aproximadamente quarenta projetos nas áreas de computação colaborativa, inteligência artificial e microeletrônica, envolvendo cerca de duzentas pessoas. Entre as empresas contratantes estão algumas das mais importantes marcas de tecnologia do mundo, como Ericsson, LG, Dell, Huawei e HP.
Os projetos têm um limite de desenvolvimento determinado com base em uma escala (que vai de 1 a 9) desenvolvida pela Nasa nos anos 1970 para medir o nível de maturidade tecnológica de um empreendimento, a Technology Readiness Level (TLR). Quanto mais perto do 1 estiver o projeto, mais básica é a pesquisa. Quanto mais próximo do 9, mais apto estará a ser comercializado. “Nós vamos até 6, o que significa produzir um protótipo validado num ambiente relevante. Acima disso, já é produção, o que compete às empresas”, diz Almeida.
No final de 2019, a UFCG tornou-se a primeira instituição das regiões Norte e Nordeste a receber um laboratório de 5G – a nova geração de internet móvel que propiciará maiores velocidades de download e upload, cobertura mais ampla e conexões mais estáveis. Fruto de uma parceria da universidade com a Nokia e a TIM, o laboratório foi instalado no Virtus. Na inauguração, os pesquisadores realizaram a primeira transmissão ao vivo na América Latina de imagens de altíssima resolução captadas por um drone.
Além da proeminência conquistada nas áreas de engenharia e computação, o polo de Campina Grande passou nos últimos anos a se destacar também no campo das tecnologias da saúde, com o Nutes, coordenado por Misael de Morais. O Nutes tem menos de quinze anos, mas parece ter surgido em uma era muito distante, quando o Estado brasileiro possuía recursos e disposição política para investimentos em setores estratégicos ainda incipientes no país.
Tudo começou em outubro de 2007. O Ministério da Saúde, então comandado por José Gomes Temporão, havia organizado em Brasília um encontro nacional para apresentar um plano de desenvolvimento na área de tecnologia da saúde. A ideia era estimular o setor, reduzindo a enorme dependência brasileira de equipamentos hospitalares importados.
Por acaso, Morais estava em Brasília no dia da reunião. “Fui visitar uma neta que vive lá, e um amigo, reitor de uma universidade privada de João Pessoa, pediu que o representasse no evento”, lembrou o engenheiro eletrônico, que até então nunca havia trabalhado diretamente na área da saúde e estava aposentado como professor da UFCG. Ao acompanhar o encontro, ele vislumbrou todo um novo campo de pesquisa. “Percebi que o hospital é um grande laboratório, e pensei: ‘Vou utilizar no campo da saúde tudo o que aprendi.’”
Nascido em Caicó, no Rio Grande do Norte, Morais mudou-se para Campina Grande no final dos anos 1960, a fim de cursar a graduação em engenharia elétrica. No início dos anos 1980, já professor universitário, fez doutorado na Universidade de Stuttgart, na Alemanha, onde desenvolveu um modelo matemático para descrever o comportamento do consumo de energia elétrica na cidade de Berlim, que na época enfrentava problemas nesse setor. “No doutorado eu queria fazer algo que tivesse uma ligação mais forte com o setor produtivo e me permitisse juntar a pesquisa com algo útil para a sociedade. Essa mentalidade era muito forte na Alemanha.” Ele retomou tal preocupação ao criar o Nutes, em 2008, com o intuito de promover inovações na área médica em sintonia com as demandas da sociedade e da indústria.
O núcleo tecnológico ocupa um prédio de 1,1 mil m2 no Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, no Bodocongó. É composto de seis laboratórios, em grande parte formando um conjunto de salas brancas, atulhadas de computadores, que pouco se diferenciam de escritórios convencionais. Especializados em diferentes tecnologias, ali trabalham 120 profissionais, entre eles pesquisadores de medicina, engenharia, tecnologia da informação, design e fisioterapia.
No Laboratório de Análise de Imagens e de Sinais, os pesquisadores acabaram de desenvolver um software para auxiliar médicos a diagnosticar diferentes tipos de acidente vascular cerebral (AVC) – se isquêmico (quando há o bloqueio de uma artéria) ou hemorrágico (quando ocorre a ruptura de um vaso intracraniano). A tecnologia, atualmente em fase final de validação, utiliza inteligência artificial e classifica o tipo de AVC por meio da análise de imagens de uma tomografia.
Outros locais exibem, além de computadores, máquinas de última geração, como é o caso do Laboratório de Tecnologias 3D, que conta com uma impressora em três dimensões existente em apenas outras duas instituições do país, uma no Rio de Janeiro e outra em Campinas, no interior de São Paulo. Empilhando camadas milimétricas de polímeros, a máquina é capaz de produzir, em até 72 horas, biomodelos precisos de crânios de pacientes que sofreram algum trauma.
Na entrada do laboratório, prateleiras expõem, como se formassem uma espécie de ossuário, algumas das peças ali produzidas: mandíbulas rompidas, crânios incompletos, vértebras fraturadas. Elas permitem que o cirurgião prepare a intervenção minuciosamente, reduzindo o tempo da operação. “Nosso desafio agora é difundir dentro dos hospitais a cultura de se utilizar essa técnica para planejar a cirurgia”, diz Morais.
O Nutes também é a única instituição de pesquisa do país que possui uma linha de fabricação de protótipos de equipamentos médicos certificada e homologada pela Anvisa. Com isso, os aparelhos produzidos em parceria com empresas da área podem ser testados diretamente em ensaios clínicos. Depois de desenvolver o conceito de um produto, o núcleo não precisa mandar o projeto para a empresa nem deixar com ela o encargo de produzir a documentação e a evidência técnica necessárias. “A gente consegue absorver algumas etapas do desenvolvimento do produto pela empresa aqui mesmo, no laboratório”, explica o engenheiro biomédico Eduardo Valadares Oliveira. Os primeiros projetos concluídos, feitos em parceria com a empresa Lifemed, foram um desfibrilador cardíaco e um monitor de sinais vitais.
O prédio do Laboratório de Avaliação e Desenvolvimento de Biomateriais do Nordeste (Certbio), na UFCG, é uma construção de três pisos, com uma fachada dominada por janelões e tijolos aparentes. Leva o nome do pesquisador indiano Ramdayal Swarnakar, um dos estrangeiros que foram para Campina Grande na década de 1970 e não deixaram mais a cidade. Depois de aposentado, apesar de vários convites de outras universidades, Swarnakar escolheu trabalhar no laboratório. “Ele foi o responsável por consolidar a nossa área de biossensores”, conta o pesquisador Marcus Vinicius Lia Fook, que lidera o Certbio. Antes de conhecer o local, a piauí precisou assinar um termo de confidencialidade, pois parte das pesquisas envolve segredos industriais.
Criado em 2006, o Certbio assumiu uma posição de relevo no Brasil quatro anos mais tarde, quando estourou o escândalo mundial das próteses mamárias da marca francesa PIP, que estavam rompendo depois de implantadas e das suspeitas de que causassem câncer. O laboratório campinense foi um dos três autorizados pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) a quantificar os riscos e desvios de qualidade das próteses comercializadas no Brasil – cuidou especialmente dos testes de citotoxicidade, capazes de detectar se o material utilizado na fabricação do produto agredia as células do corpo.
A falha nas próteses da PIP, descobriu-se mais tarde, havia sido causada pelo uso de silicone de baixa qualidade. Estima-se que a adulteração tenha afetado mais de 300 mil pessoas em todo o mundo. Somente no Brasil foram implantadas mais de 25 mil próteses, até a proibição em 2010. O episódio levou a Anvisa a mudar a forma de habilitar biomateriais no Brasil. Antes ocorria apenas a análise da papelada enviada pelo fabricante. “Desde 2012, as próteses, para serem vendidas no país, precisam passar por testes nos laboratórios acreditados, entre eles o nosso, o que trouxe uma segurança muito maior”, explica Fook, de 60 anos, com sua voz grave. Um biomaterial é todo e qualquer material para uso em saúde, como próteses, stents, sistemas de hemodiálise, lentes de contato, fios de sutura, agulhas de seringas.
O escândalo dos implantes mamários foi um ponto de virada para a legislação nacional sobre o tema e para o Certbio, que viu aumentar o número de suas parcerias com órgãos públicos, hospitais e indústrias farmacêuticas. “Eu não conheço, no Brasil, uma concentração de equipamentos voltados para biomateriais num só laboratório como a que temos aqui”, diz Fook. “Isso nos permite, por exemplo, não só desenvolver uma membrana para o tratamento de queimaduras como verificar a sua biocompatibilidade, isto é, a habilidade do material de ser aceito pelo corpo humano, tudo num mesmo ambiente.”
Outras inovações produzidas no laboratório incluem materiais de preenchimento ósseo, biossensores de problemas de pele e membranas para o tratamento de úlcera na pele causadas por diabetes. Os pesquisadores também estão trabalhando com materiais biodegradáveis da região, como a casca do camarão, um resíduo abundante na costa nordestina, do qual se extrai um polímero natural denominado quitosana. Testes feitos no Certbio comprovaram que o polímero, além de bactericida e fungicida, age como um filtro químico capaz de matar vírus – o que levou o laboratório a criar com esse produto máscaras cirúrgicas aptas a conter o Sars-CoV-2.
Foi a Fundação Parque Tecnológico da Paraíba, criada em meados da década de 1980, que deu o impulso que faltava para a transformação de Campina Grande no polo que se conhece hoje. “De nada adiantaria termos cursos de excelência e pesquisadores qualificados se não houvesse uma ponte com as demandas reais de mercado. O parque tecnológico veio a ser essa ponte”, diz a cientista da computação Francilene Garcia, que foi diretora-geral da instituição.
Mais uma vez, Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque, o engenheiro visionário, esteve à frente da iniciativa. Em 1984, um ano antes de deixar a presidência do CNPq, ele lançou o Programa Brasileiro de Parques Tecnológicos, considerado como a primeira política pública nacional voltada à inovação tecnológica. “Tínhamos informações da instalação de parques tecnológicos na França e principalmente nos Estados Unidos, com o sucesso de Boston e do Vale do Silício, além da Inglaterra. A ideia inicial era não ficar atrás deles”, afirmou Cavalcanti de Albuquerque numa entrevista à revista Pesquisa Fapesp, em 2008.
Inicialmente, cinco cidades foram escolhidas para sediar as instituições no Brasil, uma em cada região: Manaus, no Norte; Brasília, no Centro-Oeste; São Carlos, no Sudeste; Florianópolis, no Sul; e, no Nordeste, Campina Grande. Animava o programa a ideia de fortalecer o desenvolvimento tecnológico do país a partir do interior ou de capitais menores. “No Nordeste, Campina Grande era uma das poucas que cumpria os requisitos de ser uma cidade intermediária, do interior e com uma base universitária forte”, diz Francilene Garcia.
A implantação do parque não ocorreu sem resistências. Alguns professores viam com desconfiança o envolvimento com a iniciativa privada, temerosos de uma eventual perda de autonomia ou de que a universidade acabasse privatizada, como conta o agrônomo José Geraldo Vasconcelos Baracuhy, ex-professor da UFCG e membro da primeira diretoria da instituição. “Nas reuniões, eu era chamado de gigolô da tecnologia.”
As preocupações se mostraram infundadas, e os obstáculos internos foram superados à medida que o papel da Fundação Parque Tecnológico da Paraíba ficou mais claro. Com um conselho diretor plural, formado por entes acadêmicos, governamentais e empresariais, a instituição assumiu a missão de coordenar a ação dessas três esferas, estabelecendo prioridades e discutindo os gargalos no desenvolvimento local.
A iniciativa chamou a atenção do poder público para a necessidade de políticas que levassem em conta esse ambiente especial propiciado pela entidade. Em 1985, a Prefeitura de Campina Grande designou uma área urbana especificamente destinada a instituições de ensino e pesquisa, bem como a empresas de base tecnológica.
A fundação passou a ser também a sede de uma das primeiras incubadoras do país para empresas focadas em tecnologia, energia e saúde. Já atendeu 120 empreendimentos. Hoje, todas as seis salas destinadas às empresas estão ocupadas. Trabalham na instituição cerca de quarenta pessoas, entre funcionários e diretores.
Os corredores da construção retangular de dois pavimentos, com cerca de 2 mil m2, estavam praticamente vazios quando a piauí visitou o local: quase todos os funcionários se mantinham trabalhando em regime de home office. Suas instalações são simples e a arquitetura, funcional. No piso térreo ficam a área de alimentação e o setor de arquivos. O segundo piso divide-se entre os espaços para os empreendimentos e os destinados às atividades burocráticas.
Nos anos 1990, a Fundação Parque Tecnológico também passou a apoiar a UFCG e a UEPB na celebração de contratos com empresas. “Nossa função é exercer a gestão administrativa, como a realização de pagamentos e o monitoramento da execução da maioria dos projetos que envolvem essas instituições e a iniciativa privada”, explica o diretor-geral da fundação, o engenheiro químico Nilton Silva, de 37 anos. Os números dão a medida da vitalidade do ecossistema: cerca de quatrocentos projetos movimentaram aproximadamente 250 milhões de reais nos últimos quatro anos.
Outro braço de aproximação da academia com o setor produtivo é a unidade campinense da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii). Ela funciona por meio da cooperação com instituições de pesquisa científica e tecnológica de todo o país, públicas ou privadas, atendendo às demandas dos mais diversos setores empresariais. Uma de suas características é o compartilhamento de riscos, já que até um terço do valor dos projetos vem da própria Embrapii, que é vinculada aos ministérios da Ciência e Tecnologia, da Educação e da Saúde. “Nós conseguimos nos credenciar logo no primeiro edital, lançado em 2014”, afirma Hyggo Almeida, que coordena, além do Virtus, a unidade da Embrapii de Campina Grande, constituída no Centro de Engenharia Elétrica e Informática da UFCG.
Dentre as 64 unidades da Embrapii no país, a de Campina Grande é uma das mais produtivas. Até julho deste ano, já haviam passado pela unidade quase 180 projetos, envolvendo cerca de 80 empresas, como Petrobras, Eletrobras, HP, Chesf e Sony. “Podemos ir atrás de empresas ou elas podem vir nos procurar”, diz Almeida. “Mas atualmente não estamos conseguindo atender toda a demanda das companhias, tamanha a procura.”
Embora os contratos dos projetos sejam protegidos por cláusulas de confidencialidade, ele dá exemplos das inovações geradas na unidade, sem mencionar os contratantes: “Estamos pesquisando óculos virtuais para realizar correções e manutenção em equipamentos, com a aplicação de realidade aumentada. Fazemos ainda muitas coisas relacionadas à inteligência artificial, como o mapeamento de um parque de máquinas para reduzir o consumo global de energia.”
Não são apenas as grandes companhias estrangeiras e as estatais que se beneficiam das pesquisas em Campina Grande. Isso ocorre também com empresas locais, como a Light Infocon Tecnologia, uma das mais antigas e bem-sucedidas da cidade na área tecnológica. Começou como uma pequena consultoria de informática. Em pouco tempo, enveredou para o desenvolvimento de softwares.
O primeiro produto criado foi o Info-Word, um processador de texto para o Unix, sistema operacional que a partir da década de 1980 passou a ser cada vez mais utilizado por empresas, bancos e órgãos de governo. “Depois disso, uns produtos deram certo, outros deram errado, até que a gente chegou no LightBase, a tecnologia que estamos trabalhando nos últimos vinte anos”, conta o engenheiro eletrônico Alexandre Moura, de 60 anos, o único dos fundadores que permanece na empresa.
Os bancos de dados tradicionais funcionam apenas com informações em tabelas. O LightBase é um banco de dados em que se pode armazenar sons e imagens, textos e números. Além disso, para a recuperação das informações guardadas, não é necessário o uso de palavras-chave: algo pode ser encontrado recorrendo-se a qualquer palavra que o arquivo contenha. Essas características levaram o LightBase a ser adotado pelas polícias federais do Brasil e da Espanha, a Interpol, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a Advocacia-Geral da União e empresas privadas, como o Bradesco e a Natura. A empresa fornece serviços para cerca de sessenta clientes, de seis países, e tem um faturamento anual de pouco mais de 10 milhões de reais. Mas nunca deixou de orbitar em torno da universidade. “Vários dos nossos softwares geraram ou foram consequência de trabalhos de mestrado e doutorado”, ressalta Moura.
Em 2007, a cientista de computação Francilene Garcia tornou-se a primeira mulher a assumir a direção-geral da Fundação Parque Tecnológico da Paraíba, função que exerceu durante os oito anos seguintes. Foi uma época profissionalmente intensa para ela, que participou do governo estadual e de diversas entidades voltadas para a ciência e a tecnologia – nas quais sempre foi a primeira presença feminina.
Hoje, além das atividades que exerce como docente da UFCG, Garcia, de 54 anos, se dedica a uma instituição que leva o nome de seu ex-marido, falecido em 2007, o Centro de Inovação e Tecnologia Telmo Araújo (Citta), o mais novo ente do polo tecnológico campinense. “O Citta foi criado para ser uma espécie de think tank que olhe para o futuro, trace estratégias de médio e longo prazo, avalie aquilo que deu certo ou errado e forme novos gestores para a área de inovação”, descreve Garcia.
De semblante sério, acentuado pelos óculos de tartaruga, a pesquisadora se entusiasma ao falar do Citta, instalado no bairro de Bodocongó e que pretende ser a interface entre o rico ambiente acadêmico de Campina Grande, a administração pública e o setor privado. Um dos projetos em andamento é a construção de uma plataforma virtual por meio da qual os chefes dos laboratórios das universidades ficarão sabendo das demandas das empresas.
O Citta também quer aumentar a participação das universidades na solução de problemas locais, que é atualmente muito baixa. “Não por culpa dos pesquisadores”, explica Garcia. “Normalmente a pesquisa está atrelada a alguma chamada pública, pois é como se consegue os recursos.” Essas chamadas são construídas em Brasília, dentro das agências de fomento, e suas demandas raramente dialogam com as necessidades regionais. “Quem é que vai investir no bioma da Caatinga, se não existe uma política pública com esse objetivo? Algum ente local tem que assumir essa responsabilidade ou ao menos estimular isso.” No caso da Caatinga, por exemplo, não basta apenas identificar as espécies da flora e da fauna do bioma, mas buscar maneiras de incorporá-las na resolução de problemas na área de saúde e de segurança alimentar, e até na produção de novos cosméticos, por meio de parcerias comerciais. “Para que isso aconteça são necessários anos e anos de pesquisas”, diz Garcia.
A falta de estudos envolvendo questões locais, porém, não é a única – nem a principal – deficiência que Garcia enxerga no ambiente campinense. O problema central é que tanto as inovações tecnológicas como o capital humano gerados ali reverberam muito pouco dentro do polo. “Quando você olha para um laboratório como o Virtus, com cerca de quatrocentas pessoas trabalhando em projetos de altíssimo nível para grandes empresas, tem a ilusão de que as coisas vão muito bem. Só que, no fundo, esses projetos são concluídos sem trazer avanços concretos para o ecossistema como um todo.”
Assim, é como se o circuito da inovação não fechasse. “Nós nem conseguimos fazer com que as empresas se instalem aqui.” O que permitiria, segundo Garcia, uma relação muito mais estreita e profícua dos laboratórios com as companhias. Outro problema é a falta de recursos para que os pesquisadores possam criar empresas tecnológicas próprias em Campina Grande. “Isso depende de investidores de capital de risco, algo praticamente inexistente no interior do Nordeste.” Como consequência, a maior parte dos alunos formados nos cursos de engenharia e ciência da computação se vê obrigada a deixar a cidade, seja para trabalhar em companhias de grande porte situadas fora dali, seja para montar empresas em outras regiões, sobretudo no Sudeste.
Dificuldades existem, mas Campina Grande pretende saltar os obstáculos e continuar a evoluir. Uma das frentes de expansão é capitaneada pelo novo Parque Tecnológico da Paraíba, que será erguido no Bodocongó, em terreno cedido pela Prefeitura. Enquanto a fundação seguirá com o papel de intermediar os contratos entre as universidades e as empresas, o novo parque voltará sua atenção para o negócio da inovação. “Nosso objetivo é nos tornarmos uma empresa de empresas”, afirma Nilton Silva, o engenheiro químico que dirige a fundação.
Outra mudança de grande porte desenrola-se no Nutes, o núcleo de tecnologias da saúde da UEPB. Trata-se de um novo laboratório, o FabLab, que vai reunir em um prédio de 12 mil m2 toda a cadeia da inovação médica: pesquisadores, laboratórios de testes, incubadora de empresas do setor, serviços de mentoria, além de equipes de suporte técnico e jurídico. As obras do prédio começaram em meados de 2020 e devem terminar em até três anos. “A ideia é que o lugar ganhe uma dinâmica própria, com todos esses atores trabalhando juntos, tornando-se um hub de adensamento do conhecimento na área da saúde”, conta Eduardo Valadares, principal colaborador de Misael de Morais no Nutes e coordenador do projeto de construção do laboratório.
O FabLab pretende dispor de todo o suporte necessário para conceber uma nova tecnologia atendendo previamente aos requisitos regulatórios das principais agências de saúde do mundo, como a Anvisa, a norte-americana FDA e a Agência Europeia de Medicamentos – o que aumentará a chance de que essa nova tecnologia vire um produto e chegue ao mercado. Fazendo jus às ambições de Campina Grande, a ideia é que o novo laboratório se torne nada menos que um polo dentro do polo tecnológico da cidade. “Será uma espécie de versão menor – voltada inteiramente para a saúde – do ambiente de inovação que já temos aqui”, diz Valadares. Como não poderia deixar de ser, o FabLab também ficará no epicentro desse ecossistema – o Bodocongó.