O marceneiro sírio Said Fata, sua mulher, Raghida, e os filhos esperam num acampamento, na fronteira entre a Croácia e a Sérvia, uma oportunidade de seguir viagem rumo à Alemanha FOTO: HUGO AYMAR
Labirinto
Jogando tênis com os refugiados sírios
Maria Fernanda Ampuero | Edição 109, Outubro 2015
Imagine que seu nome é Said.
Said Fata.
Você tem 35 anos, nasceu, cresceu e viveu a vida inteira na cidade síria de Daraa – pronuncia-se “Dareia” –, onde conheceu Raghida e se casou com ela, uma mulher de quem, passados quinze anos, você ainda gosta, principalmente de seu rosto e dos olhos redondos, brilhantes como figos.
Os mesmos olhos com cílios longos e pretos de sua filha mais velha, Mona, de 13 anos, uma garota que na verdade você não conhecia direito, que está conhecendo agora e que hoje tanto admira, porque ela é forte, porque não se queixa, porque inventa brincadeiras para distrair os irmãos mais novos – Bayan, Maias, Omar e Layan –, porque acalma a mãe quando ela se desespera, porque aprendeu inglês praticamente sozinha e agora é a tradutora da família inteira. Você, Said, que só sabe falar árabe, se sente impotente, velho e muito tolo por precisar da filha para explicar que o que você mais gosta em sua mulher são seus olhos de figo maduro.
Você usa roupa esportiva: uma camiseta vermelha com o escudo de um time croata para o qual você não torce, um boné preto, uma calça bege dessas com elástico nos tornozelos, meias brancas com listras azuis e vermelhas, tênis Nike vermelho. Está vestido como se fosse fazer uma excursão com a família, mas salvo as crianças, que têm a energia de um ciclone dentro de outro ciclone, ninguém parece ter vontade de nada.
Você está sentado no chão em Tovarnik, na Croácia, um vilarejo de pouco mais de 2 500 habitantes na fronteira com a Sérvia. Já faz três dias que está nesse mesmo acampamento, se é que se pode chamar assim uns cobertores no chão onde desde o início vocês se instalaram com outros milhares de sírios, afegãos e iraquianos. Além da mulher e das crianças, vieram também sua prima Ola e os filhos dela, Nour e Anas, mais outro primo adolescente, Assad. O marido de Ola está preso na Síria, ninguém sabe por quê. Ele é inocente, você repete, é inocente. Um dia foi trabalhar – era marceneiro – e nunca mais voltou. Já se passaram três anos desde esse dia e, quando se fala nisso, Ola se levanta e vai olhar o céu de braços cruzados. Você, Said, também seria preso. Ou morreria. Você diz que, se morresse, seria uma vitória do governo, e você não queria que seus filhos crescessem sem pai, nem que sua mulher ficasse sem marido. Por isso está aqui. Por isso levou um mês tentando chegar até aqui.
Bem, aqui não.
“Germany.”
Alemanha é a única palavra em inglês que você conhece. Você a aprendeu antes mesmo de yes, water ou food. Germany. Na verdade, todo mundo aqui conhece essa palavra. É um mantra, um sonho, Xangrilá, Eldorado, a Terra Prometida.
“Por que a Alemanha?”
“Na Síria, os filhos não podem estudar, não podem respirar, não há ar como aqui.”
“Mas por que a Alemanha?”
“Dizem que lá os refugiados são bem tratados. Que não se pode nem bater nas crianças. Na Síria elas são torturadas, desaparecem, são mortas.”
Antes disso, quer dizer, de ficar sentado no chão imundo de um vilarejo de fronteira, sua vida em Daraa era uma vida boa. A vida de um homem de Deus, como você diz. Você tinha trabalho, às vezes até demais, arrumando o estofamento e o interior dos carros. Ganhava seu dinheiro, sustentava a família, tinha amigos da vida inteira, e de vez em quando Raghida fazia seus pratos favoritos para agradá-lo: ruz dyay, arroz aromático com cordeiro ou frango salpicado com frutos secos torrados, ou kebab, uns espetinhos de carne que ela prepara divinamente. Você poderia comer três pratos agora mesmo. Sim: três. Seus olhos brilham quando fala nisso. Mas aqui não tem fogão nem cordeiro, nem nada. O cardápio se resume a pão com atum ou sardinha em lata, bolacha doce e salgada, chocolate, maçã, banana, uva, macarrão, leite condensado, sanduíche. Comida nutritiva, suficiente.
“Mas não ruz dyay, não kebab.”
Imagine que seu nome é Said, que você é um trabalhador comum e que o homem que governa seu país desde o ano 2000, chamado Bashar al-Assad, não quer deixar o cargo, apesar da forte oposição do povo. Você e sua família ficaram de um lado, e os extremistas islâmicos que querem tomar o poder e os rebeldes, do outro. Isso que você chamava de “país” vive há quatro anos a pior guerra civil do século XXI – armas químicas, tortura, execuções maciças e bombardeios a civis –, então num dia de 2012 você resolveu ir embora, assim como outros 4 milhões de sírios foram para vários países próximos, para o vizinho Líbano, até as coisas se acalmarem. Muitos amigos estão presos ou mortos, muitas bombas caíram por toda parte, há cidades inteiras, chamuscadas e inabitáveis, que não existem mais.
Você vai embora com todos, mãe e pai inclusive. Fecha bem a casa. Guarda as chaves no bolso.
Um dia alguém telefona da Síria. Caiu uma bomba na vizinhança.
Você tenta explicar como são essas bombas que parecem uma só, mas que são muitas e se esparramam como uvas ao cair.
“É uma bomba, mas, na verdade, são quatro ou mais e…”
Essa é a última frase que Mona diz em inglês. Depois ela se cala. Olha para o pai, para a mãe e deita de costas para eles numa esteira roxa de fazer ioga. As noites nessa época do ano – quase outono – caem como se um cobertor cobrisse nossas cabeças, e agora todos os rostos são vultos. Chega Fadi Khalil, um jovem jogador de basquete iraquiano de 25 anos que pode ajudar na tradução. Fadi diz que Said e sua família levaram dez anos para ter casa própria, que foi difícil porque tiveram que apertar o cinto, morar com os pais enquanto juntavam o dinheiro e esperar, esperar, esperar.
Said faz um gesto com a mão que se entende muito bem e dispensa tradução: o que levaram dez anos para construir, uma bomba destruiu em dez segundos. Fadi diz também que, nos três anos que passaram no Líbano, Said conseguiu juntar 10 mil dólares, trabalhou de sol a sol, economizou até o último centavo e vendeu todo o ouro da família. Por exemplo, as joias que Raghida herdou da mãe, da avó, da bisavó. Esse dinheiro serviu para pagar guias (gente que, por dinheiro, indica o caminho aos refugiados), carros, ônibus, trens, para chegar até aqui, até a Croácia. Uma viagem longa e perigosa cruzando a Turquia, a Macedônia, a Sérvia. Ainda lhes resta algum dinheiro, muito pouco, para atravessar a Hungria, a Áustria e alcançar – enfim – a Alemanha.
Imagine que você está com vergonha de seu cheiro.
Que está há dez dias sem lavar a cabeça, sem poder tomar banho. Você é muçulmana, e as mulheres da sua religião não podem ser vistas por estranhos sem véu e muito menos com pouca roupa. Aqui neste acampamento improvisado na fronteira servo-croata não há chuveiros, só torneiras, usadas apenas pelos homens e pelas crianças. Eles lavam os pés, a cabeça, as axilas, o corpo inteiro. Mas você não. Você faz sua higiene às escondidas, com dificuldade. Lavar o cabelo, porém, é impossível, e nesses dias tem feito muito calor e, sob o véu, sua cabeça cheira mal.
Você se chama Raghida, tem 33 anos, é mãe de cinco filhos e mulher de Said, casou-se muito jovem e nunca trabalhou fora de casa. Usa um véu moderno com estampa de oncinha e uma capa de cor crua que combina com ele. A capa está suja de barro, de mato, de quem sabe mais o quê, e você não gosta disso, mas o pior é o mau cheiro e a falta de produtos para cuidar da pele, para a higiene e para se perfumar.
“Não sou eu. Neste mês envelheci. Agora sou uma mulher muito velha.”
Você apalpa seu próprio rosto, as duas faces ao mesmo tempo, e também diz que faz um mês que está dormindo no chão e que sente falta, como seu marido, de um teto – faz um gesto com as mãos, as palmas voltadas para cima, abertas para o céu – e de uma casa para arrumar e limpar.
Então você ri.
“Arrumar e limpar. É isso que eu queria.”
Poucos adultos riem em Tovarnik.
E você ri um pouquinho, e sua filha, que estava de costas, se vira para observá-la.
Uma fila enorme cresce cada vez mais diante de nossos olhos. Gente mais velha e gente muito jovem. Um pai numa cadeira de rodas empurrado pelo filho. Um rapaz com uma perna de titânio. Um casal com um bebê loiro de poucos meses. Grupos de garotos que parecem estar em plena sexta-feira à noite, preparando-se para a balada – um deles veste uma camiseta com a frase I will dance for beer. Um hipster de chapéu-panamá, camisa branca e óculos de armação branca. Um casalzinho de mãos dadas. Meninas e meninos de todas as idades. Adolescentes consultando o celular como em qualquer lugar do mundo. Um garoto que encontrou um poncho de cores berrantes entre as doações de roupa e o mostra a seus amigos e amigas, que riem às gargalhadas. Gente que come. Gente que fuma. Gente que consola os filhos inconsoláveis. Gente sentada no chão ao lado de suas mochilas fazendo uma fila a perder de vista.
Talvez sejam umas mil pessoas, talvez mais. Os números variam, mas a polícia croata declarou à imprensa que em apenas 48 horas mais de 2 mil pessoas haviam chegado a Tovarnik. Essas pessoas esperam por ônibus.
Said fala com Fadi.
“Ônibus para onde? Para a Hungria?”
“A fronteira da Hungria está fechada.”
“Não iam abrir?”
“Acho que não.”
“Se fecharem definitivamente a fronteira com a Hungria, que Alá nos ajude. Prefiro morrer a ver isso acontecer.”
“Eu também.”
“Então para onde vão esses ônibus?”
“Na verdade, ninguém sabe.”
Não importa o meio de transporte utilizado: trem, táxi, ônibus, a pé. A viagem é circular. Sérvia, Croácia, a fronteira da Hungria de novo Sérvia, Croácia, a fronteira da Hungria: os Bálcãs. Nem a Hungria e muito menos a Áustria, do espaço Schengen e da porta de entrada à sonhada Alemanha, abrem a muralha.
Christoph Asche, um jornalista que trabalha para o Huffington Post na Alemanha, sua e desfila sua brancura e seu 1,90 metro de altura pelos arredores de Sid, localidade na fronteira da Croácia com a Sérvia, cercada de campos de milho e de centenas de refugiados que não param para falar com ninguém, desesperados para chegar aonde quer que seja essa coisa chamada Eslovênia, que, dizem, está aberta – ninguém tem certeza – e mais perto da sonhada Alemanha.
Na fuga abandonam suas coisas, faz um calorão, precisam andar muito depressa: casacos, cobertores, barracas, carrinhos de bebê, comida, garrafões de água, brinquedos, sapatos, as coisas dos homens que vão transformando o caminho numa estranhíssima paisagem apocalíptica. Em meio aos milharais ressequidos, chamam a atenção bichos de pelúcia poeirentos, gorros de inverno, livros para colorir com títulos sabe-se lá em que língua.
Asche grita para mim, em inglês:
“Ei, saia já daí! Os campos da Croácia ainda estão cheios de minas da guerra iugoslava. Foi há vinte anos, mas ainda estão minados. Cuidado!”
No caminho há um cemitério e árvores, as pessoas descansam na sombra. Aos pés da lápide – preta, de mármore – da família Dzakula, onde estão enterrados Kristina e Stoian Dzakula, um grupo de homens sírios bebe água, tira os sapatos, fuma. Um policial croata lhes oferece parte de seu almoço, mas ele está comendo carne de porco e eles dizem no, thank you, no. O policial lhes dá pão, eles aceitam. Um adolescente de cabelo encaracolado, cílios fartos e lindos olhos negros usa uma camiseta vermelha com a frase No school, no stress. Perguntam se a Eslovênia está muito longe, dizem temer que lá também – como fez a Hungria poucos dias atrás – resolvam fechar a fronteira.
Asche, que está com o carro no lado sérvio, diz:
“Estão jogando tênis com essas pessoas.”
“É, e nós somos o público.”
E se despede assim:
“A gente se vê num outro ponto deste labirinto.”
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