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    O escritor Joseph Brodsky, em Veneza, em 1989: “Não é de admirar que a água dessa cidade pareça de um verde lodoso durante o dia e um verdadeiro breu à noite, rivalizando com o firmamento” CRÉDITO: GRAZIANO ARICI_AGE FOTOSTOCK_ EASYPIX BRASIL_1989

carta da itália

Labirintos de Veneza

Nunca sabemos se estamos em busca de alguma coisa ou se fugimos de nós mesmos, se somos caça ou caçador

Joseph Brodsky | Edição 210, Março 2024

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Numa tarde de novembro de 1977, no Londra, onde eu me hospedara em Veneza por cortesia de uma bienal dedicada ao tema da dissidência política, recebi um telefonema de Susan Sontag, então alojada no Gritti pelas mesmas circunstâncias. “Joseph”, ela disse, “o que você vai fazer hoje à noite?” “Nada”, respondi. “Por quê?” “Bem, eu topei com a Olga Rudge na piazza. Você a conhece?” “Não. A mulher do Pound?” “Isso”, disse Susan. “Ela me convidou para ir à casa dela hoje à noite. Tenho medo de ir sozinha. Você iria comigo, se não tiver outros planos?” Eu não tinha outros planos, então disse que iria, sim, compreendendo bem sua apreensão. A minha, pensei, poderia ser até maior. Para começo de conversa, na minha área de trabalho, Ezra Pound é um negócio muito importante, quase um mercado inteiro. Muitos grafomaníacos americanos encontraram em Ezra Pound tanto um mestre quanto um mártir. Quando jovem, traduzi alguns de seus poemas para o russo. As traduções eram um lixo, mas quase foram publicadas graças a um “criptonazi” que integrava o conselho editorial de uma revista literária consolidada (hoje esse homem é um nacionalista ávido, naturalmente). Eu gostava do original por seu frescor juvenil e seu verso sucinto, sua diversidade estilística e temática, as robustas referências culturais, na época fora do meu alcance. Também gostava do famoso dictumMake it new, renovemos as coisas –, até que compreendi que a verdadeira razão para “renovar” era o fato de que as tais “coisas” eram bastante velhas e que, no fim das contas, nós estávamos num salão de beleza. Quanto às suas provações no hospital St. Elizabeths, aquilo, aos olhos de um russo, não era motivo de estardalhaço, além de ser um destino muito mais aprazível do que os 9 gramas de chumbo que suas baboseiras radiofônicas dos tempos da guerra lhe garantiriam em outro lugar. Os cantos tampouco me comoveram; o principal equívoco era antigo: buscava a beleza. Para alguém que vivera tantos anos na Itália, era curioso que ele não tivesse percebido que a beleza não se busca, ela é sempre um subproduto de outras buscas, não raro muito banais. A coisa mais justa a fazer, eu pensava, era publicar seus poemas e seus discursos num único volume, sem nenhuma introdução acadêmica, e ver o que acontecia. Mais do que qualquer outra pessoa, um poeta deveria saber que a distância entre Rapallo[1] e a Lituânia inexiste para o tempo. Por último, acreditava também que arruinar a própria vida é mais honroso do que insistir na postura de gênio perseguido, incluindo aí aquela história de erguer o braço numa saudação fascista ao retornar à Itália (negando depois qualquer significado naquele gesto), as entrevistas reticentes, o expediente da capa e da bengala para cultivar uma aparência de sábio cujo resultado final era ficar parecendo Hailé Selassié.[2] De todo modo, ele ainda era um grande nome entre alguns amigos meus, e agora eu visitaria sua velha senhora.

O endereço que nos foi dado ficava no sestiere[3] Salute, a parte da cidade que, até onde sei, abriga a maior porcentagem de estrangeiros, especialmente anglo-saxões. Depois de algumas curvas aqui e ali, encontramos o lugar – não muito longe, por sinal, da casa em que Régnier[4] morou no começo do século. Tocamos a campainha, e a primeira coisa que vi depois que a pequena mulher de olhinhos brilhantes tomou forma no umbral foi o busto do poeta, feito por Gaudier-Brzeska,[5] no chão da sala de visitas. A mordida do tédio foi súbita, mas inequívoca.

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