ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
#Lendaviva
Velha guarda, novas mídias
Luiza Miguez | Edição 138, Março 2018
Nelson Sargento repousava distraído enquanto o filho lhe dava instruções. “Vamos fazer a chamada de início, se precisar de cola eu tenho aqui”, explicou Ronaldo Mattos ao pai nonagenário. O sambista carioca parecia não atentar para a câmera, o microfone e os dois canhões de luz apontados para ele. “Não pode deixar de sorrir”, recomendou Mattos. Quando o filho bateu uma palma para anunciar o começo da filmagem, Sargento ganhou energia e se descolou do encosto da poltrona. “Olá, amigos! Não se esqueçam de se inscrever no meu canal e dar um like no vídeo”, disse vigorosamente, dirigindo-se ao público invisível.
Desde o fim de janeiro passado, o sambista de 93 anos é o titular de um canal no YouTube, repositório de vídeos na internet que também funciona como rede social. Com aparência frágil e fala pausada, Sargento não tem o perfil do youtuber típico. Não costuma acessar a internet e tampouco tem smartphone, mas não quer ficar de fora da plataforma digital cada vez mais usada para o consumo de música. “Você sabe que esse YouTube é internacional”, disse o compositor quando recebeu a piauí para acompanhar uma gravação. “Já pensou falar de samba para o mundo inteiro ao mesmo tempo? Fico emocionado.”
Credenciais não lhe faltam. Nascido em 1924, filho de uma empregada doméstica, e criado na Zona Norte do Rio de Janeiro, Nelson Mattos ficou conhecido pela patente que ocupava quando serviu o Exército. Sua carreira musical começou nos anos 60, quando integrou o conjunto A Voz do Morro, ao lado de jovens sambistas, hoje grandes nomes do gênero, como Paulinho da Viola e Elton Medeiros. Desde então, participou de dezenas de discos e compôs cerca de 400 sambas, alguns deles ao lado de Cartola e Carlos Cachaça, figuras lendárias da Mangueira, escola cujas cores defende e da qual é presidente de honra desde 2013.
“Esse foi o meu primeiro disco”, contou Nelson Sargento, exibindo para a câmera o LP Sonho de um Sambista, de 1979. “A cantora Beth Carvalho gravou o samba Agoniza Mas Não Morree, modéstia à parte, foi um sucesso.” O autor explicou que aquela era uma composição contra o preconceito. “Fiz essa letra porque o samba foi muito perseguido na década de 20, não podia frequentar a alta sociedade”, disse, antes de colocar o disco na vitrola.
Amaioria das filmagens para o canal de Nelson Sargento é feita na sala da casa do sambista, na Tijuca, decorada com uma parede repleta de discos, uma vitrola e um piano. Nos vídeos, ele evoca suas memórias do mundo do samba, promove audições comentadas de seus discos e entrevista velhos parceiros, como o portelense Monarco.
O sábado de Carnaval era o terceiro dia daquela semana em que pai e filho se ocupavam das gravações. A previsão do tempo anunciava calor recorde para o verão, mas na sala de estar do sambista, ventiladores e aparelhos de ar-condicionado tinham sido desligados para não atrapalhar a gravação. De tempos em tempos, Ronaldo Mattos enxugava a testa do pai com uma toalhinha verde e rosa. “Crioulo que não brilha não é crioulo”, brincou o compositor.
Quem idealizou o canal foi Mattos, o caçula dos sete filhos de Sargento, dono de uma produtora que gerencia a carreira do pai e de outros sambistas. É ele quem produz, escreve, grava e edita os vídeos. “Mas a minha parte é só 1% do trabalho”, minimizou o produtor. “O resto é tudo na conta dele, fico aqui só ouvindo para ver se falta algo.” Mattos estudou outros canais da plataforma de vídeos para entender como mobilizar o público. É por orientação dele que Sargento começa os vídeos pedindo likes aos espectadores. “Se não fizer isso logo no início a gente não vai pra frente”, justificou.
O filho sonha em lucrar com os vídeos de Sargento e repetir o sucesso de outros youtubers que chegam a ganhar estimadas dezenas de milhares de reais por mês com publicidade. No que depender da empolgação dos fãs, não será tarefa complicada. “Orgulho nacional!”, exaltou um admirador ao comentar o vídeo de estreia do sambista. “O senhor arrasa em tudo que faz! #lendasvivas #iconedosamba”, emendou outra entusiasta. A julgar pela audiência, porém, o caminho vai ser longo. Um mês após o lançamento, o canal do compositor tinha pouco mais de mil inscritos.
Sargento conta ao menos com um padrinho de peso para atrair o público: o youtuber piauiense Whindersson Nunes. Aos 23 anos, Nunes comanda desde 2013 um dos mais populares canais da plataforma, com 27 milhões de seguidores. “Esse menino é genial”, elogiou Sargento, que conheceu o colega durante a gravação de um programa de tevê. Na ocasião, o veterano de YouTube fez um vídeo dando a bênção ao sambista recém-chegado – o material foi divulgado depois nas redes sociais do carioca.
Nelson Sargento está entre os youtubers mais idosos do Brasil (como a plataforma não registra a idade de seus usuários, não é possível afirmar categoricamente). A indiana Mastanamma Karre, com 106 anos, é provavelmente a decana dos youtubers, à frente de um canal de culinária com mais de 860 mil inscritos.
A gravação dos vídeos por vezes parece custosa ao velho sambista carioca, que caminha e fala com dificuldade e ocasionalmente perde o fio da meada. Mas Sargento se disse animado com o novo trabalho. “Não quero acabar numa academia de imortais, sentado naquela cadeira sem fazer mais nada”, protestou. “Para mim, quanto mais, melhor”, continuou o compositor, que atribui sua disposição à decisão que tomou, anos atrás, “de só beber uma cervejinha mês sim, mês não”.
Em 2018, assunto é o que não vai lhe faltar. Seus planos incluem uma turnê com o rapper Criolo e uma viagem ao Japão, onde tem uma base expressiva de fãs, para promover seu canal de vídeos. Em julho, pretende abrir finalmente uma garrafa de champanhe que ganhou da atriz Fernanda Montenegro para festejar seus 94 anos.