Na praia da Urca, Lenine é entrevistado para o programa Estrelas , de Angélica. "Chega uma empresa e eu pergunto: 'Quantos quilos de música você quer? Fecha aqui comigo, direto.' Não precisa de gravadora ou editora nenhuma." FOTO: RENATO TERRA
Lenine lança um som
Como compor, fazer e vender música numa época em que CDs estão em queda, ninguém quer pagar para baixar canções e a tecnologia invadiu os shows
Renato Terra | Edição 62, Novembro 2011
Anna Barroso deu um assobio e Lenine desceu as escadas. O 1º andar do sobrado do casal, na Urca, tem as paredes brancas, ornamentos nordestinos e dezenas de livros empilhados em mesas e estantes. Quando ele ia ao encontro do repórter de O Globo, Anna o puxou pelo braço e avisou: “Seu filho nasceu.” Com gestos vagarosos, que sublinhavam a surpresa, mostrou-lhe a cópia do CD Chão, que acabara de chegar. Ele abriu a caixa, contemplou as cores, retirou o encarte e conferiu detalhes. Paula Gomes, a assessora de imprensa, registrou a cena com uma câmera digital.
No sofá, Lenine comentou que a “mídia física” – referia-se ao CD que tinha em mãos – é a melhor maneira de apresentar um trabalho. “Funciona como um cartão de visita, ponto de partida para uma turnê”, disse. Durante uma hora, falou sobre o novo disco, a carreira, a dificuldade de rotular sua música e os rumos da indústria fonográfica.
Terminada a entrevista, dirigiu-se à fotógrafa: “Agora iniciamos a parte para a qual não tenho a menor aptidão.” Por vinte minutos, atendeu a todos os pedidos: colocou as mãos no rosto, ficou sério, cruzou os braços, pôs os pés em cima da mesa. Sua mulher interveio: “Preciso despentear um pouco esse cabelo dele.” Com a cabeleira menos comportada, posou por mais vinte minutos.
Lenine e Paula se organizaram para que as reportagens fossem divulgadas em torno do dia 19 de outubro, data de lançamento de Chão. “Não sou muito de falar, mas nesse momento faço tudo e tento, com as palavras, atrair as pessoas”, disse.
As entrevistas reproduziram raciocínios feitos no release do disco, que poderia ser condensado numa citação de Lenine: com “dez músicas inéditas, imersas na delicada intimidade de ruídos sem edição”, Chão é “eletrônico, orgânico e concreto”.
Com variações, a afirmação foi repetida na imprensa. No dia 19, O Globo estampou uma imensa foto do cantor com a frase entre aspas: “O grande diferencial do álbum é que os ruídos não foram editados. Por isso, digo que é um disco eletrônico, orgânico e concreto.” A Folha de S.Paulo publicou uma resenha afirmando que “o novo disco de Lenine, Chão, é todo construído sobre sons captados de elementos bucólicos”. O site de O Estado de S. Paulo transmitiu um vídeo em que Lenine fala de “sons orgânicos do cotidiano que a gente, sem editá-los, sem processá-los, sem loopiá-los, usou”.
Um dia antes, Lenine recebera os jornais Correio da Paraíba e O Tempo, de Belo Horizonte. No mesmo dia, foi ouvido pelo UOL, Agora São Paulo, agência BR Press, portal G1 e o jornal Extra. Num restaurante na Urca, na véspera, falara a onze órgãos de imprensa – sem contar as entrevistas feitas por telefone. Cada conversa durava de meia a uma hora. Anna Barroso e Paula Gomes também acompanharam as entrevistas a Rolling Stone, Época e Ocas, além das gravações para o Programa do Jô e para o Estrelas, apresentado por Angélica.
Lenine compõe as músicas, faz a produção, contrata instrumentistas, grava e negocia os seus CDs com gravadoras. Há pouco tempo, o sistema dominante era inverso: as gravadoras mantinham um plantel de artistas e, por contrato, arregimentavam os meios necessários para que eles gravassem discos na época determinada. Para dar conta de tudo isso, Lenine conta com uma equipe que inclui advogado, empresário, assessora de imprensa e músicos.
Como arca com as despesas de estúdio, detém os direitos fonográficos do CD, além dos direitos autorais pela criação das músicas, que são recolhidos pela sua própria editora. Entregou o áudio de Chão finalizado, as fotos, a capa, o release, tudo pronto, para a gravadora Universal Music. A ela coube fazer o CD chegar às lojas e anunciá-lo na televisão, internet, rádios, jornais e revistas. Lenine é um misto simultâneo de Caetano Veloso e Paula Lavigne, um compositor, intérprete, divulgador e empresário.
Como remuneração, recebe um percentual sobre cada disco vendido. Mesmo concentrando as fatias que cabem ao produtor, ao artista e à editora, no entanto, não espera recuperar o investimento e muito menos ter lucro só com a venda de Chão. Se não fizer show, a música gravada raramente sustenta o artista.
“Lá no início, parece que juntaram os donos das casas de música, o cara da editora e o inventor do gramofone”, disse Lenine. “Eles fizeram uma reunião e dividiram tudo. No final, alguém perguntou: E o criador? E responderam: Bota aí 5%! Eu acho que o criador nem estava nessa mesa.” Hoje, Lenine diz haver situações nas quais não precisa de intermediários: “Chega uma empresa e eu pergunto: ‘Quantos quilos de música você quer? Fecha aqui comigo, direto.’ Não precisa de gravadora ou editora nenhuma.”
Até a metade do século XIX, não existiam recursos tecnológicos para reproduzir o som. O compositor, ou alguém que pudesse escrever músicas, oferecia suas partituras a editoras. Elas as compravam, imprimiam e revendiam para casas de instrumentos. Para atrair o interesse de compradores, as lojas empregavam músicos para tocarem pessoalmente.
A música era sempre feita ao vivo, seja por moças de casas ricas do Rio de Machado de Assis, onde não se pagava para ouvir, seja por artistas de grandes salas de concerto e ópera da Europa, nas quais a venda de ingressos mantinha o sistema em funcionamento. Essa relação comercial foi redefinida com a chegada do gramofone e do disco, no final do século. Nas décadas seguintes, e cada vez mais, as gravadoras se apresentaram como a alternativa por excelência para registrar e distribuir música.
Na medida em que as vendas de discos cresciam, impulsionadas por outro meio musical, o rádio e as turnês diminuíam. Costumavam dar prejuízo e eram vistas pela indústria apenas como ferramenta de divulgação dos discos.
A internet e a tecnologia MP3 botaram essa equação do avesso. A apresentação ao vivo, novamente, tornou-se motor do lucro. Para o artista, a gravação foi simplificada e a difusão pulverizou-se na rede. A facilidade de compartilhar áudios, combinada com o incremento dos piratas informáticos, minou a percepção de que é necessário pagar para ouvir música. Há composições para todos os gostos sendo feitas e disseminadas a cada dia, ao clique do mouse.
As dez faixas de Chão, que custa 25 reais, duram apenas 28 minutos. Cada música foi concebida para dialogar com as demais e serem ouvidas todas de uma vez, em sequência. Os elementos “eletrônicos, orgânicos e concretos” foram gravados de modo a serem potencializados no show. A intenção de Lenine é transformar as apresentações ao vivo numa “experiência sensorial”. Para tanto, caixas de som serão colocadas atrás da plateia, a fim de provocar a sensação de que os ruídos vêm de todas as direções.
“O futuro do artista está no palco”, disse Lenine. “O disco será só o ingresso. Imagino o momento em que vou me apresentar numa cidade por um preço que muita gente achará caro, mas quem pagar terá o seu artista num momento único, e ganhará um kit com um CD, DVD e MP3. Todas as maneiras de capturar estão liberadas. Se é para fazer pirata, deixa que eu mesmo faço, e te dou no final. Mas o agora vai custar cada vez mais caro. E é assim que tem que ser.”
A indústria da música ao vivo, que é mundial, arrecadou no ano passado 10 bilhões de dólares. O Brasil é o segundo mercado de shows que mais cresce, atrás da China. A estimativa é de que movimente 1,5 bilhão de reais neste ano, e atinja 2 bi em 2015. Para atender à demanda, estádios construídos para a Copa e as Olimpíadas foram projetados para receber grandes shows.
A receita global obtida com a venda de música gravada caiu de 17,4 bilhões para 15,9 bilhões de dólares do ano retrasado para o ano passado. Em contrapartida, só a Live Nation Entertainment, principal empresa de shows do mundo, aumentou seu valor declarado de 2,3 bilhões para 5,1 bilhões de dólares no mesmo período.
Em 1964, os Beatles fizeram sua primeira turnê nos Estados Unidos, o maior mercado consumidor de discos no mundo. Foram vistos na televisão por 74 milhões de pessoas, no Ed Sullivan Show. Mas a estrutura técnica do espetáculo foi precária. O barulho dos fãs era tamanho que as apresentações dificilmente podiam ser ouvidas. Mas mesmo assim o álbum deles daquele ano vendeu 250 mil cópias no primeiro dia só no mercado americano. A banda desistiu de fazer turnês em 1966.
No Brasil, o mercado de shows internacionais viveu três fases distintas. Nas primeiras décadas do século passado, companhias europeias de ópera viajavam regularmente à América Latina, fazendo escala no Rio, São Paulo e Buenos Aires. O público era microscópico e ir à ópera era uma atividade mundana, ou para entendidos. Em meados do século, astros da música popular, como Nat King Cole e Marlene Dietrich, passaram pelo Copacabana Palace, no Rio, e pelo Fasano, em São Paulo. O público era maior, mas ainda pequeno e rico.
Na terceira fase, o país entrou, canhestramente, na era dos megasshows. Em 1980, Roberto Medina trouxe Frank Sinatra para cantar, uma única vez, no Maracanã. A Folha de S.Paulo descreveu assim a preparação do show:
Quando o equipamento chegou – 25 toneladas de aparelhos em oito contêineres de 12 metros cúbicos, lotando um Boeing 747 de carga da Pan Am –, várias surpresas. Em vez de rampas e guindastes para içá-los, a força bruta dos estivadores cariocas; no lugar de grandes caminhões acolchoados, uma pequena frota de caminhões abertos, sujeitos a pó, choques e roubo.
Nem o público recorde para um só cantor, de 170 mil pessoas, que entrou para o Guinness Book, foi capaz de livrar os produtores do prejuízo.
Cinco anos depois, o mesmo Medina organizou o primeiro Rock in Rio. A produção do festival suportou a entourage de catorze artistas internacionais, atraiu 1,3 milhão de fãs e deu sinais de que a indústria poderia engrenar. O empresário explicou que teve prejuízo porque o plano de negócios era para dois festivais, 1985 e 1987, “mas, como o governador destruiu a Cidade do Rock, o segundo não pôde ser feito. Lembro que a indústria fonográfica vendeu 180% a mais”.
Houve duas edições posteriores no Brasil, em 1991 e 2001, e o Rock in Rio se tornou uma das maiores franquias mundiais de entretenimento. “O preço médio de um ingresso em 2001 era 33 reais”, disse Medina. “Hoje, passa de 200 reais no Brasil. Houve um aumento do poder aquisitivo do povo.”
Foram investidos 95 milhões de reais na quarta edição brasileira do festival, realizada em outubro passado. Os ingressos se esgotaram em 72 horas. Só com a venda de patrocínios, direitos de transmissão e internet foram arrecadados 55 milhões de reais. Outros dois Rock in Rio foram confirmados até 2015, e mais de 15 mil ingressos foram vendidos, mesmo sem nenhum músico ter acertado a presença.
Medina não revela o lucro final, mas garante que as duas principais fontes – venda de ingresso e patrocínios – arrecadaram valores quase semelhantes. “Deu bastante lucro”, disse. Citou, de cabeça, números de pesquisas que apontam que 45% das pessoas não foram ver o cantor: “O cara vai à festa.”
Neste mês, haverá dois grandes festivais no Brasil, o SWU e o Planeta Terra, que trarão Peter Gabriel, Duran Duran e Faith no More. Desembarcarão também Britney Spears, Pearl Jam e Ringo Starr. Não foram apenas a economia estável, o câmbio baixo e o aumento do poder de compra do público que atraíram as turnês internacionais. A explosão da indústria dos shows é um fenômeno mundial.
A Time For Fun, maior empresa de entretenimento ao vivo da América do Sul, teve uma receita líquida de 94 milhões de reais – apenas com shows – no segundo trimestre deste ano. Comparado com o mesmo período do ano passado, houve um salto de 125%. A empresa é dona do Credicard Hall, do Citibank Hall e Teatro Abril, em São Paulo. Também tem o Citibank Hall do Rio e o Citi Ópera de Buenos Aires. E controla o Ticketmaster (no Brasil) e o Tickets For Fun.
Em 2003, a Time For Fun funcionava em salas corporativas dentro do Credicard Hall. Hoje, ocupa três andares na Vila Olímpia, bairro valorizado de São Paulo. No início do ano, a empresa abriu capital na Bolsa paulista e arrecadou 539 milhões de reais. Sua principal fonte de renda é a venda de ingressos, mas também fatura com a comercialização de cotas de patrocínio.
No relatório para os investidores, a Time For Fun creditou o salto na receita ao “incremento no preço médio por ingresso, em 45% em comparação ao segundo trimestre de 2010”. Somado a isso, “as receitas de patrocínios elevaram-se 21%”, comparadas com o mesmo período. O número de shows aumentou de 92 para 118. A mensagem do presidente, que abre o relatório, prevê “um segundo semestre de resultados melhor do que o primeiro”.
A onda também pegou artistas brasileiros. Depois de recusar convites do Japão, da Europa e dos Estados Unidos, João Gilberto marcou shows em quatro capitais. E o valor dos ingressos disparou: variam entre 500 e 1 400 reais.
As gravadoras vivem um movimento inverso. A Warner Music Brasil ocupava três andares de um prédio na Gávea, bairro nobre carioca. Hoje, a sede está em parte de um andar no Recreio dos Bandeirantes, longínquo bairro da Zona Oeste. Em sua sala, Sergio Affonso Fernandes, o presidente da filial brasileira, apontou para uma caixa embaixo da mesa e disse: “Aquilo tudo é demo [CD de divulgação de bandas iniciantes]. Escuto todas as mídias que recebo. Têm coisas que acho ótimas, mas não posso fazer nada. A conta não fecha.”
O catálogo, segundo ele, é o que sustenta as gravadoras. Cerca de 70% da receita da Warner vem da venda de CDs e DVDs e 30% de música digital. As novas fontes ainda são uma aposta. “Acredito que, com o passar dos anos, o CD vai se transformar em um item de marketing”, disse Fernandes. “O CD é o suporte de uma obra, é o cartão de visita. O digital ainda não cumpre essa função.”
As gravadoras também apostam nos shows. “A Warner foi uma das primeiras a trabalhar com o contrato que engloba tudo”, disse. “Hoje, sem esse tipo de negócio, o artista é inviável. Os volumes de vendas são tão pequenos que, se não contarmos com a fonte de shows, não lançamos ninguém.”
A Warner intermedeia apresentações com casas de espetáculos e agencia o artista em campanhas publicitárias. “Tenho 41 anos trabalhando com disco e, no passado, quando fazia um plano de marketing, não queria nem saber o quanto se ganhava em show”, reconheceu o presidente da gravadora. “E agora o plano de marketing é um exercício mirabolante. Essa era uma indústria que não fazia conta.”
Numa casa arborizada, no alto do Humaitá, Olivia Hime pegou um papel e uma caneta para explicar como a Biscoito Fino trabalha. “Não se pode mais gastar 100 para vender 10”, disse. “No novo formato a gravadora tende a ser mais enxuta, virar parceira do artista. Dizem que a música está em crise. Não acredito. O que acontece é que ainda não nos ajustamos a um mercado novo.” A Biscoito Fino tem editora, estúdio próprio e controla toda a linha de montagem, desde o garimpo de novos artistas à distribuição final.
A atual aposta da gravadora é o mais recente CD de Chico Buarque, que vendeu 60 mil cópias e tem previsão de chegar a 100 mil. A estratégia de lançamento veio da equipe do artista: quem comprasse o álbum na pré-venda teria acesso a conteúdos exclusivos no site promocional e receberia o disco antes de chegar às lojas. A logística foi operada pela Biscoito Fino. Foram vendidas cerca de 10 mil unidades antecipadamente e o álbum Chico dá lucro já há algum tempo. Todas as músicas e vídeos dos bastidores foram colocados, de graça, no site. O dinheiro sério virá dos shows, que começarão agora, em Belo Horizonte. Os ingressos – entre 240 e 290 reais – se esgotaram em outubro.
O mercado digital não se consolidou no Brasil na velocidade prevista no início dos anos 2000. A venda de downloads não vingou por ser cara e trabalhosa. Cada faixa custava cerca de 4 reais e muitas gravadoras inseriam um complicado DRM (digital rights management) no código dos arquivos, para evitar que o comprador compartilhasse a música. Além do quê, era muito mais simples piratear do que comprar.
Por isso, o mercado digital legal e pago não se consolidou. O pirata, ao contrário, floresceu rapidamente.
Entre os estudiosos de estética, é acesa a discussão sobre os efeitos no público da tecnologia MP3, dos quais o iPod é a grande estrela, e dos megasshows. Há quem argumente que, desde o gramofone, a tecnologia que propicia a audição solitária – e a apreensão de detalhes, sutilezas e dissonâncias – leva a música para a introversão e reforça o individualismo. Já quem anda de metrô, e nota que quase metade dos passageiros está com fones no ouvido, duvida que estejam ouvindo Arnold Schönberg, John Cage ou Arvo Pärt.
As apresentações ao vivo, por sua vez, propiciariam o congraçamento das pessoas em torno da música. A “festa”, como diz Roberto Medina. Haveria, assim, uma regressão da arte sonora a dimensões de fundo comemorativo, ou místico, e até religioso. Esse parâmetro talvez tenha sido rompido apenas na contracultura dos anos 60, quando festivais como o de Woodstock, nos Estados Unidos, ou da ilha de Wight, na Inglaterra, uniram o público em torno da liberação dos costumes – e nesse âmbito caberiam solidariedade, drogas e rock.
Nas superturnês mundiais talvez caiba a analogia com o desenvolvimento do cinema. É nos grandes shows e festivais que se encontra a última palavra em matéria de tecnologia e investimento material: toneladas e toneladas de megawatts, arco-íris de holofotes digitais, fogos de artifício, dezenas de instrumentistas, coreografias milimétricas, músicas para todos os gostos antes e depois das atrações principais, bancas de venda de camisetas, CDs e lembranças, bares para consumo de cerveja e sanduíches, além da venda de direitos para a televisão e a internet.
Contraditoriamente, o requinte na criação e reprodução de sons nos shows, com a tecnologia sendo capaz de transmitir as nuances mais delicadas, provocou uma explosão de sons rombudos, de solos de guitarra e bateria estereotipados, da profusão de gritos. A música se tornou mais limitada, e também mais facilmente consumida.
No cinema, igualmente, se encontra a tecnologia: projeção digital, o som em Dolby, o 3D, a pipoca, a poltrona com lugar para o copo de refrigerante, a venda antecipada de lugares marcados pela internet. Esses requintes servem como contraposição ao cinema visto em casa, na televisão ou no computador, no táxi e mesmo no celular.
No Brasil, o site Sonora domina o mercado on-line no modelo de streaming: o assinante paga uma mensalidade para ter acesso a milhares de músicas, que podem ser ouvidas no computador e em celulares com acesso a internet, sem a necessidade de baixar uma a uma. A cada mês, a lista de faixas escutadas é levantada e as gravadoras ganham sua fatia proporcional à audiência de seus acervos.
Entretanto, muitos artistas já disponibilizam os discos em seus sites oficiais sem custo, assim como fizeram Lenine e Chico Buarque. A banda Radiohead colocou o álbum In Rainbows inteiro para download e convidou os fãs a decidirem o valor que gostariam de pagar. A novidade foi um marco na indústria.
Novos artistas usam a internet e as redes sociais para divulgar suas músicas e, com isso, tentam fisgar um público que os acompanhe em shows. Por mais que desperte curiosidade, e se crie uma comunidade virtual para a banda, dizem os marqueteiros de todos os quadrantes que os meios mais eficientes para promover o artista ainda são o rádio, os jornais e revistas, e a televisão – a começar pelas trilhas de novelas.
Lenine vê com simpatia os novos canais de distribuição; apenas torce para que as ferramentas não substituam o contato pessoal. “O que eu gosto da música é o encontro”, disse. “Eu quero olhar na cara, quero que seja uma ferramenta de aproximação.”
O cantor ainda morava no Recife, e tinha 15 anos, quando a tecnologia o despertou para a música – ou vice-versa. Passava horas ouvindo rock e fazia questão de sentar bem em frente das caixas de som, para captar melhor as frequências sonoras. A cada audição, concentrava a atenção em determinado instrumento. “A coisa era meio ritualizada, para provocar uma experiência sensorial”, explicou. “Descobri que a qualidade do acetato do disco importado, melhor que o nacional, fazia diferença. Eu tinha um aparelho de som quadrifônico e economizava para comprar os discos importados.”
Só deu crédito para a música brasileira quando colocou um disco do Clube da Esquina. “Aquilo não devia nada aos estrangeiros e soou maravilhosamente no meu equipamento”, disse. Outro marco foi quando ouviu pela primeira vez o Led Zeppelin.
Lenine começou se apresentando ao vivo. No começo da carreira, o cantor conseguiu fazer um show à meia-noite no Teatro Ipanema. Roberto Menescal, então diretor artístico da Polygram, ouviu um burburinho enaltecedor e foi conferir. No dia seguinte, Lenine entrava num estúdio para gravar o LP Baque Solto. O disco tinha o mesmo repertório do show e tentava reproduzir o ambiente do teatro. Não foi ouvido.
Lenine e Anna Barroso se casaram e foram morar na Urca. Ela se formou em jornalismo e começou a trabalhar como produtora da Rede Globo. Em casa, ele passava o dia compondo e tentando fazer com que as músicas chegassem a intérpretes conhecidos. O contracheque dela pagava as contas. Vendo a angústia do marido, ela sugeriu que procurasse um trabalho temporário. No dia seguinte, ele anunciou sua filiação ao Clube do Livro para vender exemplares de porta em porta. “E já começou devendo porque fez encomendas para si mesmo”, lembrou ela. A carreira de vendedor não durou uma semana. Lenine ainda criou jingles publicitários, fez bicos como roteirista de Os Trapalhões e foi tradutor de inglês sem saber direito o idioma.
Passou a frequentar saraus na casa de Elba Ramalho. Ela ouviu uma música dele e decidiu gravá-la. O batismo abriu portas e o compositor foi requisitado por outros intérpretes. Em 1989, venceu o Festival de Avaré e, logo em seguida, ganhou um carro num outro festival. A maré virara.
Lenine logo descobriu que as mudanças tecnológicas poderiam ser cruéis com o compositor. As baixas vendas de discos diminuíam a arrecadação de direitos autorais, e a saída era se virar fazendo shows.
Anna tomou um susto quando ele anunciou que gastaria as economias do casal num disco. O novo projeto se chamaria Olho de Peixe. A desconfiança aumentou quando a dupla começou a ter problemas com o estúdio e perdeu todas as gravações. O trabalho foi refeito em outro estúdio. Houve repercussão e um pequeno retorno financeiro. A música As Voltas que o Mundo Dá foi incluída na novela Ana Raio e Zé Trovão, da extinta Manchete.
O show virou uma turnê pela Europa e mais um mês em Tóquio. Lenine considera Olho de Peixe o CDmais importante de sua carreira. “Sempre tive o cuidado de que as letras fossem traduzidas, de acordo com o país, nos encartes dos CDs. Era importante que as pessoas compreendessem o que eu estava falando.” Seu site tem versões em inglês, espanhol e francês. E o modus operandi de Olho de Peixe se repetiu em toda a sua carreira.
A autonomia conquistada ao produzir um disco independente foi fundamental para consolidar seu estilo. Mas a dificuldade de se colocar um rótulo no som que faz o afastava da indústria. “Várias vezes participei de coletivas fora do Brasil e os jornalistas diziam que as lojas não sabiam onde colocar o CD, se era na estante do rock, do pop ou da world music”, contou Anna.
O problema explodiu com o álbum O Dia que Faremos Contato, que estava pronto e o lançamento apalavrado com o presidente de uma gravadora. Mas o departamento de marketing interveio, dizendo-se incapaz de vender aquele disco híbrido. A negociação desandou e Lenine bateu em outras portas. Conseguiu lançá-lo pela BMG Brasil, e as músicas Hoje Eu Quero Sair Só e Dois Olhos Negros fizeram sucesso.
O êxito alavancou o seu primeiro show de multidão. Ele ocorreu numa ponte, no Recife, que balançava quando o público pulava. “Em 2000, o New York Times publicou a reportagem “Brazil’s Lenine: A Prince of Pop”, escancarando-lhe as portas no exterior.
Não foi difícil conseguir atenção da imprensa para divulgar Chão. Uma busca no Google leva a mais de 100 sites, jornais, revistas e blogs que divulgavam o disco em outubro. Lenine interrompeu as entrevistas para marcar presença na Bienal de Orquídeas do Nordeste, da qual é patrono. Cultivar orquídeas é seu hobby e pretende catalogar as espécies brasileiras em um livro. Possui uma coleção com mais de 6 mil orquídeas.
As entrevistas em sequência na Urca foram interrompidas pela passagem de Bruno, seu filho, que produziu e tocou guitarra em Chão. Às vezes, Lenine se aproximava para lhe dar um beijo e um abraço. Na primeira vez que entrou em estúdio para ensaiar o novo repertório ficou emocionado. “Esquisito, eu entro aqui e tem meu filho”, disse. Ele ainda não tem as datas para o início da turnê.