Tynan (à esquerda). com Kathleen, vestiu-se de mulher com um peignoir de lamê, com lantejoulas, meias pretas e uma peruca, e raspou as pernas para um baile inspirado nos anos 20 FOTO: TIM JEMKINS_1976
Leve, alegre e triste
O beijo na boca de Marlon Brando, que preferia ser fervido em urina a dar uma entrevista, a expulsão da casa de Richard Burton, por dizer que não conseguiria uma ereção com Elizabeth Taylor, o aniversário de Gore Vidal, que contou como foi transar com Noel Coward: na Califórnia, os últimos anos de um crítico inglês
Kenneth Tynan | Edição 14, Novembro 2007
O beijo na boca de Marlon Brando, que preferia ser fervido em urina a dar uma entrevista, a expulsão da casa de Richard Burton, por dizer que não conseguiria uma ereção com Elizabeth Taylor, o aniversário de Gore Vidal, que contou como foi transar com Noel Coward: na Califórnia, os últimos anos de um crítico inglês
JOHN LAHR
Em 30 de outubro de 1976, Tynan fixou residência em Los Angeles e, para todos os efeitos, deixou a Inglaterra para sempre. “A vida em Santa Mônica é curiosa”, escreveu ele a Marlene Dietrich. “Toda manhã um globo dourado aparece no céu. As pessoas tiram as roupas e mergulham em reservatórios de água. É tudo muito curioso.” Tynan podia fazer graça sobre Los Angeles, mas não conseguia ser feliz na cidade. “Sintoma interessante: o diário é o último refúgio do ego que nos resta, e faz meses que não anoto nada no meu”, escreveu ele, um ano depois da sua chegada aos Estados Unidos.
Tynan se dizia um “émigré climático”, mas se sentia sufocado tanto pelo ar quanto pela entropia intelectual dominante. A Califórnia exacerbou a sensação de asco e horror a si mesmo que vinha dominando Tynan. “À medida que a saúde do meu pai declinava, suas escapadas sexuais sadomasoquistas se tornavam mais radicais”, conta a sua primeira filha, Tracy. “Kathleen me contou alguns detalhes – detalhes que eu não queria saber e que, francamente, me deixaram abismada. Acho que ela estava tão desesperada e magoada que teve a necessidade de contar para alguém. Então meu pai ficava sabendo que Kathleen me contara alguma coisa, e aí me revelava uma das infidelidades dela. Era tudo muito triste.”
Ainda assim, os Tynan mantinham uma destemida aparência de elegância, vivendo muito além das suas possibilidades, numa linda casa depois da outra, todas alugadas por preços altíssimos. A The New Yorker ofereceu-lhe uma saída, pagando 44 mil dólares por seis perfis (e, o mais importante, a revista cobriu as suas despesas médicas). Era um trabalho que lhe rendia dinheiro e prestígio. Só que, para escrever, Tynan precisava fumar e, segundo a sua médica, em 1977, ele tinha o mais alto nível de dióxido de carbono jamais registrado no hospital, e o menor de oxigênio.
Os Tynan não tinham como receber os seus amigos de Hollywood com a mesma abundância. O que podiam oferecer – além da inteligência da sua conversa – eram jantares com membros da família real britânica. Apesar das opiniões que Tynan sempre manifestou sobre a monarquia – que desejava ver abolida – recebia com freqüência a princesa Margaret. Tracy esteve presente ao último desses jantares, no qual os Tynan, sem dinheiro, decidiram apelar para um bufê novo, de uma cozinheira negra que servia soul food. “A hora da festa estava chegando e nem sinal do bufê ou da comida”, conta Tracy. “Meu pai jogou os braços para cima, em desespero, e disse que ia para o quarto para ‘se matar’.” No último minuto, o bufê chegou. “Foi uma visão e tanto, a realeza de Hollywood se acotovelando para conseguir chegar perto da verdadeira realeza. As pessoas literalmente empurravam umas às outras para conseguir a atenção da princesa.”
Depois de uma entubação, feita em 1978, Tracy foi chamada ao hospital para acalmar o pai que, histérico, tentava arrancar os tubos da garganta. Incapaz de falar, Tynan rabiscou uma série de bilhetes. “Pelo que eu conseguia decifrar”, conta Tracy, “ele dizia que os médicos e as enfermeiras estavam tentando torturá-lo.” Os bilhetes, que ele rabiscava, arrancava do bloco e enfiava imediatamente nas mãos da filha, com medo de que fossem interceptados por funcionários do hospital, diziam coisas como “Chame a Embaixada Britânica e peça ajuda!” e “Guarde os bilhetes. São a prova do que estão fazendo comigo”. “Se não fosse pela expressão de loucura e desespero nos olhos dele, eu talvez até achasse graça”, diz Tracy. A paranóia de Tynan era um efeito colateral dos altos níveis de dióxido de carbono no seu sangue. Quando eles se estabilizaram, aconteceu o mesmo com a sua disposição de espírito.
Mas a sua rebeldia não cedeu. Ele continuava a contrabandear cigarros para o hospital, embora os tubos no seu nariz estivessem ligados a uma quantidade de oxigênio capaz de explodir ele próprio e boa parte daquela ala do hospital. “Qual é a diferença?”, dizia ele, com um certo acanhamento. “Vou morrer de qualquer jeito.”
Ao longo de toda a sua longa agonia, Kathleen sempre esteve ao lado dele. Nem sempre a sua generosidade era retribuída. “Ele a tratava muitas vezes de um modo tão insuportável, tanto no hospital quanto em casa, que ela caía em prantos”, diz Roxana, sua segunda filha. Kathleen conta que Tynan lhe disse: “Se você não vai para o fundo comigo, não quero ir com você a nenhum outro lugar”.
A última vez que Tracy viu o pai foi num almoço, para poucas pessoas, que Kathleen organizou depois que ele saiu do hospital – para morrer na casa que tinham alugado, cercado por uma calma verdejante. Tynan estava pálido, reduzira-se a pouco mais de 50 quilos. Para a sua filha, parecia ter 73 anos e não os 53 da sua verdadeira idade. “Quando cheguei, havia música tocando”, conta ela. “Perguntei o que era e ele respondeu que era o movimento lento do Quinteto de Clarineta, de Mozart. Ele estava programando a trilha sonora do seu funeral.” A certa altura, sua médica apareceu. Brincou com ele sobre o seu consumo de vinho. Ele se queixou, dizendo que se sentia letárgico, e tentou conseguir uma receita de bolinhas. Kathleen precisou sair para comprar alguma coisa e Tynan se entregou a um monólogo, dizendo que se sentia como um personagem das piores peças de Tennessee Williams. “Sou o velho gagá que todo mundo está esperando que morra”, disse ele. “A minha linda mulher, por exemplo, saiu para divertir-se sabe Deus onde.”
“Era tudo muito leve, alegre e triste”, diz Tracy.
1975
14 DE JANEIRO
Pouco antes do Natal, num rasgo de loucura, comprei um Jaguar XJ12, a maior parte por um sistema de leasing. Os pagamentos do empréstimo (25 libras por semana), o seguro (6 libras por semana) e mais o consumo de gasolina (3,5 quilômetros por litro, aos preços exorbitantes de hoje em dia) estão muito além do alcance do meu bolso. E a escolha do momento da compra, quando ninguém mais quer carros capazes de andar a 300 quilômetros por hora (já que o limite de velocidade nas estradas britânicas é de 110 quilômetros por hora e pode ser reduzido mais ainda para economizar combustível), foi definitivamente idiota. Ainda assim, adoro o gigante de ronco silencioso, adoro a maciez de veludo do seu deslocamento, adoro avançar lentamente nos engarrafamentos com o rádio estereofônico tocando a abertura de Così fan tutte no volume máximo pelos quatro alto-falantes; acima de tudo, adoro deslizar pelas estradas ao sol. A sensação de fuga acolchoada é completa; sinto-me totalmente protegido, totalmente ocioso, e vivo a sensação feliz e ilusória de controle da minha própria vida, de saber aonde vou, pelo menos enquanto a gasolina não acabar. Ainda assim, estou consciente o tempo todo de que o XJ12 é uma espécie condenada, que breve estará extinta devido à indisponibilidade da sua dieta natural (gasolina quatro estrelas): estou sentado ao volante de um dinossauro. Enquanto isso, as espécies locais de menor porte – particularmente o ex-dominante Mini – estão ameaçadas de extinção nas mãos das hordas invasoras de Datsuns japoneses. Tudo muito darwinista.
20 DE JANEIRO
Acho que não há dúvida de que apressei a morte da minha mãe. Deixando que ela morasse sozinha em Birmingham, e só lhe fazendo raras visitas enquanto morava em Londres, condenei-a ao isolamento, o que, no fim – combinado com a anemia que secou o suprimento de sangue enviado ao cérebro -, levou-a à incapacidade de viver sem supervisão constante. Se ela tivesse vindo para Londres morar comigo, nos anos 50, poderia ter-se beneficiado do contato humano: mas nunca a convidei e, na falta disso, ela acabou degenerando e só restou, como alternativa, enviá-la para o asilo majestoso, mas desalmado, de Northampton, no qual, assustadoramente emaciada, acabou morrendo. Poderia ter adiado sua morte às expensas da minha absorção no meu próprio desenvolvimento: escolhi não fazê-lo.
21 DE JANEIRO
Ninguém – na televisão – precisa mais ser engraçado. Todo o riso é enlatado, pré-gravado, fixo. A arte da comédia está nas mãos dos técnicos do estúdio, que misturam os risos gravados com as piadas. E as risadas são tão contagiosas que o público de casa acaba acompanhando a euforia mecanizada. Esta talvez seja a coisa mais detestável da TV: retirar do público a prerrogativa de decidir quais comediantes são engraçados ou não. Tão sutil é a manipulação que, quando o comediante faz uma pausa, o técnico introduz uma tosse discreta da platéia para indicar que a piada final ainda não foi dita. Em vez de fazer o espectador rir, o comediante ajusta o seu número de maneira a se encaixar na irrupção mais entusiasmada possível de gargalhadas gravadas. Noutras palavras, tornou-se impossível para a audiência, salvo a sua fração mais crítica, decidir por si mesma o que tem graça ou não.
26 DE JANEIRO
Ofereceram a Nicole um apartamento com o aluguel ridiculamente barato de 7,5 libras por semana, mas uma parte tácita do acordo (não falada, mas extremamente operacional) é que, para tanto, ela precisaria ir para a cama com o proprietário. O que ela fez (ele é um sujeito de boa aparência, ao que tudo indica, em torno dos 30 anos), e ficou claro que ainda se esperam dela outros favores. Eu disse que isso me entristecia, e perguntei por que ela não arrumava um emprego noturno para poder pagar um apartamento sem precisar se prostituir (ela faz aulas de canto durante o dia e vive do auxílio-desemprego, que é de mais ou menos 12 libras por semana).
Isso provocou uma feroz explosão contra as pessoas que andam por aí de Jaguar, gastando mais em um almoço do que ela precisa para viver um mês inteiro, e ainda por cima se metem a dizer às pessoas mais pobres o que elas devem fazer. E então, quando a raiva passou, ela começou a ficar com medo de ter me perdido. Depois de uma longa pausa, olhando para o chão, ela murmurou: “Está bem. Não durmo mais com ele e vou procurar um emprego noturno”. O que eu devia ter respondido era o seguinte: “Lamento o que ele fez com você. E você não deve pegar um emprego noturno, se não quiser”. Mas só disse: “Não tem importância. Você é quem sabe”.
14 DE FEVEREIRO
Consegui ir ao Russell Harty Show, mas foi uma entrevista longa e só produzi um lampejo aqui e ali, recorrendo a piadas bastante surradas, em vez de brilhar de verdade. Georgia Brown[1] também estava no programa. Ela mora em Los Angeles e me aconselhou energicamente a não morar nem em Nova York nem na Califórnia – o que Kathleen vem me pressionando a decidir, em telefonemas internacionais. Mandei a K. – que está em Hollywood – um cartão de Dia dos Namorados em que a aconselho a ler o Soneto CIX, de Shakespeare – “O never say that I was false of heart“.[2]
16 DE FEVEREIRO
Ligo para Kathleen, em Beverly Hills, e descubro desolado que, embora ela tenha recebido o meu telegrama, não se deu ao trabalho de olhar o soneto mencionado. Ela me implora que venha para Nova York, no próximo final da semana, para avaliar a área e investigar as oportunidades profissionais que ela alega ter encontrado para mim. Mas mesmo que seja o que ela diz, será que tenho a disposição e a coragem de aproveitá-las? Continuo muito quieto, voltado para mim mesmo, nada disposto a novas empreitadas. Fica claro, com toda a ambição que isso implica, e todos os acessos de melancolia auto-acusatória que acarreta, que Kathleen deseja o que eu era, ou o que eu poderia ser.
23 DE MARÇO
Vôo via Tânger até Agadir, que sofreu uma reconstrução horrenda depois do terremoto que sofreu, mais ou menos dez anos atrás, e de lá até Taroudant, uma cidade com torres cor-de-rosa, uns 80 quilômetros para o interior. (Viajo com Robert Morley[3] e sua mulher, que por coincidência se dirigiam ao mesmo lugar.) Estou aqui numa última tentativa de livrar os meus pulmões dos espasmos dos brônquios que me atacaram nas últimas cinco semanas: se o sol não resolver, desisto. A última vez que fiz uma viagem em desespero semelhante foi para Túnis, dois anos e meio atrás. Naquela ocasião, o sol realizou seu milagre, e voltei para casa respirando bem. Mas agora estou mais velho, com menos energia, menos razões para viver, assolado por uma depressão profunda e plúmbea. Estou lendo um livro chamado Hemingway na Espanha, de um romancista espanhol, sobre os anos em que o conheci, e, no seu estado estéril, desalentado e literariamente esgotado, vejo um reflexo ampliado da minha própria prostração.
25 DE MARÇO
Quanto mais leio sobre Hemingway na Espanha, mais percebo que a maioria dos pontos altos da minha vida emocional – as tristezas, as exaltações, as culpas, as explosões – ocorreu lá, como as de Hemingway. “Vocês, que são afeitos a touradas, devem ter alguma coisa em comum”, diz Robert Morley, agressivamente. “Você, Hemingway e John Huston. Eu me pergunto o que pode ser: algum tipo de insegurança?” Respondo que, de um modo ou outro, a maioria das pessoas é insegura. “Bobagem”, responde Robert, em tom brusco. “Conheço centenas de pessoas que não são.”
Imagino que seja a consciência da morte que nos diferencia de Robert. Como é que podemos viver, vendo que vamos morrer? Sinto falta da angústia da corrida no fim da tarde, sem a qual as viagens por outros países mediterrâneos parecem dietas vegetarianas.
13 DE ABRIL
Por que será que a maioria das músicas populares cantadas por homens fala de como foram abandonados por uma mulher – e a maioria das cantadas por mulheres fala do seu abandono por um homem? Será porque não existem canções sobre os homens que abandonaram as suas mulheres, e vice-versa? A situação é igualmente comum, e deveria ter produzido pelo menos uma quantidade igual de canções memoráveis.
7 DE JUNHO
Assisti ao novo Antonioni, O Passageiro: Profissão Repórter, adorado pelos críticos, especialmente Penelope Gilliatt[4]. Deus do céu. Nas mãos de outro, poderia ser um filme de mistério para a televisão, banal mas interessante (com alguns toques pseudofilosóficos), sobre um jornalista alienado que assume a identidade de outro homem. Nas mãos de Antonioni, é tudo menos interessante. É um tour guiado por algumas locações pitorescas – a Barcelona de Gaudí, Mojácar, o norte da África – sobre o qual os críticos escrevem como se Antonioni tivesse construído, ou até criado, os locais, e não apenas contratado um cinegrafista para fotografá-los. O único clichê sobre identidade que não se encontra no filme é: “Por que você está fugindo de si mesmo?” E o único motivo para a ausência é que ele é inerente à situação básica. O pior de tudo é o trabalho dos atores. Jenny Runacre é tão má atriz que cheguei a achá-la incompetente demais para fazer parte do elenco de Oh! Calcutá! (do qual participou por seis meses). Maria Schneider e Jack Nicholson são tão pouco dirigidos que quase chegam a extinguir-se. Não nos incomodamos tanto (e podemos até tolerar) a má interpretação, mas a má interpretação lenta é insuportável. A única questão interessante que resta, depois desse filme, é saber se Antonioni era realmente incapaz de lidar com seres humanos (além dos italianos, claro: gostei muito de O Eclipse). Ainda assim, os críticos cobrem de elogios essa portentosa bobajada:
Mulheres entram e saem da sala,
Falando de Michelangelo.
A tarefa do crítico – pelo menos 90% dela – é abrir caminho para o que é bom, demolindo o que é ruim. No momento, Antonioni está bloqueando o trânsito na rua. Ele quase me dá vontade de voltar ao trabalho de demolidor.
13 DE JUNHO
Recepção na Marlborough House, em comemoração ao Dia da Comunidade das Nações. Gramado ao sol cheio de beldades morenas envoltas em sáris coloridos. Fui apresentado a diplomatas dos dois sexos, que traduziram Hebbel,[5] inventaram novos métodos para misturar cimento, trabalharam para o Banco Real do Canadá, disputaram jogos em festas comigo (“mas é claro que você não se lembra”) em 1956 e investigaram a corrupção do funcionalismo público na Malásia. Edward Heath[6] presente: debatemos todos se ele usa uma lâmpada ultravioleta para conservar seu bronzeado das Bermudas pelo ano inteiro (só pode ser). A rainha também presente, com um ar meio opaco, vestida de verde. Tomei três copos de champanhe quente e fui embora.
15 DE JUNHO
Realização de uma fantasia que me espicaçou a vida inteira. Alguns meses atrás, respondi a um anúncio na revista Time Out que dizia: “Moça obediente deseja ordem na sua vida”. Farejando uma criatura submissa, escrevi a ela ordenando que respondesse à minha carta imediatamente e com detalhes, caso contrário lhe daria uma surra. Três meses mais tarde, ela me respondeu: “Imediatamente!” E três meses depois: “Com detalhes!”, e mais umas vinte palavras. “Fiz de propósito. Mande me buscar.” Fiz o que ela pediu: encontramo-nos em Sloane Square e tomamos uma bebida. Minha primeira pergunta foi: “O que você merece quando é desobediente?” “Uma boa surra.” “Onde?” “No traseiro nu.”
O nome dela é Sally. É bonita e morena, tem trinta e poucos anos, um marido e dois filhos. Recebeu quase 500 cartas; do punhado que ela respondeu, entrou em relações sérias, envolvendo surras, com quatro homens. (Só descobriu que a sua maior felicidade era ser submetida à disciplina quando leu História de O,[7] dois anos atrás. Nada disso entra na sua relação com o marido.)
Perguntei o que acharia de ser disciplinada por um homem e uma mulher ao mesmo tempo. Ela disse que seria o ideal. E assim, na noite passada, às oito em ponto, ela tocou a campainha do número 14 de Pindock Mews, onde Nicole e eu estávamos à sua espera. Eu lhe disse que podia nos perguntar o que quisesse. Logo ficou óbvio que estávamos todos exatamente na mesma sintonia sexual. Abri uma garrafa de champanhe e fizemos um brinde solene: “Às surras!” A atmosfera de feliz antecipação era irresistível.
Em seguida, Nicole e eu assumimos os papéis de um conde e uma condessa que aplicam uma surra na criada nova, por motivo de roubo e bebedeira. Sally vestia longas calcinhas vitorianas com uma fen-da atrás; Nicole, calcinhas com uma abertura abotoada na traseira. Depois de uma repreensão a Sally (ou Sophie, como a batizamos), deitei-a de bruços nos meus joelhos, abri a fenda das suas calcinhas e apliquei 25 palmadas nas suas nádegas gorduchas. Nicole ficou sentada a uns 2 metros de distância, contemplando as bochechas que se avermelhavam. Depois, ela me substituiu e aplicou em Sophie mais doze pancadas com a escova de cabelos, obrigando-a a contar cada pancada em voz alta. Sophie afastou as nádegas como Nicole instruiu, e pudemos ver um extraordinário ânus pequeno, rosado e sem pêlos.
16 DE JUNHO
Mais um comentário sobre o filme de Antonioni. A Lei de Tynan sobre o Cinema Responsável: todos os filmes que tentem diagnosticar a sério os Problemas Humanos Contemporâneos são ruins. Só os filmes históricos, as comédias, as sátiras e os filmes de suspense prestam. Não sei por que é assim, mas é. (Nota: Cidadão Kane é em parte histórico e, em parte, uma sátira.)
2 DE JULHO
Leio novos elogios apaixonados a O Passageiro, de Antonioni, na imprensa americana, e lembro-me da festa, típica dos anos 60, que demos em (ou em torno de) 1967, à qual ele compareceu, quando reunia material para Blow-Up. O nosso tema era a obra de Clovis Trouille.[8] Enchemos o apartamento da Mount Street com figuras feitas em fibra de vidro de garotas vestidas como criaturas da imaginação de Trouille. Na sala, uma delas aparecia usando um chapéu de palha de abas largas, um cinto com suspensórios, meias negras e um morcego de asas abertas atravessado por cima da boceta. No quarto, reclinava-se a garota de Oh! Calcutá!, com o corpo envolto em seda indiana, disposta de maneira a emoldurar seu traseiro nu. Sentada na beira da banheira, havia uma garota vestida de freira, de cigarro na mão, e o hábito arregaçado revelando meias de seda com ligas de seda vermelha.
Entre os convidados estavam Gore Vidal, Richard Harris e Marlon Brando, os dois últimos já bêbados quando chegaram. Marlon entrou comigo no banheiro, trancou a porta e me desafiou a beijá-lo na boca, como prova de amizade. (O que fiz.) Antes, no mesmo dia, Antonioni, que eu só tinha encontrado uma vez, telefonou e me perguntou se podia vir à festa, sobre a qual lhe haviam chegado rumores antecipados. Concordei, e ele apareceu com um terno azul-escuro e exibindo uma expressão grave e envelhecida, lembrando Paul Lukas[9] no papel de um liberal decente em algum filme contra o nazismo. Ele se comportava com tal discrição que muitos hóspedes acharam que fosse o mordomo e lhe pediram gins-tônica, que ele decorosamente foi buscar. Foi a partir dessa festa – ouvi falar mais tarde – que ele formou a sua imagem da “Swinging London”. E a reunião nem foi, na verdade, especialmente depravada: ninguém tirou a roupa, não havia nenhum Beatle ou Stone presente, e nenhuma droga foi consumida, além de maconha. Mas a festa foi muito animada, e me lembro dela com prazer e algum orgulho.
20 DE SETEMBRO
Mais uma morte: Pamela Brown,[10] aos 58 anos. No final dos anos 50, ela se mudou para Nova York, onde eu vivia um casamento infeliz. Lembro-me de um dia memorável que passamos juntos na sua suíte de hotel. Confessei-lhe todos os meus (na época horrivelmente secretos) desejos sexuais, e ela se dispôs alegremente a satisfazê-los: sim, eu surrei a adorável artrítica; trepamos e conversamos carinhosamente, rimos e descobrimos que tínhamos ficado amigos para o resto da vida, mesmo que nunca mais tornássemos a nos encontrar. O triste é que não nos encontramos muito desde então; mas, se pelo menos ela fosse dez anos mais jovem, havia – como acho que nós dois adivinhamos – uma clara possibilidade de nos termos apaixonado.
27 DE SETEMBRO
Com motivos para suspeitar de que Nicole arrumou um novo amante, mando-lhe o seguinte telegrama: “Favor pedir seu namorado comparecer imediatamente – Departamento de Pacientes Externos, Colônia de Leprosos de Chelmsford”.
3 DE OUTUBRO
Festa do qüinquagésimo aniversário de Gore Vidal – quarenta convidados no Mark’s Club, entre eles a princesa Margaret e Tennessee Williams. Faço um breve discurso, dirigindo-me aos convidados como “camaradas”, já que foi hoje também o dia de encerramento do Congresso do Partido Trabalhista em Blackpool, congratulando-me com o Irmão Vidal por ter chegado ao marco de meia tonelada e por ter reunido – e depois preservado – a devida unidade “do nosso grande partido” por quase dois anos e meio. Levamos a princesa Margaret em casa e depois chegamos meio tocados e trepamos, pela primeira vez em muitas semanas.
5 DE OUTUBRO
Do diário de Evelyn Waugh, em agosto de 1943: “Não quero influenciar opiniões ou acontecimentos, denunciar farsas e nem nada do tipo. Não quero ser útil a nada ou a ninguém. Quero apenas fazer o meu trabalho de artista”. Colocando “escritor” no lugar de “artista”, E. W. exprime os meus sentimentos com exatidão. Preciso expulsar do meu ombro o censor do que eu-devia-estar-dizendo e, em vez disso, prestar atenção ao que eu-sinto-de-verdade, por mais que isso possa prejudicar minha reputação. Minha persona e eu nunca combinamos totalmente. O resultado é que nos afastamos e perdi contato comigo mesmo, além da autoconfiança. (E. W. sempre teve o catolicismo como uma bússola interna, que respondia apenas a Deus. Eu precisei me nortear pelo socialismo, que, de maneira infeliz, mas inevitável, nos envolve numa abordagem menos pessoal e mais objetiva da literatura – e nos faz suspeitar de qualquer coisa idiossincrática demais. A frivolidade ocasional é permitida às pessoas religiosas, e nunca aos socialistas.)
6 DE OUTUBRO
Vou a Berlim com a missão de escrever para o The New York Times uma reportagem sobre o estado atual do Berliner Ensemble.[11] Um dia de desastres típicos. Os carregadores de bagagens do aeroporto de Heathrow estão em greve, de maneira que preciso carregar duas malas pesadas quase 1 quilômetro, até o Portão 24, bufando como um fole furado. Quando o avião começa a descer para pousar em Berlim, a menininha à minha direita vira-se para mim, sorridente, e emite um copioso jato de vômito sobre a bandeja do almoço e as minhas calças, devolvendo com juros o que acabara de ingerir da sua própria bandeja. Mais adiante, no mesmo dia, pego um táxi até o Checkpoint Charlie, a única entrada para Berlim Oriental, além do S-Bahn. Burocratas de uniforme me deixaram esperando quarenta minutos, no ponto onde os passaportes são examinados em detalhe e se verificam as declarações sobre o porte de moedas. Depois disso, precisei correr (ou cambalear) bem mais de 1 quilômetro, antes de desabar, na hora exata, na minha poltrona no Berliner Ensemble (para ver A Profissão da Sra. Warren – com o desempenho soberbo de uma jovem de olhos grandes e pálpebras delgadas, direta, vulnerável e muito sensual chamada Jutta Hoffmann, que faz o papel de Vivie).
Decidindo voltar pelo S-Bahn, me esforço para subir e descer vários lances de escada errados, antes de me informarem que, se a pessoa entra pelo Checkpoint Charlie, é por ele que precisa voltar. Saio à caça de um táxi, assisto a uma reprise do transtorno burocrático na fronteira e chego de volta a Berlim Ocidental tarde demais para conseguir um táxi, em meio a um vento gelado e o começo de uma tempestade de chuva de aparência duradoura. Mergulho em desespero numa pizzaria, faço de conta que estou um pouco mais doente do que na verdade estou, e imploro ao dono, com sucesso, que me chame um táxi pelo telefone.
8 DE OUTUBRO
O Ensemble, quatro anos depois da morte de Heli,[12] e dezenove depois da morte de Brecht, parece uma casa mal-assombrada – em parte escrava, e em parte tentando se libertar do seu grande fantasma. Para evitar métodos rigidamente brechtianos, mergulhou num ecletismo fantasioso que não é estilo nenhum, ou (às vezes – por exemplo, na nova produção de A Mãe) é uma estranha reversão ao expressionismo. Reescrever o Manifesto Comunista: um espectro ronda o teatro europeu – o espectro brechtiano. Ele ainda é a influên-cia mais importante não só do teatro alemão, como na França (Planchon), na Itália (Strehler) e também na Inglaterra (Gaskill et al.).[13] Nada de novo tomou o seu lugar depois de quase duas décadas.
19 DE OUTUBRO
A influência mais poderosa sobre as artes no Ocidente é o cinema. Romances, peças e filmes estão cheios de referências, citações e paródias de velhos filmes. Dominam o subconsciente cultural porque os absorvemos nos nossos anos de formação (muito menos do que absorvemos livros, por exemplo) e tornamos a vê-los na televisão depois que crescemos. As primeiras duas gerações alimentadas basicamente por filmes chegaram agora a uma idade em que assumiram o comando dos meios de comunicação: é assustador ver como foi profunda – tanto no comportamento quanto no trabalho – a influência do cinema sobre elas. Ninguém levou em consideração o impacto imenso, que seria produzido pelo fato de os filmes serem permanentes e facilmente disponíveis da infância em diante. À medida que a quantidade de filmes aumenta, a sua influência aumentará, até que cheguemos a uma civilização totalmente moldada segundo valores e padrões de comportamento inspirados no cinema.
Ontem à noite, num restaurante, horrorizada ao me ver fumando um cigarro, Kathleen contou aos amigos presentes o aviso do meu médico, de que, a menos que eu desista do hábito, hei de morrer em cinco anos. Compreendo a sua preocupação, mas preferia que ela não tivesse divulgado em público essa informação ultrapessoal. Vai estar espalhada por toda Londres em um ou dois dias. Qualquer pessoa que se pergunte se deveria me contratar como diretor de cinema irá concluir que sou um investimento inseguro, e abandonará a idéia.
31 DE OUTUBRO
Uma palavra útil que eu ignorava: “ergofobia”, cujo significado é “medo ou ódio do trabalho”. Finalmente posso me definir numa palavra.
3 DE NOVEMBRO
Um fim de semana dourado de outono com Kathleen e as crianças, num hotel da aldeia de Upper Slaughter, em Cotswold. O vocabulário de Matthew vem crescendo depressa, e agora ele pode ser considerado uma pessoa com quem é possível conversar. Roxana já passou por essa prova há muito tempo. Os dois são simplesmente de tirar o fôlego pela beleza. Vendo Matthew comer patê (pelo qual, aos 4 anos, desenvolveu o gosto de um connaisseur) e ouvindo Roxana me pedir que lhe explique o conceito de democracia, surpreendi o olhar de K. do outro lado da mesa do almoço (rosbife e Borgonha) e senti, quase pela primeira vez, que éramos uma família – isto é, que cada qual tinha com os outros três laços robustos e duráveis de afeto, que ele/ela nunca sentiria por outra pessoa.
15 DE DEZEMBRO
Observação, vendo o péssimo trabalho de uma atriz num filme: “Ela representa tão mal que precisaram dublar até os seus passos”.
1976
14 DE MARÇO
Escrevo ao Sr. Shawn,[14] incluindo uma lista de doze pessoas, para escolher as seis sobre as quais escreverei para a The New Yorker. Quando lhe perguntei por que a revista não publicava mais perfis críticos, ele respondeu: (a) que embora tivesse publicado perfis “bem-humorados” ou satíricos, nunca tinham sido realmente hostis, e (b) que ele simplesmente sentia horror diante da idéia de destruir gente pela imprensa, e que preferia deixar isso a cargo de outras revistas. Para ele, o simples fato de ser ignorado pela The New Yorker já é castigo suficiente. É interessante que ele nem pense em publicar matérias sobre pessoas cujas carreiras estejam em declínio, e que tenha se recusado a considerar Gore Vidal merecedor de um perfil da The New Yorker.
27 DE MARÇO
Dívidas gigantescas: ontem o telefone foi cortado por falta de pagamento, e o mesmo irá acontecer com o gás na semana que vem. Kathleen diz que precisamos assumir um ar alegre e dar a impressão de que curtimos nós mesmos. Meu comentário: “Não gosto mais de curtir a mim mesmo”.
4 DE ABRIL
O rádio do carro toca. Percebo que, durante a II Guerra Mundial, o foco da nostalgia de todo mundo era a América do Sul. Uma Noite no Rio, todo o culto a Carmen Miranda – eram um reflexo do quanto desejávamos uma área razoável do planeta onde ninguém estivesse sendo bombardeado ou invadido e onde nada fosse mais importante do que rimar “casal apaixonado” com “um céu estrelado”.
15 DE ABRIL
Jantar com Jane e Kingsley Amis[15] em sua residência senhorial em Barnet (recém-vendida: mudam-se em julho para Hampstead, porque Kingsley quer proximidade com a vida urbana – ou seja, os pubs). Uma comida esplendidamente preparada – a minha ex-amante Jane é uma cozinheira clássica – e vinho de escolha lisonjeira. Kingsley ansioso por retribuir o vinho que lhe servimos em Thurloe Square (a sua escolha: Haut Brion 1960 – caro, mas bem além do apogeu). Os outros convidados são George Gale, Paul e Marigold Johnson.[16] Kingsley está ficando cada vez mais paranóico no seu horror ao socialismo, e mesmo à social-democracia. Tento evitar uma discussão franca, mas não consigo. Nem mesmo a intervenção bem-intencionada de Gale, um tory desgarrado que tenta convencer Kingsley de que as suas convicções são inconsistentes, adianta.
Quando servem os licores, Kingsley declara calmamente que sou um amante da tirania e que proponho transformar a Inglaterra numa vasta prisão. “É mais ou menos isso a sua idéia, não é?” Só posso responder com um sorriso tolerante, encolher os ombros e murmurar que sou um socialista libertário. Ele responde que não se deixa enganar nem um minuto por isso – trata-se de um simples disfarce para as minhas verdadeiras intenções (minhas e dos meus “amigos esquerdistas”): a criação de um Estado policial, no qual ele será executado, provavelmente depois de uma temporada no Arquipélago Gulag. E mais, diz ele, eu não hesitaria em concordar com a sua execução; na verdade, podia até estar reunindo provas contra ele naquele momento.
Sem conseguir acreditar no que ouvia, eu o desafio a repetir essa alarmante afirmativa, e ele a repete (em termos ainda mais explícitos), pois não há dúvida no seu espírito de que qualquer pessoa simpática ao socialismo seja capaz de assassinar um amigo a sangue-frio. É horrível ver um homem, de resto tão inteligente, emitir opiniões desse calibre. Decido ir embora discretamente, pois não tenho como continuar aceitando a hospitalidade de alguém tão sinceramente convencido de que estou envolvido numa conspiração consciente para destruí-lo!
No carro, a caminho de casa, vejo-me envolvido numa briga sem sentido com K., de quem sempre suspeito (injustamente) de tomar partido contra mim em situações desse tipo. Para meu horror, me descubro dando-lhe uma bofetada: a primeira vez que bato nela por raiva, nos nossos doze anos juntos. (No dia seguinte, ela nega que seja assim, e me diz que eu já a ataquei numa ocasião anterior. Pergunto quando foi. “Você jogou suas calças em cima de mim”, responde ela, esvaziando consideravelmente a dramaticidade da ocasião.)
A primeira grande edição dos poemas de Brecht em inglês está para ser lançada. Mandam-me um exemplar adiantado: 500 páginas de ouro, pelo menos quatro quintos delas antes indisponíveis em inglês. Não são jogos de palavras: as palavras são usadas numa forma de escultura em granito. O livro deveria forçar todos os anglo-saxões a admitir tardiamente que B. B. é o maior poeta do século, que julgavam antes inglês. Seu estilo é um eco das nossas mentes.
Normalmente, sou um leitor que não se incomoda em dobrar as bordas das páginas dos livros, mas este me parece tão sagrado que, pela primeira vez que me lembre, me vejo marcando suas páginas memoráveis com tiras de papel. E usei muito papel.
18 DE ABRIL
Tendo terminado de ler o monumental volume dos poemas de Brecht, no qual o poeta, ao mesmo tempo que se mantém um homem reservado, dá o seu testemunho e participa da história pública do seu século – pego os Poemas Reunidos, de Robert Graves. Embora Robert tenha vivido bem mais do que B. B., nasceram em datas não muito distantes e ambos atravessaram as duas grandes guerras. A julgar pelos poemas que publicou, no entanto, tem-se a impressão de que Robert passou a maior parte da vida adulta na cama. Ou, se não na cama, pelo menos convidando alguém para a cama, ou fazendo reminiscências sobre a cama. Parece ter vivido num casulo! E como é estreito o seu horizonte, comparado ao de B. B., como ele é limitado à autogratificação!
4 DE MAIO
A Playboy me pediu para abordar Marlon Brando e pedir uma entrevista para um número próximo. Liguei para ele, em Roma, e fiz-lhe a proposta. “Prefiro ser fervido num caldeirão de urina”, respondeu-me, em voz baixa. Digo que as perguntas seriam minhas e não da Playboy, e que eu era apenas colaborador da revista, não tinha nada a ver com sua máquina publicitária. “Nunca entrei num Playboy Club”, declarei num tom brusco. Uma pausa. “Ken”, disse Marlon. “Por que você me disse isto? Tenho bem aqui na minha frente uma foto de você com a sua mulher, bebendo num Playboy Club.” E era verdade: eu tinha mesmo ido à noite de abertura do Playboy Club de Londres. Ele me pegara mentindo, e fiquei mais desconfortável do que Steiger[18] no banco do táxi de Sindicato de Ladrões, na hora em que Brando vira para ele e lhe diz, numa voz carregada de comiseração, espanto e repreensão moral: “Foi você, Charlie – foi você“.
20 DE MAIO
Fui com K. (no vestido de Garbo de Como me Queres, que mandei copiar para ela) a um baile inspirado nos anos 20. Eu vestia um peignoir de lamê azul, com lantejoulas, calções, suspensórios, meias pretas de mulher e uma peruca arrumada no estilo de Louise Brooks.[19] E uma piteira de marfim com 20 centímetros de comprimento. E me apresentava, quando as pessoas perguntavam quem eu era, como lorde Baden-Powell.[20] Raspei as pernas para a ocasião. Embora eu jamais fosse querer ser mulher, adoro a idéia de transar com uma delas vestido de mulher; e prefiro muito mais a sensação das minhas pernas sem pêlos. O que não me transforma num travesti, mas significa que gosto de explorar possibilidades sexuais que estão fora do alcance de machões de calças jeans e camiseta. (Considero uma falha na minha formação nunca ter ficado excitado com visão ou com a idéia de um homem.) O triste é que a maioria dos outros convidados era de ricos chatos.
25 DE OUTUBRO
A rainha abre a temporada do National Theatre. Larry faz um discurso tipicamente floreado no palco do teatro que leva o seu nome, decidindo homenagear uma dúzia de políticos que menciona um por um, mas sem lembrar o nome de qualquer dramaturgo, ator ou diretor – com a exceção, claro, de Peter Hall.[21] A escolha da peça é perversa, quase ao ponto da loucura: um Goldoni minimalista chamado Il Campiello, desprovido de graça, calor ou qualquer tipo de interesse. A companhia grita, bate os pés no palco e corre de um lado para o outro, exibindo todos os sinais de pânico. O melhor desempenho foi o de um bebedouro, que não parou de jorrar durante toda a peça – mijando discretamente em tudo que esperamos do National Theatre. Durante a segunda metade, Larry, que estava sentado ao lado da rainha, cochilava visivelmente. Sua Majestade logo percebeu e lançou um olhar efervescente na sua direção, com medo talvez de que ele desabasse da cadeira. A sesta durou cinco minutos, até que Larry, espantado por algum momento especialmente ruidoso do espetáculo, retornasse ao estado de vigília. Durante o intervalo, Ben Travers[22] me disse: “Se eles precisavam mesmo abrir a temporada do teatro com uma peça horrenda, por que não escolheram uma peça horrenda inglesa?” Ele resumia os sentimentos da maioria dos presentes. Que desastre! Mas será que a imprensa irá descrevê-lo assim?
4 DE NOVEMBRO
Ao fim de quatro dias na Califórnia, ainda estou desorientado. K. alugou para nós uma casa imensa, no estilo das estrelas de cinema, em Santa Mônica. O sol martela todo dia a mais de 30 graus. O que eu fiz – e mais preocupante -, o que terei de fazer para merecer isso tudo?
7 DE NOVEMBRO
Na Califórnia, vivo num oásis cercado de carros usados e vou a festas no alto das colinas, onde senhoras de meia-idade conversam sobre masturbação. E penso: o que este homem estará fazendo nesse cenário, e quem vai pagar o aluguel?
23 DE NOVEMBRO
Em Londres, visto smoking no máximo uma vez por ano. Aqui, na Califórnia informal, terra do traje esporte,vesti black-tie três vezes na semana passada. (Na estréia de O Último Magnata; domingo, no casamento de Marisa Berenson com um jovem extremamente desprovido de atrativos chamado Randall – tudo debaixo de uma lona circense orlada de franjas, e com a cerimônia conduzida por um religioso sem denominação definida, que soava como um zen-budista ortodoxo grego; e, ontem à noite, num jantar na casa de Swifty Lazar,[23] que tentei desmarcar à tarde, mas tive a resposta de que precisava ir, pois de outro modo estragaria toda a disposição dos convidados planejada por Mary). Era uma cena de grande esplendor provinciano, com um pianista tocando (“Swifty também tinha chamado um saxofonista”, contou-me Mary, “mas eu pus o homem para fora”) e a presença do tout Hollywood – Jack Nicholson, Anjelica Huston, Warren Beatty, Dinah Shore, Merle Oberon, Liza Minnelli, Peter Bogdanovich (simpático) e mais alguns transitórios – Lew Grade e Cole Lesley, cuja biografia de Noel Coward tem sido uma grande fonte de consolo e encantamento nas últimas semanas.
A rechonchuda Sue Mengers[24] senta-se excitada no sofá. “Este maldito Swifty!” diz ela, com os dentes cerrados. “Vou dar um jantar amanhã à noite e ele convidou exatamente as mesmas pessoas. Jurou para mim que não ia convidar Warren, e adivinhe quem acaba de entrar pela porra da porta! Me dá vontade de cuspir no chão. Ora, ele que se foda, vou mostrar ao escroto: amanhã Barbra Streisand vai lá em casa, custe o que custar.” Tudo isso inteiramente a sério. Mais tarde, ela se emparelha a mim e sibila: “E Johnny Carson também, que diabo!” É tudo muito estranho.
24 DE NOVEMBRO
Cumprindo metade do prometido, Mengers responde com Streisand (embora ela chegue tarde demais para o pombo recheado – lembrando um saco escrotal entupido de arroz selvagem – servido como jantar). O elenco de apoio conta com nomes como Warren Beatty, Swifty Lazar, Peter Bogdanovich (ainda simpático), Ryan O’Neal, Tatum O’Neal, Steven Spielberg (que dirigiu Tubarão), James Coburn, Dudley Moore, Tuesday Weld, Angie Dickinson, Tina Sinatra – e apresentando Ken Tynan, que fumava demais.
25 DE NOVEMBRO
Jantar do Dia de Ação de Graças chez Billy e Audrey Wilder. Entre os convidados, Louis Malle, George Burns e, é claro, Sue Mengers. Sue está novamente contrariada, por motivos que não explica. De maneira igualmente inexplicável, começo a boliná-la ao longo do jantar. Desço a mão pelas costas do seu vestido muito decotado para apertar seu traseiro enorme. Não tenho a menor idéia do motivo pelo qual fiz isso. Ela responde com gemidos satisfeitos e movimentos íntimos dos joelhos. Seu tamanho intimidador acabaria funcionando como um fator de dissuasão, caso as coisas avançassem demais. Mas, por outro lado, haveria uma área maior de nádegas para açoitar.
21 DE DEZEMBRO
Jantar na casa de Christopher Isherwood[25] com Gore Vidal e Tony Richardson[26]. Quando lhe peço que faça a lista das figuras do século XX cujas cartas e/ou diários ele ficaria mais animado em ler, Christopher responde: E. M. Forster (de quem recebeu muitas cartas). Mais adiante, acrescenta – o que me deixa encantado – que, se houvesse alguma coisa inédita escrita por Jean Cocteau, este ficaria num segundo lugar bem próximo. De blue jeans, com os cabelos grisalhos curtos e exibindo ótima forma, Christopher admite que sua geração literária evitava os franceses (era na Alemanha que estavam os rapazes) e ele sempre lamenta nunca ter conhecido Cocteau. Percebo que Gore, tão exibido em outros ambientes, mostra-se contido e menos autoritário na presença de Christopher, a quem admira muito. Cumprimento Christopher, cujo novo livro vi resenhado, mas ainda não li, por sua contribuição para a literatura do testemunho – isto é, relatos em primeira mão de acontecimentos significativos – que, desconfio, ainda virá a ser a mais duradoura do nosso tempo. Ele me surpreende e me lisonjeia, dizendo que concordou com a minha opinião sobre esse tipo de literatura quando a manifestei pela primeira vez, mais de uma década atrás.
Durante o jantar, Gore nos conta que Noel Coward o chamou para a cama, na Itália. Quando ele entrou no quarto, Graham Payn[27] já estava nu entre os lençóis. Noel entrou alvoroçado e tirou a roupa. Gore enrabou Graham, e Noel masturbou-se com o pau encostado na bunda de Gore. Depois de gozar muito depressa, levantou-se, vestiu-se em segundos e saiu para o trabalho, deixando por conta de Gore e Graham compartilhar a tristesse pós-animal.
28 DE DEZEMBRO
Fui a uma “clínica de clister” que anunciava moças dispostas a serem surradas. A namorada que me designaram revelou-se uma negra, com a constituição de um guerreiro watusi e cabelos afro que lembravam um domo geodésico. Ela achou que eu queria engalfinhar-me com ela e abriu a conversa informando-me, em tom ameaçador, que pedalava 30 quilômetros por dia até o trabalho e mais 30 quilômetros de volta para casa. Engoli em seco e cumpri todo o ritual de deitá-la atravessada nos meus joelhos, mas foi tão excitante quanto aplicar uma surra em King Kong (as nádegas dela lembravam mármore preto). Além do mais, nunca obtive nenhum prazer em aplicar surras em moças negras: entra em conflito com as minhas convicções em matéria de liberdades civis.
1977
6 DE MARÇO
Música para o meu serviço fúnebre: o movimento lento do Quinteto para Clarineta, de Mozart, o adágio da Sonata nº 2 para Trompete e Órgão, de Viviani, e A Day in the Life, dos Beatles.
Ainda estou imobilizado pelo vírus da gripe que me atacou há uma semana, em Madri, estragando uma viagem de pesquisa que fiz até lá com Nicole, a maior parte da qual passamos numa cama de hotel, enquanto médicos espanhóis me usavam como alvo para as banderillas que chamam de seringas hipodérmicas. Estou agora com um mês de atraso no meu trabalho para a The New Yorker; as dívidas se acumulam em Los Angeles e a renda é zero.
No último dia em Madri, saí da cama de qualquer jeito, aluguei um carro e levei Nicole para um passeio a La Granja (primeira visita: linda e na neve da serra de Guadarrama) e Segóvia, que vi pela última vez com Elaine, 25 anos atrás (tinha esquecido – se é que jamais soube – como era linda a cidade no alto da encosta, coroada pela catedral, com o Alcázar numa das extremidades e o aqueduto, estendendo-se através do vale, na outra). Claro que o carro alugado morria cada vez que parávamos e a volta para Madri, na hora do rush (“la hora del rush“, como é chamada na Espanha moderna), foi um pesadelo de acidentes evitados por centímetros, que culminou com a minha tentativa de fazer um retorno em U: o carro morreu no meio da curva, e os automóveis nas quatro pistas de alta velocidade tentavam nos contornar. Tudo isso e, ainda por cima, eu tossindo sem parar. Acabei voltando de avião, com escala em Londres, e recorrendo a uma cadeira de rodas em
Heathrow e, novamente, em Los Angeles. Muito divertido, muito divertido.
19 DE ABRIL
Em 1789, o Marquês de Sade foi solto da Bastilha e enviado para um hospício em Charenton, do qual foi solto no ano seguinte. Tinha 50 anos de idade. Começou um caso amoroso com uma atriz de 30, chamada Marie-Constance Quesnet, que foi leal até a morte do marquês, 24 anos depois. “Foi a única relação bem-sucedida da vida de Sade”, assinala Edmund Wilson. Continuou sendo a única relação mesmo quando ela foi morar com Sade em Charenton, após ele tornar a ser internado ali, onde passou os últimos dez anos da vida, meio cego e cada vez mais doente. Quando eu fizer 50 anos, quem irá morar comigo em Charenton?
22 DE ABRIL
Um amigo do Evening Standard escreve para me cumprimentar pelo meu artigo sobre Noel Coward para a The New Yorker. E me conta um episódio para demonstrar que a presença de espírito de Noel era realmente notável. Estava conversando com Noel ao telefone quando ouviu no rádio o anúncio da morte do general De Gaulle. Transmitiu a notícia a Noel, e disse: “Eu me pergunto sobre o que ele e Deus vão conversar no céu”. “Isso”, respondeu Noel, “depende, naturalmente, da fluência de Deus em francês.”
30 DE ABRIL
Um jantar bizarro chez Sue Mengers, que nos recebe com um monólogo sobre os horrores da escassez de água (houve uma seca na Califórnia e medidas especiais contra o desperdício estão sendo postas em prática): “O que vai acontecer conosco, os judeus ricos? E as nossas piscinas? E as privadas? Tenho uma tal mania de limpeza que, toda vez que passo pela porra da privada, dou a descarga, por via das dúvidas”. Outros convidados: Ryan O’Neal (que finalmente posso apreciar e acho muito engraçado), Sammy Davis Jr. e sua linda mulher, Barry Diller (chefe da Paramount), alguma Von Furstenberg (uma costureira cara que me irrita tirando fotos com flash a noite inteira) e Truman Capote, com quem eu não falava desde a nossa famosa altercação, doze anos atrás. Fico um tanto apreensivo, mas nem precisava ter me preocupado; quando ele chega, sussurra para Sue que as duas pessoas que mais o odeiam no mundo estavam presentes – a outra era Sammy, que (descubro) descreveu-o no programa de Johnny Carson como um sujeitinho sem o menor talento.
A conversa durante o jantar é hesitante, para dizer o mínimo. Ryan e eu usamos um ao outro como escada e fazemos boas piadas, mas Truman só fala com Sue e ninguém mais fala. Sammy, simpático, ri de Ryan e de mim. Enquanto isso, a costureira dispara o flash. Sammy e a mulher saem (fogem) cedo. Sue declara em tom jovial a Ryan e a mim: “Menino, que bela confusão eu fiz!” Uma jovem modelo descolorida que Truman trouxe consigo é cativada por Ryan e fica na festa, presumivelmente para ir para casa com ele.
Levamos Truman de carro até o Beverly Wilshire, onde ele insiste em nos convidar para uma bebida. Ou ele está sob o efeito de uma droga que paralisa a mente ou é vítima de alguma forma de doença do sono. A antiga vivacidade desapareceu completamente: “Será que ele ainda é”, pergunta-se K. mais tarde, “o bobo da corte do Beautiful People?” A sua voz se transformou num vagido arrastado e os gestos obedecem a um ritmo que faria uma preguiça parecer um mico nervoso. Por uma hora, ele nos submete a uma ária repetitiva e quase inaudível de narcisismo: parece que teve um caso com um banqueiro, mas ultimamente transferiu o seu afeto para a filha do mesmo, a modelo que Ryan capturou. “Quer me dizer que trepou de verdade com ela?”, pergunto com uma franqueza induzida pela anfetamina. “Trepei”, responde ele com um rosnado letárgico (e nem de longe crível). Nossa briga, ao que parece, está totalmente esquecida.
29 DE MAIO
Tarde de domingo tranqüila. Levanto-me depois de ter ficado tomando sol nu no gramado e descubro um líquido amarelo e viscoso escorrendo da ponta do meu pau. Isso, levando em conta que não tive qualquer contato sexual com ninguém ou nada (exceto a minha própria mão direita), desde a minha estada em Londres, é realmente além da conta. Falência, enfisema, paralisia da vontade – e agora isso! Sinto que Deus está me reafirmando o Seu ponto de vista com um excesso francamente vulgar.
30 DE MAIO
Um exame de sangue que fiz semanas atrás, na Universidade de Califórnia, revelou que tenho uma deficiência enzimática genética (bastante rara: só afeta cerca de 0,001% da população), que torna os meus pulmões especialmente vulneráveis ao tabaco. Se eu fumar, eles se degeneram muito mais depressa do que os das outras pessoas, e a morte é imensamente apressada. Ocorre que sou capaz de fazer quase tudo sem fumar, exceto escrever. Assim, se continuar a escrever como sempre escrevi – com um cigarro na mão ou na boca -, é provável que venha a morrer em relativamente pouco tempo. Por outro lado, se não escrever, vou ficar arruinado (no momento, tenho 300 dólares no banco, saques a descoberto em Londres num montante de mais de 5 000 libras, e vivo do que resta do dinheiro das remessas de Genebra). Não é uma escolha fácil. Assim, opto por escrever parágrafos como este no meu diário, cheios de autocomiseração e auto-exoneração. (O fato de saber que são auto-exoneradores, claro, não me exonera em nada.)
14 DE JULHO
Festa na casa de Lazar para assinalar a partida de Freddie de Cordova[28] e a mulher, que vão viajar por uns dez dias. (Qualquer desculpa serve para uma das festas de Lazar.) Muitos convidados chegam sob o efeito da cocaína e muitos outros se embebedam; outros, ainda, chegam tão cheirados quanto bêbados. Conheço e gosto de Elizabeth Ashley[29] (cheirada), cuja mãe, se entendi direito o que ela me contou, era bailarina circense e andava na corda bamba, enquanto seu pai traficava drogas. Percebendo que ela aperta os polegares com os outros dedos enquanto fala, eu lhe digo para soltá-los. “Se eu soltar”, diz ela, “começo a chupar na mesma hora.” É meio doida, frenética, mas muito simpática. Johnny Carson está presente, sem Joanna, sobre cuja situação ele se mostra um tanto vago. Mas está sempre elegante. Decido que Carson é a ponta visível de um iceberg chamado J. Carson. Tony Curtis, Tony Randall, Richard Brooks e o casal Gregory Peck estão entre os convidados.
Greg, bem embriagado, mostra-se bastante defensivo porque acabou de estrelar um filme idólatra sobre o general MacArthur e, na qualidade de ex-liberal transformado em conservador, é hipersensível às acusações de reacionarismo. Entrega-se a explicações desnecessárias sobre a maneira como MacArthur levou a democracia e a reforma agrária ao Japão. Sugiro que ele está exagerando. E ele se queixa de que as pessoas o tratam como se tivesse acabado de fazer o papel de Richard Nixon. “É diferente”, digo eu. “Nixon só conspirou para perverter o rumo da justiça. MacArthur conspirou para perverter o rumo da história.” “Estou vendo que fui cair num ninho de liberais”, responde Greg.
Em seguida, ele me conta a história espantosa do filho único de MacArthur, estimulado pelos pais (desde a mais tenra infância) a vestir as roupas da mãe. Nos jantares, quando tinha 7 ou 8 anos de idade, mandavam-no envergar as roupas da mamãe para divertir os convidados. “Como ele é bonitinho!”, exclamavam todos. O resultado é que se transformou num travesti em tempo integral e hoje mora no Greenwich Village, onde é uma drag queen de meia-idade. O mais estranho é que MacArthur parece não ter feito objeção e o visitava no seu apartamento, entregando-se ao consumo altaneiro de alguma bebida, enquanto uma horda de travestis saltitava à sua volta. O quadro lembra uma típica refeição matinal com Tibério, em Capri.
Seria MacArthur (a) inocente demais para entender alguma coisa sobre a homossexualidade e o travestismo ou (b) tolerante e sofisticado demais para se incomodar? Questão fascinante para algum outro filme responder: nem preciso dizer que o filme de Greg evita totalmente o assunto.
18 DE JULHO
O Sr. Shawn telefona para dizer que achou o meu perfil de Tom Stoppard, de 28 mil palavras, “irresistível – absolutamente maravilhoso”. Fico fora de mim de satisfação.
21 DE JULHO
Um cheque no valor de 22 mil dólares[30] – o triplo do valor estipulado em contrato para cada perfil – chega da The New Yorker. Fico atônito. Por um dia, me torno o jornalista mais bem pago do mundo.
13 DE AGOSTO
Kathleen volta depois de duas semanas em Londres. Haja o que houver, somos o centro da vida um do outro. Na sua ausência, eu sou Saturno sem os anéis, um planeta tomado pela melancolia do chumbo. (E isso é verdade apesar de, no momento, haver mais mulheres simultânea e confessadamente apaixonadas por mim do que nunca – quatro, no total!)
14 DE DEZEMBRO
Menos de 600 dólares no banco daqui, saques a descoberto de 5 100 libras no banco de Londres, contas não pagas.
Meu artigo de 28 mil palavras sobre Stoppard saiu na The New Yorker. Não é inexpressivo, mas acho que é um pouco além da conta e não consegue demonstrar por que Tom mereceu um tratamento tão extenso.
1978
MAIO-SETEMBRO
Não escrevi sobre os acontecimentos deste verão devastador – o período mais turbulento e destrutivo da minha vida – e agora só o farei de forma telegráfica. Não me disponho a revivê-lo, nem mesmo em palavras. Em maio, passei quatro dias felizes em Rochester, no estado de Nova York, com Louise Brooks, que era uma alegria – inválida, mas parecendo um passarinho, hilariantemente indiscreta (afirma que, quando se masturba, mesmo aos 71 anos, “eu me sento naquele sofá e a minha boceta jorra líquido até aquele toca-discos, do outro lado do quarto. São mais de 5 metros!”), junto com histórias detalhadas de seus casos com Chaplin, Hearst, Pabst (!) etc.
Tinha planejado passar o verão numa villa em Mojácar com Nicole, tirando o mês de julho para uma viagem com Kathleen e as crianças, atravessando a Espanha de carro para irmos assistir à festa de São Tiago, em Santiago de Compostela. Eu devia ter percebido que o destino não estava de acordo, quando o meu avião de Rochester para Nova York ficou preso em terra, devido a um defeito no motor. Bagagem transferida para um segundo avião, que também exibe problemas no motor. Sou finalmente encaminhado a um terceiro avião e reencaminhado a Paris, via Buffalo, Toronto e Amsterdã, em quatro companhias diferentes. Chego e descubro que toda a minha bagagem (oito malas) tinha se extraviado. Apareceu, em Varsóvia, dois dias depois. Encontro Nicole (ficamos num delicioso hotelzinho, perto da Étoile, chamado La Résidence du Bois) e vou ao estacionamento público buscar o Jaguar, que a minha secretária inglesa trouxe de Londres. Descubro que a direção hidráulica quebrou: impossível (menos para o Super-Homem) dirigir o carro sem ela. Passo três dias guiando pacientemente o carro pelas ruas de Paris, à procura de conserto. Finalmente, numa oficina distante, além do Boulevard Périphérique, encontro um mecânico capaz de dar um jeito. Partimos para o sul. Dois bons dias, em que comemos no Hotel de la Poste e chez Point. E então, logo que atravessamos a fronteira espanhola, um estrondo ensurdecedor: um pneu não furou, explodiu. Estávamos a mais de 160 quilômetros por hora na auto-estrada, e o carro corcoveia como um cavalo chucro. Nicole, por uma bênção, troca o pneu: o velho ficou tão destruído e rasgado que jogamos a roda inteira fora. (Erro grave: não existem rodas de Jaguar na Espanha e, depois de meses de procura, sou forçado a pedir uma sobressalente da Inglaterra, que me é enviada de avião a um custo de quase 200 libras.)
A villa em Mojácar é esplêndida, a 100 metros do mar: praias vazias, tempo perfeito. Enquanto trepo com Nicole, com um certo excesso de entusiasmo (pois antes dessa viagem, na Espanha, não fazia sexo com ela desde novembro passado), torço e curvo meu pênis, sentindo uma dor lancinante. Em seguida, o pênis dói ao toque, quando fica meio-ereto, o que restringe seriamente a atividade sexual. Meses mais tarde, descubro que arrebentei um vaso sangüíneo no pênis: formou-se um tecido cicatricial que endureceu, fazendo com que o pau assumisse uma forma de ampulheta, impedindo o fluxo do sangue. Isso significa que nunca mais conseguirei uma ereção plena e, também, que o processo que leva ao ponto da ejaculação tornou-se longo e exaustivo.
Sofro de acessos de extrema lassidão, efeito retardado, talvez, de dirigir quase 2 500 quilômetros, de maneira que Nicole sugere que eu passe três dias de cama. Concordo. Por volta da hora do almoço do primeiro dia, estou dormindo no quarto. Nicole foi à praia. Acordo às 4 horas, quando ela volta, e descubro que a minha câmera Nikkormat, a caneta de ouro, quase mil dólares em pesetas e a sacola de mão foram roubadas, esta última contendo meu passaporte (com visto americano), carteiras de motorista (do Reino Unido e da Califórnia), cartões de crédito, passagens de avião e cheques de viagem no valor aproximado de 14 mil dólares. Tudo subtraído do meu quarto enquanto eu dormia: a sacola de mão estava na mesa de cabeceira. Além do mais, a porta do quarto estava fechada. E se o ladrão tivesse entrado e eu estivesse acordado? Vizinhos garantem que dei sorte: uma mulher, numa casa próxima, acordou enquanto os ladrões estavam no seu quarto, semanas atrás, e teve as rótulas arrebentadas a tiros.
Então começa a rotina insuportável de relatar o roubo à polícia, às companhias de cheques de viagem, aos bancos, às embaixadas, às agências de viagens, tudo complicado pelo fato de que a villa não tem telefone, que todos os telefones de Mojácar estão quebrados, e que o ponto de contato mais próximo com o mundo exterior é um telefone público, numa aldeia a 10 quilômetros. A American Express se recusa a me reembolsar um centavo se eu não viajar 300 quilômetros até a sua sede, em Granada, e prestar uma declaração juramentada de que o roubo ocorreu de fato. Exigem, ainda, uma declaração assinada do chefe de polícia (levam três semanas para reembolsar a minha perda; nunca mais usarei os serviços deles). Enquanto isso, um caminhão, passando perto demais numa estrada da montanha, quase arranca a carroceria do lado esquerdo do Jaguar, que é recolhido à oficina parecendo a bochecha de Al Capone. Finalmente (ou foi o que pensei), um longo paroxismo de tosse, provocado por um pedaço de carne entalado na garganta, produz, na manhã seguinte, a minha primeira hérnia desagradavelmente próxima do saco escrotal, do lado esquerdo. O médico local recomenda cirurgia imediata e prescreve uma funda, que se revela uma invenção medieval com um efeito antiafrodisíaco comparável ao de um cinto de castidade. A partir daí, a atividade sexual se interrompe por completo.
Fico emocionalmente abalado à medida que se aproxima a data para a substituição de Nicole por Kathleen e as crianças na villa. (Como achei que podia me safar dessa, nunca vou saber, mas não há dúvida de que fui devidamente punido pelo meu húbris.) Nicole, que não conseguiu lugar no avião, permanecerá em Mojácar, na casa de amigos, depois da chegada de K. Atmosfera carregada de eletricidade. Minha reação é simplesmente um desejo de ir dormir para sempre.
Troco um culpado au revoir com Nicole e zarpo numa viagem rumo ao norte com a família. K. assume o volante: não sou mais capaz de dirigir. Lembro-me de hotéis magníficos (o Landa Palace próximo a Burgos, o Reyes Católicos – um mosteiro do século XVII reformado) e igrejas românicas de pedra dourada ao longo da rota de peregrinação para Santiago de Compostela. E também lembro-me da extraordinária Catedral de León, que tem a maior proporção de vitrais por parede de todas as catedrais do mundo. Mas estou virtualmente imobilizado pelos problemas pulmonares e, em León, desabo e passo dois dias incapaz de sair da cama. Segundo K., balbucio bobagens sem sentido: desse episódio não lembro nada.
K. nos conduz de volta a Madri e, em seguida, toma um avião com as crianças até o sul da França, onde ficarão hospedados com os Anstruther. Dois amigos de Mojácar, Roger e Hilary Bush, vêm encontrar-me em Madri. Hilary levará o carro de volta até Londres, enquanto eu tomarei um avião para a Califórnia. Na nossa primeira noite juntos, eu os levo para jantar no Valentin. Saímos do restaurante à meia-noite; assim que ponho os pés na calçada, um jovem espanhol, correndo a toda velocidade, me ataca, agarra a minha (nova) sacola de mão e desaparece num beco. Corro atrás dele, mas tropeço no meio-fio, abrindo uma ferida feia nos dois joelhos. Roger tenta perseguir o ladrão, mas este logo consegue despistá-lo.
Dentro da sacola, nem preciso dizer, estão meus (novos) cheques de viagem, meus (novos) cartões de crédito, meu passaporte (com o visto americano expirando dali a uma semana), as carteiras de motorista, cerca de 700 dólares em pesetas – e mais a minha agenda, documentos financeiros e particulares, e as passagens aéreas. A mesma contradança burocrática recomeça, dessa vez a uma temperatura de quase 40 graus, e com a desvantagem de precisar pedir reembolsos e substituições a muitas pessoas que, dessa vez, mostram-se claramente relutantes em acreditar que um raio tenha caído duas vezes, num prazo tão curto, no mesmo lugar. Ah, a agonia das filas nas embaixadas, delegacias de polícia, agências de viagem, bancos e companhias de cheques de viagem, tendo de preencher novamente formulários intermináveis em três vias – com um olho no calendário, pois se a embaixada americana se recusar a reemitir o meu visto até a próxima terça-feira, não poderei retornar aos Estados Unidos, e o meu trabalho para a The New Yorker estará encerrado. Lembro-me do que um amigo de Madri me disse pouco antes da morte de Franco: “Você vai saber quando a Espanha voltar à democracia porque, ao mesmo tempo, vai voltar a haver crimes nas ruas”.
Basta dessa história da minha má sorte. Consegui pegar o avião e fui recebido com cadeira de rodas em Los Angeles. E o destino ainda me deu mais um golpe final no saco, só para mostrar quem manda. Das minhas oito malas, sete apareceram no aeroporto de Los Angeles. A oitava, contendo toda a minha pesquisa para a The New Yorker e os originais do perfil sobre Mel Brooks (32 mil palavras), que eu terminara em Madri, extraviou-se. Apareceu no dia seguinte, no Rio de Janeiro.
1º DE OUTUBRO
Testei o pênis com uma masturbação. Consigo obter uma rigidez moderada na parte inferior da base e nos centímetros superiores, perto da ponta. Mas, entre uma e outra, instala-se uma cintura flácida, que faz o órgão tombar de lado como uma árvore abatida a machado. O orgasmo é difícil de atingir e está longe de merecer o nome de êxtase. Estou profundamente deprimido. Posso imaginar os mexericos de Londres e os comentários da imprensa quando a notícia ficar conhecida – “O homem que disse foder na TV não pode mais cumprir a palavra” etc.
1979
NOVEMBRO
Flashback para os anos 60 – viagem a Roma a fim de entrevistar Richard Burton para a BBC TV. Enquanto filmávamos, ele tomou vinho o dia inteiro (umas cinco garrafas), e depois convidou a mim e ao produtor para jantar na imensa villa que ele e Elizabeth Taylor tinham alugado perto de Roma (ela estava filmando O Pecado de Todos Nós[31] ). Isso ocorreu um dia depois que Brando lhes deu de presente dois cálices antigos de prata. O primeiro trazia gravado: “Richard: Meu Deus, mijei nas calças”. E o segundo: “Elizabeth: Não é mijo, é porra”.
Grande grupo de convidados no saguão de entrada da villa. Richard, o produtor e eu conversamos. De repente, Richard se vira para mim com o seu sorriso de lobo e diz: “Como você acha que Elizabeth está, Ken?” “Ótima”, respondo, pensando em segredo: “Gorda”. Pausa. Ainda me olhando fixo, ele pergunta: “Você gostaria de ir para a cama com ela?” Uma situação em que eu só podia perder, como dizem. Responder “muito” seria cobiçar a mulher do dono da casa. Responder “de maneira alguma” seria dizer que ela não é atraente. Eu me livro do impasse apelando para uma rastejante autodepreciação: “Para falar francamente, Richard, eu duvido de que fosse capaz de transar com Elizabeth”. “Vai me dizer que iria brochar?” Continuo recusando a provocação. “Alguma coisa assim.” “Elizabeth!”, Richard a chama, aos berros, do outro lado do salão. Ela se afasta de um grupo reunido junto à lareira e, num passo balançado e um tanto hesitante, atravessa o salão até onde estamos. “Pois não, Richard?” “Sabe o que o nosso amigo Ken acaba de dizer sobre você?” “Não, querido.” “Disse que acha que não conseguiria ficar de pau duro com você na cama.” Elizabeth virou os olhos furiosos para mim. “Isso“, disse ela em voz alta, “é a coisa mais ofensiva que já me disseram na vida. Fora da minha casa!”
E lá estava eu, sendo posto para fora de uma casa por me recusar a passar uma cantada na anfitriã. Retiro-me para evitar uma briga alcoólica em que copos podiam ser atirados. No dia seguinte, o telefone do meu quarto de hotel toca. É Elizabeth, a voz adoçada pelo arrependimento da ressaca: “Eu sinto muitíssimo. Não sei o que me fez agir assim” (uma caixa de vodca?). “Por favor, perdoe a nós dois.” Flores são entregues no meu quarto. Mas a cena fica grudada na memória, e não inspira muito afeto.
1980
11 DE JANEIRO
Dívidas que ultrapassam 75 mil dólares; nenhum trabalho completado desde a primavera passada. Ainda em Puerto Vallarta: a saúde declinando depressa, e, com ela, a energia e a vontade de trabalhar. As mãos tremem tanto que mal consigo escrever.
17 DE JANEIRO
De barco, num mar agitado de Puerto Vallarta, para almoçar em Las Caletas – o conjunto de cabanas -, inacessível por terra, onde John Huston mora com o seu entourage. Kathleen e eu fazemos a viagem com Tom e Toody Compatello. Tom é um jogador profissional de gamão contra quem John gosta de jogar. Jogam vinte partidas a 100 pesos por ponto: John perde as primeiras nove por muito, mas se recupera, correndo riscos tanto razoáveis quanto absurdos, e quando termina perde apenas 600 pesos (uns 27 dólares). Tom é um jogador animado, cuja exuberância verbal irrita ligeiramente John, provocando nele ótimas e aguçadas respostas breves que Tom nem mesmo percebe.
29 DE JANEIRO
Das Confissões, de Somerset Maugham (a propósito de Rousseau):
“Existe um tipo de homem que não dá atenção às boas ações que pratica, mas é atormentado pelas más. Esse é o tipo que, na maioria dos casos, escreve sobre si mesmo. Ele deixa de fora suas qualidades positivas e, assim, nos parece apenas fraco, vicioso e desprovido de princípios”.
Cairei nessa armadilha?
[1] Georgia Brown (1933–1992), atriz e cantora britânica.
[2] “Nunca me digas falso o coração”, na tradução de Vasco Graça Moura.
[3] Robert Morley (1908–1992), ator inglês.
[4] Penelope Gilliatt (1932–1993), romancista, roteirista e crítica cinematográfica inglesa.
[5] Christian Friedrich Hebbel (1813–1863), poeta e dramaturgo alemão.
[6] Edward Heath (1916–2005), primeiro-ministro conservador da Grã-Bretanha de 1970 a 1974.
[7] História de O, romance erótico publicado, em 1954, por Pauline Réage, pseudônimo de
Dominique Aury, intelectual francesa, tradutora de F. Scott Fitzgerald e Evelyn Waugh.
[8] Camille Clovis Trouille (1889–1975), pintor francês.
[9] Paul Lukas (1895–1971), ator húngaro, trabalhou em filmes ingleses e americanos.
[10] Pamela Mary Brown (1917–1975), atriz inglesa de teatro e cinema.
[11] Companhia teatral alemã criada, em 1949, por Bertolt Brecht.
[12] Helene Weigel (1900–1971), atriz alemã, segunda mulher de Brecht e sua sucessora na direção do Berliner Ensemble.
[13] Roger Planchon (1931–), dramaturgo e diretor teatral francês, criador do Théâtre de la Comédie; Giorgio Strehler (1921–1997), diretor de teatro italiano, criador do Piccolo Teatro di Milano; William “Bill” Gaskill (1930), diretor teatral inglês.
[14] William Shawn (1907–1992), diretor de redação da revista The New Yorker de 1952 a 1987.
[15] Kingsley Amis (1922–1995), escritor inglês.
[16] George Gale (1927–1990), jornalista inglês; Paul Johnson (1928–), historiador britânico; e Marigold (née Hunt), psicoterapeuta, sua mulher.
[17] Robert Graves (1895–1985), escritor inglês, autor de Eu, Cláudio.
[18] Rod Steiger (1925–2002), ator americano.
[19] Louise Brooks (1906–1985), atriz do cinema mudo americano.
[20] Lord Robert Baden-Powell (1857–1941), fundador do escotismo.
[21] Peter Hall (1930–), diretor de teatro inglês, fundador da Royal Shakespeare Company, em 1960.
[22] Ben Travers (1886–1980), dramaturgo inglês.
[23] Irving Paul “Swifty” Lazar (1907–1993), agente hollywoodiano, casado com Mary.
[24] Sue Mengers (1937), agente hollywoodiana.
[25] Christopher Isherwood (1904–1986), escritor inglês.
[26] Tony Richardson (1928–1991), diretor inglês de cinema.
[27] Graham Payn (1918–2005), ator e cantor inglês nascido na África do Sul, viveu com Noel Coward por trinta anos.
[28] Freddie de Cordova (1910–2001), diretor e produtor americano de televisão.
[29] Elizabeth Ashley (1939–), atriz americana.
[30] O equivalente hoje a 75 mil dólares, ou 135 mil reais.
[31] Reflections in a Golden Eye, filme de John Huston, de 1967, no qual Liz Taylor contracenou com Marlon Brando.
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