ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Libertem a Sinhá!
A libertação de uma cachorrinha no Rio de Janeiro
Ana Clara Costa | Edição 183, Dezembro 2021
Aconteceu no Leblon, no Rio de Janeiro. Juliana passeava com seus dois vira-latas, quando um cãozinho maltês, dentro de um carro estacionado na Rua General Urquiza, começou a latir para os “quatro patas” que iam pela calçada. A jovem achou graça e parou para acalmar o maltês. Percebeu então que ele estava trancado, sozinho, dentro do veículo. Era por volta de uma da tarde de 2 de novembro, Dia de Finados.
Juliana foi para casa com seus cachorros, mas ficou preocupada com a situação do maltês e voltou à rua, para conferir se ele ainda estava lá. Estava – e ela foi tomada por um misto de desespero e indignação. Lorena, uma senhora de cerca de 60 anos, se aproximou. “Onde já se viu deixar o cachorro sozinho desse jeito. Que dona irresponsável, criminosa”, disse. Ao olhar dentro do Honda HR-V novinho, ela viu alguns objetos infantis e supôs que o carro fosse de uma mulher.
Lorena e Juliana correram até uma viatura da Polícia Militar e pediram que o carro fosse arrombado para tirar o animalzinho antes que ele sufocasse. Dois policiais foram até lá. Ao chegar, compartilharam da revolta das duas mulheres, mas um deles, o sargento Oliveira, afirmou: “Sabe, dona, a gente pode ser processado. Agora ninguém respeita mais polícia nesse país.” Juliana assentiu. “Eu sei como é. Em qualquer país, policial é respeitado, menos no Brasil”, disse. O sargento Cruz explicou que, para arrombarem o veículo, precisariam de uma autorização da delegacia.
Outros pedestres começaram a se juntar ao grupo. “Que absurdo! Quem deixa um cachorro nessa situação também deixa um filho”, bradou uma passante. “Tem que denunciar! É caso de maus-tratos”, disse outra. Um dos sargentos passou o número da placa para a delegacia, mas o sistema de consulta estava fora do ar. “Tá vendo, dona? Sem estrutura a gente não consegue trabalhar”, lamentou, dizendo que em instantes chegaria outra viatura para cuidar da ocorrência.
A viatura chegou, trazendo os sargentos Silva e Dias. Uma mulher que acompanhava a cena se prontificou a descobrir de quem era o carro, pois tinha acesso a um sistema de consulta de dados que mostrava não só o histórico de proprietários de um veículo como também seus telefones. Enquanto ela tentava fazer a busca, o sargento Silva sugeriu: “Tem um chaveiro aqui na esquina que resolveria isso rapidinho. Mas tem que pagar.” Ao olhar detidamente dentro do carro, ele viu uma mochila cor-de-rosa em formato de coração e disse: “Com todo o respeito às senhoras, é carro de mulher.” No veículo havia também recipientes com água e ração. “Olha só! Isso é coisa de gente que está acostumada a deixar o cachorro trancado no carro”, indignou-se Juliana.
A busca feita no sistema de dados deu certo. “O nome do proprietário é Roberto Fonseca”, disse a mulher que fez a consulta. “É homem!”, exclamaram Juliana e Lorena, surpresas. “Deixa que eu ligo, me passa o número”, prontificou-se Lorena. Ela ligou. “Roberto?” Pausa para a resposta. “Você tem um maltês?” Pausa para a resposta. “Seu irresponsável! Você vai ver só, isso é crime”, berrou, desligando em seguida. Ao ouvir a palavra “maltês”, Roberto respondera, atordoado, que estava a caminho.
“Eu vou preparar meu celular para gravar tudo, e amanhã de manhã vai estar no jornal da tevê”, disse Juliana. Já Lorena prometeu expor o rosto de Roberto no grupo Amigos do Leblon. No vidro do carro, havia um adesivo de estacionamento com a letra D e o nome de uma universidade pública do Rio de Janeiro. “Tá vendo! É professor universitário. Todos os alunos vão ver o que aconteceu”, prometeu Juliana. “Ele vai ser preso?”, questionou Lorena. O sargento Silva disse que não, mas que o levaria para a delegacia. “Ele vai pelo menos perder um tempo nisso”, garantiu. “Sabe como é, dona, como a gente é policial, é capaz de sair nos jornais que roubamos o cachorro”, disse Silva. No Edifício Baguari, em frente, várias janelas estavam ocupadas por moradores que ouviram a discussão e passaram a acompanhar o destino do maltês.
Menos de dez minutos depois da ligação de Lorena, dois homens aparentando terem cerca de 50 anos se aproximaram. Eram Roberto e seu cunhado, Júlio. Com expressão séria e voz firme, Silva pediu a documentação do veículo e do proprietário. Roberto sacou os papéis do bolso e entregou ao policial. O sargento pediu calma às mais de dez pessoas que aguardavam a libertação do cãozinho, agradeceu a ajuda e disse que agora cuidaria do caso.
Roberto, um homem grisalho de cerca de 1,80 metro, se desculpou com todos e explicou que seus familiares do Sul, que passavam o feriado no Rio, tinham ido almoçar num restaurante ali perto. Como o local não tinha mesas na calçada e o dia estava fresco, ele não viu nenhum problema em deixar no carro o maltês, que era uma fêmea. “O nome dela é Sinhá”, revelou Roberto.
As explicações e recriminações continuavam, até que alguém alertou: “E o carro, não vai abrir não?” Roberto abriu, e a cachorrinha pulou no seu colo. “Ela é da minha mãe, que não gosta de se separar da Sinhá”, contou. “Linda! Parece uma bonequinha”, disse o sargento Silva, acariciando o focinho de Sinhá, toda assanhada com os afagos e a atenção dos manifestantes que protestaram por sua libertação.
“Vai ser minha primeira vez numa delegacia”, lamentou Roberto, ao saber que deveria acompanhar os policiais até o departamento policial. “No Rio Grande do Sul, é comum deixar o cachorro no carro”, disse. Silva sugeriu: “Olha, eu não sei como é em outros lugares do Rio. Mas aqui é a Zona Sul, o Leblon. É só falar com o garçom que ele arruma uma mesa que dá para o cachorro ficar junto, numa boa.”
Reconfortadas com a soltura de Sinhá de dentro do carro, Juliana e Lorena foram embora, os outros manifestantes se dispersaram, os moradores do Baguari deixaram as janelas do prédio – e a paz voltou ao Leblon.
P.S.: Os nomes das pessoas citadas neste texto foram trocados, pois elas não foram entrevistadas pela reportagem, que apenas observou a cena. O único nome verdadeiro é o de Sinhá, que não protestaria por ser a heroína de uma tarde no Rio de Janeiro.