Paulo Mendes Campos reuniu em um de seus cadernos uma "Galeria de bêbados famosos". Colecionou também vários aforismos sobre a bebedeira: "Sabedoria... seria anoitecer como um bêbado e amanhecer como um abstêmio." Ou ainda: "Tão desagradável quanto tomar um bonde errado é tomar um bar errado." Para o cronista, bêbado que se preze não precisa de justificativa para beber. ILUSTRAÇÃO: JOE ROGERS_WWW.COLOURBOXONLINE.COM
Lições de boemia
O álcool e os bares nos cadernos de Paulo Mendes Campos
Elvia Bezerra | Edição 88, Janeiro 2014
“Por que bebemos tanto assim?”, quis saber Paulo Mendes Campos na crônica que incluiria em Homenzinho na Ventania, de 1962, seu segundo livro no gênero. Estava com 40 anos de idade quando escreveu, e tinha a resposta: “Bebemos para empatar com o mundo. O mundo está sempre a ganhar da gente, de 1 a 0, 2 a 0… bebe-se na esperança de igualar o marcador.” Até chegar a essa conclusão, fizera um percurso respeitável pelas mesas do planeta – declarava-se conhecedor de botequins de Minas Gerais à China e à Rússia. Como homem viajado, anotara suas preferências de bares em Xangai e Leningrado, cidades que visitou em 1957, passando pela alemã Göttingen até a mineira Sabará, entre dezenas de outras. Além de ter se dedicado ao tema em crônicas, voltou a tratá-lo na poesia e mesmo nas escolhas que fez para a sua produção de tradutor.
A boemia nunca impediu Paulo Mendes Campos de trabalhar, e muito, em quase todos os periódicos do Rio de Janeiro a partir de meados da década de 40, época em que eram abundantes. Somou às rodadas de chope e à produção jornalística uma disciplina incomum: é o que revelam os 55 cadernos de notas que deixou em seu arquivo de 5 520 documentos, sob a guarda do Instituto Moreira Salles desde abril de 2011.[1] Não sem motivo, muitos dos seus pares o consideravam o mais preparado dos “quatro cavaleiros de um íntimo apocalipse”, expressão que Otto Lara Resende criou para denominar o quarteto completado por ele mesmo, Fernando Sabino e o psicanalista Hélio Pellegrino. Todos nascidos em Minas Gerais na década de 20, o que levou Mário de Andrade a nomeá-los “os vintanistas”.
Quando atingiu 60 anos e já tinha feito história nas boates Vogue, Maxim’s e Sacha’s, na Copacabana do final da década de 40, início de 1950, Mendes Campos disse em entrevista ao colega Joel Silveira: “Hoje me defino como um erudito sem erudição. […] Tenho uma facilidade danada para guardar coisas, relacionar coisas, e tal. Daria um grande arquivista da onu, talvez pudesse ser um grande historiador, qualquer coisa assim. Mas não desenvolvi essa qualidade de guardar as coisas, e isso principalmente porque na minha vida eu sempre preferia mais o Vogue, o Sacha’s do que a Biblioteca Nacional.”
Em carta a Otto de 1o de dezembro de 1945, quando sofria de saudades dos amigos que tinham ficado em Belo Horizonte, ele confessava: “Assim como, sem o Hélio, somos um hospício sem loucos, sem o Fernando somos um parque de diversões sem roda-gigante. E, sem mim, sem mim vocês são um compêndio sem prolegômenos e sem erratas.” Anos depois, em entrevista à revista O Prelo, reafirmava seu “gosto paciente pela procura, pela comparação, pela classificação, pela pequena vitória e pelo fracasso instrutivo”.
Seus manuscritos dão testemunho de muitas horas destinadas a leituras e reflexões sobre a solidão e a morte – há um caderno para cada um desses nós da existência –, assim como à bebida e ao álcool. Ao título “Bares do meu caminho”, no topo de um dos seus cadernos, segue-se uma relação dos quase vinte textos que publicou sobre o tema. Às vezes anotava parágrafos ou aforismos, dando a impressão de que a frase lhe saltara inesperada e precisava registrá-la imediatamente. É assim que, em meio a considerações sobre música, lê-se: “Aviso aos jovens abstêmios: a velhice é uma ressaca diária. E sem cura.” Ou ainda: “Sabedoria… seria anoitecer como um bêbado e amanhecer como um abstêmio.”
Salpicou muitos desses aforismos no seu repertório de cronista, que admite desde o texto curto, convencional, passando por parágrafos extensos e independentes, até coletâneas de frases, poemas em prosa, de modo a oferecer, também na forma, uma “peculiar paleta literária”, nas palavras do jornalista Flávio Pinheiro, superintendente-executivo do ims e organizador da reedição[2] das obras do autor.
Ao estudar o álcool, Paulo Mendes Campos preparou em um de seus cadernos uma “Galeria de bêbados famosos”. Listava nela os bons de bico por nacionalidade. Começando pela Grécia, com Anacreonte, passando pela China, com o poeta Li Po (ou Li Bai), até o Brasil, com Vinicius de Moraes e Lima Barreto, sem levar em conta o nível de relação de cada um com o álcool. Bêbados, apenas. “Dá-me mais vinho, porque a vida é nada” concluiu Fernando Pessoa, um dos incluídos na galeria, no poema em que considera os inelutáveis sofrimentos humanos. Pessoa morreu de uma crise hepática, e Edgar Allan Poe se foi depois de cinco dias de internação com um episódio de delirium tremens. Não precisaram de justificativa para beber. Bêbados, apenas. Para Mendes Campos o pior bêbado é o que tem razão para beber. De olho no assunto, ele transcreveu notícia publicada na imprensa americana: dos seis americanos que ganharam o Prêmio Nobel de Literatura, quatro (Eugene O’Neil, Sinclair Lewis, William Faulkner e Ernest Hemingway) eram alcoólatras, e um quinto (John Steinbeck) bebia pra valer.
Paulo Mendes Campos podia utilizar os cadernos igualmente para rascunhar uma crônica, como fez com “Réquiem para os bares mortos”, publicada em O Anjo Bêbado, de 1969. No esboço lê-se: “Prosa para os bares mortos: as tardes lentas da Brahma.” A partir disso, pode-se constatar o processo de depuração por que passou o texto. Processo que restringe, neste caso, a linhagem dos inimigos dos bares. Em vez de escrever “lugares detestados por mães, esposas, filhos dos filhos, maridos e pais”, como no rascunho, o cronista optou por: “Antros de perdição – é verdade –, os bares são odiados por mães, esposas, filhos.” Maridos, pais e netos foram poupados na versão final.
Na sua opinião, a mesa de bar, de certa maneira, foi criada nos altares das religiões antigas, nos momentos em que o homem se punha em comunicação com o espírito divino. “Ligava céu e terra, transcendia-se”, afirma ele, ainda em “Por que bebemos…”, e arremata: “O homem entra no bar para transcender-se – eis a miserável verdade.” Aos que tendem a simplificar seus argumentos, alerta: “Queira entender-me com um pouco mais de sutileza, se me faz o favor. […] O uísque não me interessa, o que me interessa é a criatura humana, esta pobre e arrogante criatura, já confrangida por um destino obscuro.”
A curiosidade quase científica pela bebida aparece numa espécie de fichamento encontrado em seu arquivo sob o título “O álcool no meu laboratório de pesquisas”. Resulta da leitura que fez de The Neutral Spirit: A Portrait of Alcohol, do jornalista e médico americano Berton Roueché, que escreveu sobre sua área durante cinquenta anos narevista New Yorker. A aprendizagem no livro de Roueché rendeu a Mendes Campos três crônicas para a Manchete, publicadas em março de 1968, em sequência, a primeira delas sob o título “Álcool, amigo e inimigo (1)”.
Sobre o livro de Roueché, ele escreve: “Eu o recomendaria a bêbados e abstêmios, e sobretudo aos nossos editores, que deveriam mandar traduzi-lo.” Parece que o apelo foi em vão; não consta que a obra tenha sido traduzida no Brasil.
Ao lado do interesse científico, se evidencia o gosto pelo vinho, que mereceu outras tantas páginas de estudo e mais algumas crônicas. Numa delas, sob o título “Bleu, blanc, rouge”, fez vinte caracterizações saborosas de vinhos associadas a nomes de escritores ou artistas: Un Beaujolais fruité/ comme la langueur de Verlaineou Un malvoisie tendre/ comme les enfants de Renoir,[3] para citar duas.
Longe de devotar-se à bebida sem pensar no dia seguinte, o escritor anotou, provavelmente traduzindo do inglês, algumas receitas para ressaca. Estão em folhas avulsas e até hoje inéditas de seu arquivo, intituladas “Revivers (levanta-defunto)” ou “Profiláticas”, e rechearam a crônica “A verdadeira receita”, publicada na Manchete em 22 de fevereiro de 1963 e até hoje não incluída em livro. Depois de fornecer dicas preciosas ao adepto do copinho, o cronista resume: “Enfim, o negócio é o seguinte: da próxima vez, você engula uns tabletinhos de sal, mastigue pílulas de hidrato de alumínio, meta na geladeira aquela mistura de frutose, guarde umas aspirinas no bolso. E vá em frente.”
Receitava com a autoridade de quem queria “empatar com o mundo” desde o tempo de juventude em Belo Horizonte, no Minas Tênis Clube e nos bons botecos da cidade. As horas ritualísticas nos bares do Rio de Janeiro começaram em 1945, no momento em que Paulo Mendes Campos fez as malas e rumou para a então capital do Brasil, a fim de conhecer Pablo Neruda, que visitava a cidade.
Aos 23 anos, o mineiro não ofereceu qualquer resistência ao espontâneo aliciamento que se fez entre os amigos para festejar o poeta chileno. Da casa de Vinicius de Moraes, no Leblon, na época casado com Tati, ao bar Alcazar, na altura do Posto 4, em Copacabana, o grupo dos happy few que recepcionava Neruda incluía, além de outros, Rubem Braga, Fernando Sabino e o arquiteto e artista plástico Carlos Leão. Na casa de Vinicius todos tomaram muito uísque, conversaram madrugada adentro e ouviram a leitura de “Alturas de Machu Picchu” da boca de seu autor, que depois o incluiria em Canto General, de 1950.
No perfil que escreveu de Paulo Mendes Campos, depois coletado em O Príncipe e o Sabiá e Outros Perfis, Otto Lara Resende se refere à invasão do grupo, em sua maioria abaixo dos 30 anos de idade, à casa do poeta Augusto Frederico Schmidt, na época morador do 10º andar do edifício Alcazar, na avenida Atlântica. O bar homônimo representou a primeira bússola do cronista no Rio, além da casa de Fernando Sabino, que inicialmente hospedou o conterrâneo em seu apartamento na avenida Nossa Senhora de Copacabana, 769: “O Alcazar do Posto 4 era tudo em nossa vida: o bar, o lar, o chope emoliente, a arte, o oceano, a sociedade e principalmente o amor eterno/casual” – escreveria Mendes Campos na crônica “Copacabana-ipanemaleblon”. Ao recém-chegado, as uiscadas em torno de Neruda não foram mais que um aperitivo para as numerosas e mesmo contínuas noitadas que ele teria no Rio, onde morou até que a morte o apanhasse em sua casa, aos 69 anos, em 1º de julho de 1991. A causada morte foi um ataque cardíaco.
Naquela segunda metade da década de 40, a tradição dos bons boêmios se mantinha no Centro da cidade, onde a Casa Pardellas era das mais prestigiadas. O bar, no fundo da loja, era protegido pelas frutas, biscoitos e doces que se projetavam bem na frente, disfarçando as altas funções etílicas do local. Imagino que usavam o feminino, a Pardellas, os que ali buscavam a quitanda. O masculino ficava para os frequentadores do fundo, além dos produtos alimentícios. Do Pardellas, que tinha em Mendes Campos um freguês diário, pulava-se para as cadeiras de palha do Vermelhinho, em frente ao edifício da Associação Brasileira de Imprensa (a ABI), ou deste para aquele, sem medo de ferir a hierarquia. Em “Copacabana-ipanemaleblon”, o autor lembraria que “bebia-se com destemor, é verdade, mas naquele tempo o uísque era sempre do melhor e os nossos fígados jovens ainda podiam transformar o álcool etílico em arroubos de amor e poesia”.
Quando Paulo Mendes Campos aportou no Rio, um café não se diferenciava de um bar ou restaurante populares, também conhecidos como casas de pasto. Tuberculoso diligente, mas sem abrir mão de uma boemiazinha moderada, Manuel Bandeira conta que no Restaurante Reis, na década de 20, um bife à moda da casa dava para cinco pessoas, “mas reforçado com muito pão e muito arroz”. Foi no Bar Nacional, ele relata na crônica “O Bar”, que lhe “relumeou de repente a célula de muito poema de Libertinagem e de Estrela da Manhã”, coletâneas lançadas em 1930 e 1936, respectivamente. Bandeira deu sua cota para preservar a memória desses bares onde se podia até deixar recado, bilhete ou encomenda para um amigo (inimigo também). E Paulo Mendes Campos recolheu e transmitiu em sua obra boa parte dos hábitos e dos menus das mesas para além dos lares cariocas. Na crônica “Os bares morrem numa quarta-feira”, ele louva as instalações do Juca’s Bar, na rua Senador Dantas, que inovou com o ar-condicionado; homenageou o rosbife servido de entrada no bar do Hotel Central, na praia do Flamengo; exaltou o Nacional e o Lidador, dos bares mais tradicionais que conheceu nos primeiros meses de Rio de Janeiro.
Foi para o Centro do Rio, onde se concentravam as redações dos jornais, que ele se dirigiu assim que Augusto Frederico Schmidt lhe pôs em contato com Paulo Bittencourt, dono do Correio da Manhã. Quando o novo redator publicou o artigo “Paul Valéry” no Correio, em dezembro de 1945, dando início à vida de jornalista morador da cidade, despediu-se das areias de Copacabana, onde até então era visto entre dez da manhã e 13h30, em frente ao Alcazar. Como a admissão no jornal não dispensasse o bar, passou a frequentar o Pardellas e o Vermelhinho, mais perto da avenida Gomes Freire, 471, onde ficava a sede do jornal.
No Diário Carioca ele assinava, a partir de 1946, a coluna “Semana literária”, que em 1950 passaria a ser diária, sob o título de “Primeiro plano”. Como naquele tempo o Diário ficava na praça Tiradentes, no prédio colado à gafieira Estudantina, precisava pegar o bonde de Copacabana para o Centro. O bonde e o bar, e isso demandava perícia. Advertiu ele que “tão desagradável quanto tomar um bonde errado é tomar um bar errado”.
Ninguém da turma de Paulo Mendes Campos se opunha à convocação que fizera Baudelaire num de seus famosos poemas em prosa: era preciso embriagar-se sempre – de vinho, de poesia ou de virtude, à escolha de cada um. Quanto ao cuidado para não tomar o bar errado, a intuição do grupo não costumava falhar. O apelo do poeta francês, atendido prontamente por Mendes Campos e amigos como Sérgio Porto, Fernando Lobo, Antônio Maria, José Lins do Rego, Ary Barroso e tantos outros, recebia adesões entusiasmadas. Quando a Casa Villarino Bar foi inaugurada, em 1953, lá estavam os companheiros reunidos em muitas aventuras que Fernando Lobo, freguês vitalício, contou em À Mesa do Villarino.
Tão masculino quanto o Pardellas, o Villarino nunca saiu da avenida Calógeras, 6, esquina com a avenida presidente Wilson, onde resiste até hoje. Passou por reformas, é natural, e se não conserva os desenhos, autógrafos e rabiscos feitos em suas paredes por artistas como Antonio Bandeira, poetas como Vinicius de Moraes ou compositores como Ary Barroso, a foto panorâmica da mesa com os frequentadores célebres em torno, Paulo Mendes Campos inclusive, permanece lá, como registro do passado de glória da Casa, ou do Bar, dependendo do gosto e do perfil do freguês. Fernando Lobo conta que de lá mesmo Adolfo Bloch arrebanhou Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), Antônio Maria e outros para revigorar a Manchete, cujos primeiros números, com muitas cores e fotos, mas pouco miolo, não a faziam concorrente d’O Cruzeiro. Passaria a ser depois da chegada do time de boêmios e bambas.
Vendo hoje os documentos do arquivo de Paulo Mendes Campos, fica-se assombrado diante da lista de periódicos em que ele trabalhou. São quatro páginas manuscritas, feitas por ele mesmo, reveladoras de uma atividade febril na imprensa. Atuou em pelo menos 25 títulos. Só na Manchete escreveu aproximadamente 770 crônicas entre 1958 e 1974. Num dos textos para o jornal Sombra, de Niterói, ele cita Machado de Assis: “A embriaguez é causada pelo bacilo zigue-zague.” Na pontuação originalmente machadiana, lê-se em A Semana, de 9 de dezembro de 1892: “O bacilo zigue-zague, causa da embriaguez.”
Por volta de 1952, já era evidente a migração dos boêmios para Copacabana, onde Nora Ney sangrava corações com o clássico Ninguém Me Ama, de Antônio Maria e Fernando Lobo. Joaquim Ferreira dos Santos diz no perfil biográfico Antônio Maria que, no início da década de 50, “quem sabia das coisas frequentava o Vogue e o Maxim’s”. Mendes Campos não negava erudição: tomava uísque no Pardellas e de lá seguia para o Vogue. Apesar de não ser exatamente um pé de valsa, colava o rosto no de um broto disponível para, uh-la-lá, dançar C’est Magnifique.
A primeira coisa que reparava numa mulher, “depois da qualidade de expressão, era a tonalidade da voz”. Atributo indispensável na moça a quem se enlaçava para deslizar seu corpo de homem magro, de 1,67 metro, ao som de Unforgettable, que também arrancava suspiros, ainda que não passassem de uma noite. Isso até conhecer a inglesa Joan Abercrombie, futura senhora Mendes Campos, com quem dançou no Vogue algumas vezes, antes que em 1955 um incêndio destruísse a casa.
Os bolsos da rapaziada preferiam os chopes, mas ninguém deixou de sucumbir ao uísque, mais do que referendado por Vinicius de Moraes. Aos que não compreendiam como jornalistas que tinham de brigar “pelo dinheirinho de cada dia” se esbaldavam no bom scotch, Paulo Mendes Campos justificava na crônica “Sérgio e Stanislaw Ponte Preta”: “Já que o dinheiro era pouco, o jeito era gastá-lo no essencial: o apartamento próprio que esperasse.”
No caso dele, valeu a pena esperar. Tratou de publicar A Palavra Escrita, seu primeiro livro de versos, em 25 de outubro de 1951, mesmo dia em que se uniu a Joan Abercrombie. Ainda que o casamento não o tenha feito abdicar dos conselhos baudelairianos, o trabalho continuava frenético. Foi imbatível na conjugação de boemia com disciplina, até, na última década de vida, ser castigado pelo alcoolismo, que, em crônica, chamou de “vício roaz”. O assunto certamente lhe doía: quando, em março de 1984, Maria Julieta Drummond de Andrade o entrevistou para O Globo e quis saber o que o álcool representava para ele, Mendes Campos preferiu responder com o conselho que ouvira do pai: “Meu filho, o álcool é um dos maiores amigos do homem. Insensatez é transformá-lo em inimigo.”
O inglês Chesterton tinha, afinal, razão ao confessar: “Quando tomo um drinque me sinto um outro homem, e este outro homem pede logo um drinque.” Nos últimos 25 anos de sua vida, o cronista morou na rua Carlos Gois, no Leblon, mas não abandonou os bares ipanemenses Jangadeiros e Zeppelin, este reconhecível pelas “paredes revestidas pelo verde mais arrogante e desentoado que já existiu: o verde-Oskar. Oskar, que chegou ao Brasil com o circo Sarrazani, era forte, bonito e alemão”, conforme sua descrição. Trabalhava no escritório de sua casa – o seu “laboratório de pesquisas” –, e lá produziu a admirável obra de poeta, cronista e tradutor, sob as bênçãos de Li Po, boêmio exemplar do século viii, representado sempre com um copo na mão. A estátua do poeta, em marfim, fica até hoje na estante que foi do autor de O Anjo Bêbado, conservada pela família.
Aos 60 anos, Paulo Mendes Campos foi visto com Joan, de mãos dadas, tomando vinho branco e sussurrando no cantinho de um restaurante em Petrópolis. Ela se recorda muito bem dessa noite. O restaurante chamava-se Le Moulin, e já foi posto abaixo. Eram casados havia trinta anos. Juntos tinham criado o casal de filhos e visto os netos crescerem. Paulo atribuiu o êxito do casamento à bondade e paciência da mulher, que deu azar – dizia ele – de encontrá-lo, enquanto ele tivera a sorte de conhecê-la. A verdade é que a ternura de Joan Abercrombie Mendes Campos pelo marido é reconhecível até hoje no olhar e na voz. Conserva um pouco do sotaque – pronuncia o p aspirado, do inglês, quando fala “Paulo”. Sorri, delicada, ao evocar a memória do companheiro ou episódios vividos juntos. Entendeu profundamente que “mesmo abstêmio, o poeta costuma ser um anjo bêbado”.
[1] O presidente do IMS, João Moreira Salles, é um dos fundadores de piauí.
[2] Os títulos estão sendo lançados pela Companhia das Letras. Um dos fundadores de piauí é sócio minoritário da editora.
[3] Um Beaujolais frutado/ como o langor de Verlaine ou Uma malvasia tenra/ como as crianças de Renoir.