ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2021
Lições do tempo
As aulas de escrita e de vida do Blog da Vovó Neuza
Camille Lichotti | Edição 180, Setembro 2021
Enquanto cozinhava mingau de aveia com baunilha numa noite de 2018, a professora aposentada Neuza Guerreiro de Carvalho, então com 88 anos, teve uma espécie de epifania. Era sua última refeição do dia e, como sempre, ela mexia com cuidado a mistura para regular a fervura da panela. Em dado instante, o movimento circular da colher de pau disparou nela uma memória de oitenta anos atrás. Surgiu de repente a imagem da casa onde nasceu, em São Paulo, e de sua mãe na cozinha preparando o mingau para o café da manhã.
As lembranças vieram então como uma avalanche: a cristaleira na sala, o porão onde morreu um gato, a laranjeira no quintal, o seu antigo quarto cimentado que vivia infestado de baratas. Carvalho procurou um pedaço de papel e anotou todas essas imagens do passado. Depois, registrou as lembranças em sua página pessoal na internet, o Blog da Vovó Neuza. “Tem certas coisas que você não sabe como ou por que aparecem. Mas eu não gosto de perder as lembranças, por isso trato de escrever todas elas”, explica.
A ideia de criar um blog veio em 2008, mas a sua relação com a tecnologia é mais antiga. Em 1996, quando as máquinas de escrever já tinham sumido do mercado, ela ganhou o primeiro computador, com Windows 95, pouquíssima memória interna e nenhum recurso multimídia. “Era o lixo tecnológico do meu filho, mas servia bem para o que eu precisava”, diz. Sua vida de blogueira começou a deslanchar, enquanto ela atravessava a história da internet. Carvalho frequentou o Orkut, o MSN, o Twitter, o Facebook, o Instagram, embora não tenha muita paciência para as redes sociais.
A menina de seus olhos é mesmo o blog. “Lá eu escrevo o que eu quero, quando eu quero e do jeito que eu quero”, afirma Carvalho, com mais de 1,2 mil seguidores fiéis e ativos. Seu repertório é variado: memórias, literatura, música, arte, estilo de vida e tudo o que der na telha.
Quando a pandemia chegou, ela passou a escrever sobre sua rotina durante a quarentena. “Primeira atividade: Pelo WhatsApp dou bom-dia para meu filho como um código nosso para dizer que sobrevivi àquela noite. Ele responde sempre, o que significa a mesma coisa. E à noite digo boa-noite para dizer que vivi mais um dia”, escreveu, em abril de 2020, quando fez 90 anos. E completou: “Nunca [me sinto] sozinha porque meu pensamento já trabalha no que vou fazer mais tarde.”
Os seguidores encheram a caixa de comentários com elogios e queriam saber mais sobre como ela enfrentava a pandemia. O diário de isolamento se tornou uma seção no Blog da Vovó Neuza. As postagens dividem-se em fragmentos sobre atividades domésticas, leituras do mês e relações familiares. Na última atualização, de julho de 2021, feita em tom mais taciturno, ela reclamou da burocracia do INSS, atualizou seus seguidores sobre sua saúde física (que continua ótima) e reclamou da falta de concertos presenciais. “Custei muito a aceitar música pela tevê, mas às vezes tenho sorte”, escreveu. No mesmo post, acrescentou: “Os netos pouco se lembram da avó. Entendo. Bruno e Tiago têm a vida modificada pela pandemia, e não faço parte do cotidiano deles. Bruno esteve aqui um domingo e nem ouviu meu projeto póstumo que poderia ter sua participação… Tiago nunca apareceu nesses quinze meses de meu isolamento, mas fez uma ligação com vídeo e pude vê-lo depois de mais de um ano.”
“Estou só esperando terminar o mês para atualizar o novo texto”, disse ela à piauí em agosto passado do apartamento onde vive sozinha em São Paulo, aos 91 anos, numa conversa em teleconferência. “As coisas que eu conto são testemunhos das épocas que vivi, inclusive a pandemia. Não posso falar por todos, mas sobreviver em isolamento mostra que eu sou uma possibilidade.” Carvalho tinha os cabelos brancos partidos ao meio e as bochechas coradas pelo frio. Ela mostrou, orgulhosa, a echarpe de tricô azul-clara. A peça, enrolada no pescoço, caía sobre uma blusa também azul. Mesmo cumprindo o isolamento, Carvalho sempre se veste com capricho, com roupas “de sair”. É uma forma de autocuidado, esclarece.
Apesar de vacinada, ela continua seguindo as medidas de restrição, recomendadas pela ciência – da qual sempre foi defensora. Carvalho se formou na década de 1950 pela Universidade de São Paulo (USP) num curso que já não mais existe: história natural. Foi a primeira mulher da família a seguir com os estudos e lecionou biologia por mais de trinta anos. Hoje, prefere dizer que é uma “registradora”. Isso porque registra por escrito tudo o que viveu. Mostrou-se tão hábil em reconstruir suas memórias que agora ensina outros idosos a fazerem o mesmo.
Em agosto passado, deu início a uma nova turma do curso online Resgate de Memória Autobiográfica na USP 60+, um braço da universidade voltado às pessoas idosas. O projeto teve início em 2015 e, durante os encontros, todos são incentivados a escrever – sempre em primeira pessoa – sobre identidade, formação, vida afetiva e família. “O principal é encher o texto de detalhes. As pessoas acham que isso é besteira, mas o detalhe sempre capta o que fica marcado na gente”, explica Carvalho. Ela lê todos os textos, faz as correções necessárias e indica leituras complementares. “Já conheci tanta história, li sobre tantas cidadezinhas do Brasil, você nem imagina”, conta, rindo. Graças a essas trocas, diz ela, a solidão parece que nem existe mais.
Além do trabalho na USP, Carvalho participa de dois grupos de leitura e vive se inscrevendo em cursos online. “Eu não tenho tanto tempo para criar novas perspectivas”, afirma, com a franqueza habitual. “Mas tenho um projeto, e acho que todos também deveriam ter. Eu uso e abuso do meu enquanto posso.”
Lembrar e escrever, para ela, é se colocar no mundo. Seu grupo de resgate de memória tem um mantra: “Eu sou quem sou porque me lembro de quem sou.” Mas o fundamental, na opinião de Carvalho, é que os participantes não forcem o processo e deixem que as lembranças surjam espontaneamente, no tempo certo – e a escrita venha como consequência natural. Exatamente como aconteceu quando ela cozinhava o mingau de aveia.