O Primeiro Ímpeto da Virtude Guerreira , aquarela de Debret, de 1827: o pintor transforma um tema da herança neoclássica da Revolução Francesa num comentário irônico e galhofeiro (ou então realista e crítico) acerca da adaptação impossível de certas ideias da metrópole à realidade escravista da colônia. Nos versos de Franscisco Alvim, O tronco nu/ contorce e grita/ na flora oblíqua . Eis Um corpo cego/ emparedado/ na própria história ILUSTRAÇÃO: ACERVO MUSEUS CASTRO MAIA - IBRAM/MINC_MEA 0300_FOTÓGRAFO HORST MERKE
Lírica do Pelourinho
Nos poemas de O Metro Nenhum, Francisco Alvim raspa a casca do riso para revisitar a escravidão
Priscila Figueiredo | Edição 62, Novembro 2011
No último filme de Woody Allen, Meia-Noite em Paris, a americana rica, bonita e jovem quer chamar a segurança do hotel (o Hilton de Paris) porque dá falta de seus brincos de pérola e, com o apoio da mãe, desconfia da arrumadeira. O namorado escritor intervém e diz que não há provas suficientes que justifiquem o chamado. A moça replica que a camareira não tinha sido lá muito simpática de manhã e, sentindo-se cada vez mais contrariada, dispara que seu próprio pai (o qual já sabemos ser republicano) tem toda a razão em achar o namorado comunista.
Rimos com o que parece um exagero e também por outros motivos. Acresce que o rapaz, que se preocupa com o destino da camareira ausente, é quem tem de fato a culpa no cartório, e é por isso também que se vê obrigado a intervir. Nem por isso, no entanto, seus argumentos deixam de valer para nós, que sabemos de tudo que se passa. Pois é razoável dizer que a falta de simpatia (concedendo que tenha havido) e a posse das chaves do quarto não são provas conclusivas para incriminar uma criada e não lhe dar o benefício da dúvida. Tampouco é comunista quem se dispõe a lembrar isso. É mais o caso de falar em razoabilidade, ponderação, certo sentimento de justiça – até mesmo “sensibilidade democrática” poderia soar especificador demais. Mas, parece-nos dizer Woody Allen, no ponto em que está o conflito de classes nos Estados Unidos, que qualquer concessão de direitos individuais aos mais pobres – mesmo que exógenos, como a criada de um hotel francês – pode ser lançada na grande e útil vala comum do “comunismo” (diligentemente aberta e nomeada pela direita de lá).
No recente livro de Francisco Alvim, O Metro Nenhum, o poema “Histórias de neto” traz uma anedota similar. A semelhança de situações pode nos levar a concluir que em qualquer parte do mundo a empregada, quando existe, é, como os mordomos nos romances policiais, senão a culpada, sempre aquela de quem se suspeita primeiro quando se dá pela falta de qualquer coisa. No poema em questão, ela de fato cometeu um delito, mas não aquele imaginado por seus senhores, o que propõe novas complicações e faz rir de outra maneira:
Histórias de neto
São muito chatas
Mas esta vale a pena
A babá
mocinha treze catorze anos
resistiu quanto pôde
mas acabou que
confessou tudo
Só que o tudo era outra coisa
muito pouco
quase nada
cinco reais um lençol um quilo de arroz
o Cartier, negou
Ele três aninhos só ouvindo
e
de repente:
(nunca vi criança tão inteligente)
Mas que perigo
podiam ter roubado
a minha chupeta
A operação pela qual o título é ao mesmo tempo o sujeito do primeiro verso, “São muito chatas”, é não apenas uma operação de contenção formal, familiar ao leitor de Francisco Alvim, como também permite multiplicar hipóteses. Em destaque apenas “Histórias de neto”, nosso espírito é preparado para uma anedota simpática, provavelmente a ser contada por um avô orgulhoso das peraltices astuciosas do descendente. A qualificação “são chatas” já é, no entanto, problematizadora pelo distanciamento que supõe. A linha seguinte, “mas esta vale a pena”, reconhece a singularidade da anedota no seu gênero e o alcance para além do ambiente em que se originou. Talvez quem a vá narrar não seja o simpático coruja que esperávamos, e antes alguém que lhe tenha ouvido o caso, um parente ou amigo.
Nada impede também que estejamos diante de um avô mais refletido ou bem-educado, que, conquanto reconheça a impolidez de azucrinar ouvidos alheios com uma narrativa doméstica, em que só os implicados costumam achar graça, vai divulgar uma por julgá-la passível de apreciação em círculos mais amplos.
Conforme a perspectiva, o verso entre parênteses “(nunca vi criança tão inteligente)” ora pode reforçar que o locutor conhece a família, dando-lhe caráter testemunhal e aumentando a veracidade do relato, ora pode indicar que se trata do avô, sim, e que este mal se contém no desvanecimento refreado pelo primeiro verso. Desvanecimento, porém, que não chega a produzir dissonância ou gafe no conjunto, que é sempre atento às normas da conversação. Seja conhecido, amigo, parente distante ou próximo – o narrador é um sujeito bem-educado.
Sob qualquer uma dessas hipóteses, o procedimento é o mesmo no que diz respeito à hierarquização dos papéis e dos acontecimentos. A historieta começa com o caso da babá, cuja exposição é sintética, para imediatamente encaminhar o desfecho e não fatigar o ouvinte – “resistiu quanto pôde/ mas acabou que/ confessou tudo”. O suspense, criado por frases que bem poderiam ter como referente uma situação de tortura – e talvez tenham –, é dissolvido pelo teor da confissão, que já nos instala em outro clima.
O nada confessado pela menina, e do qual fala o narrador, é na verdade tudo que guardava em si, a história e a memória do seu delito, os pequenos objetos roubados. Esse tudo, no entanto, não era o tudo, muito mais graúdo, do patrão: o relógio Cartier. A reversibilidade entre tudo e nada ilustra a dança dos pontos de vista, e sua representação cativa: é ralentada – em comparação com o andamento mais brioso do conjunto – e escalona cuidadosamente, em cinco versos, a passagem de um polo a outro. Ao cabo do processo, os pronomes indefinidos acabam por reverter nas coisinhas – pálidas, mas mais concretas – da empregada:
confessou tudo
Só que o tudo era outra coisa
muito pouco
quase nada
cinco reais um lençol um quilo
de arroz
Tanto espremeram a moça que ela expeliu o que guardava, umas bobagens – é verdade que, num aperto dessa ordem, qualquer coisa pode sair, sempre haverá de sair, pois a coisa forçosamente se cria ou ganha substância; o importante é que se escolha a classe de pessoa que a produzirá, como na tortura, fim em si mesmo, expediente maníaco e já desligado de toda realidade, ou propósito verdadeiramente investigativo. No caso, a energia aplicada pelos patrões na coação é desbaratada pelo baixo valor dos objetos enumerados, que subtraem do furto toda a seriedade dramática. Então era só isso? E nós assim, nervosos, por nada?
O efeito é, literariamente, uma mudança de gênero, pela qual vamos dar na comédia ligeira. Produz-se, assim, um anticlímax e é quando menos esperávamos que sobrevém a observação solerte da criança e sua preocupação galhofeira. Foi pelo nada da babá que o bebê foi picado, sentindo-se impelido a reconhecer que, pela categoria dos artigos subtraídos à casa, bem poderia figurar entre eles a sua chupeta, também uma ninharia do ponto de vista dos adultos, mas para ele algo fundamental, como para a empregada o lençol e o arroz.
Com essa tirada, de fato impagável, tudo se ilumina e fica mais leve, realizando o gênero que o título do poema prometia. No entanto, as “histórias de neto” como um todo, por assim hierarquizar as coisas, não dão conta de todas as articulações, isto é, de tudo aquilo por que passou a adolescente. Não houve interesse em mimetizar, em dar representação verbal ao sufoco de quem foi posto contra a parede, de quem deve ter sentido o maior medo e humilhação e aguentou o mais que pôde. Entre a sua resistência e confissão vai um processo no qual afanar umas insignificâncias se debate com a sua consciência moral e a necessidade do emprego. Não seria preciso roubar um Cartier. E, no entanto, ela deu a título de sua mais dolorida declaração o que poderia não ter vindo à luz porque, sendo tão desimportante, simplesmente não a merecia. Esse sofrimento – e essa crueldade – foi arquivado pelo conjunto, verdadeiramente pau-brasil, do poema.
O que nos autoriza a deter sobre ele e a fazer tais considerações se a esteira rolante da construção já o põe longe dos nossos olhos, diante dos quais exibe agora uma criança matreira, naturalmente descuidada dessa ordem de implicações? Ora, a peça, se não é mimética em relação aos apuros da empregada, é mimética em relação ao fato, comuníssimo na vida brasileira, de que esses apuros costumam passar batidos – e ficam assim esbatidos, palidamente fixados. É perfeitamente consoante ao fato, portanto, de que incriminar assim uma doméstica, mesmo na ausência de provas, indícios, é algo visto como natural, legítimo, isso quando não a levam direto à delegacia. E, uma vez provado que ela não tem culpa no cartório, fica tudo por isso mesmo.
Ou seja, isso pode passar batido por pessoas educadas, não provincianas, experimentadas nas formalidades da conversação e atentas aos interesses do ouvinte, como são as do poema. Mas nem por isso, quando se trata dos pobres, atentas às formalidades básicas do direito penal, como o direito de defesa, o respeito à dignidade da pessoa humana etc. E a esse vestíbulo de tribunal de exceção estão e estiveram sujeitas incontáveis meninas.
Há no poema, ainda, elementos internos, da própria construção, parcimoniosos e sutis, que nos habilitam a “raspar a casca do riso para ver o que há dentro”, conforme a recomendação de Machado de Assis. É o caso do pequeno mas nítido vocabulário da tortura a que nos referíamos. Ele nos conduz a um dos grandes poemas de O Metro Nenhum, “A mão que escreve” – ainda que a noção de grande possa ser relativizada. É a isso que se refere Zuca Sardan, na orelha do livro, quando opõe magistral e revolucionário. Tais adjetivos qualificariam faces diferentes do livro, a trágico-lírica e a irônico-galhofeira, que pediriam, para a plena realização de seu efeito estético e crítico, um extremo ativismo da parte do leitor. Creio que o poema em questão, que pertence à vertente lírica, indica um processo pelo qual se infundiram nela aspectos da outra vertente, a “crítico-realista” nas palavras de Roberto Schwarz. E, nesse ponto, haveria uma inovação, não só dentro de sua própria estética, mas em relação ao modo de apropriação do legado drummondiano.
A mão que escreve
O tronco nu
contorce e grita
na flora oblíqua
O ar respira
a dúbia aragem
Na carne escura
a dor que surde
Aqui agora
tantos olhares
Presos no lírio
do pelourinho
Látego e nádega
Um corpo cego
emparedado
na própria história
Ecoa vivo
o meio-dia
o ouro falso
da vida falsa
Fezes e mijo
Suor e sangue
Carne tão nossa
A mão apócrifa
(grifos meus)
Fulgor, aragem, grito. A tônica no “i” repica em palavras-chave, faz vibrar a paisagem, atiça fogo e estridência. Antes mesmo que se fale em “meio-dia” e “ouro”, já vemos tudo sob um sol violento (como lemos no poema seguinte). O “i” aqui é amarelo. Mas a atenção é também logo fisgada pela expressão “lírio do pelourinho”, que conjuga palavras com referentes tão distintos como o céu e o inferno, o belo e o grotesco, ou o ócio (do lírio que não tece nem fia, conforme o comentário bíblico) e o trabalho compulsório. Formam, no entanto, uma quase paronomásia, parecendo o termo menor ter sido extraído do maior e supor um terceiro termo, oculto – lírica.
A lírica do pelourinho? Não ponhamos a carroça na frente dos bois. Depois, é curioso o relevo que assumem as proparoxítonas na construção: látego, nádega, sonoramente próximas, com variação apenas na primeira consoante, e apócrifa. Proparoxítonas são palavras raras na língua portuguesa, razão por que são acentuadas. O que é pouco frequente numa língua soa, portanto, menos natural aos seus falantes e, numa construção tão bem travada como a que está em questão, se um som mais exótico vem bater um pouco demais no ouvido (e pode ser aquele, interno, de quando só lemos com os olhos) é porque… está querendo entrar. Mas ele quer e nosso ouvido, antes descuidado e calmo em razão do entra e sai da música familiar, logo se põe em guarda e manda descer o portão. O som continua a bater e, com isso, todos os faróis da torre ficam sobre ele. Em suma, o efeito produzido por esse conflito é prestarmos mais atenção no significante que no significado, como se entrasse um pouquinho de ar no vácuo que os prende. E a questão deve ser por que se estimula isso de nossa parte.
A justaposição do parnasiano “látego”, de evocações épicas, e do eufemístico e científico “nádega” confere certa abstração à cena (até esta se sujar de “fezes e mijo”). Ao mesmo tempo, a semelhança mórfica entre os termos tem algo de uma ironia do destino, pois eles de fato dizem respeito a coisas objetivamente relacionadas, sugerindo um provérbio conforme o qual para toda nádega, e nádega negra no caso, haverá sempre o látego. A justaposição perfaz ainda um verso em ritmo composto por um momento forte e dois fracos, tá ta ta, que é inerente à proparoxítona. Látego, nádega – tá ta ta, tá ta ta é o que ouvimos, e por ele devemos escutar, ou imaginar, as chicotadas infernais e infinitas, escoando-se como as horas de um relógio. Ou sentir antes o deleite do poeta em escandir tais palavras em sequência, desgarrando-as por um momento do contexto atroz a que se ligam, e lhes enfatizar o ritmo bem marcado? Talvez as duas coisas num poema que conjuga conteúdo sórdido e grande encantamento audiovisual.
O tronco, metonímia do corpo, aqui tão destituído de humanidade como um pedaço de madeira (tronco também é o cepo em que se amarra o escravo para castigá-lo), ganha uma vibração nova pelo contorcimento e pela vizinhança com a flora oblíqua, com a qual se confunde. É o torso que se torna oblíquo e, pela dor, se entorta para fora do pau a que está preso, atravessando a paisagem e o olhar, ou o olhar de quem o via, cotidianamente, na praça de espetáculos da escravidão. É esse corpo cego, escuro a verdadeira trave na visão, ou a verdadeira pedra no caminho do poeta, pedra que sidera o olhar, impedindo-o de avançar.
No pelourinho não está aprisionado apenas o tronco inerte como também a multidão que o contempla e o olhar interno do eu lírico: o projetor da cena e da imagem da escravidão, olho que não é testemunha e então fabula, para nossos olhos/ouvidos internos, a cena como espetáculo. Essa cena deve ser recuperada (é tal recuperação “o mínimo ético” de que se fala no livro, a nossa Minima Moralia, sem a qual não haverá vida correta?) como um chiado ininterrupto e, no entanto, disruptivo, que não dá descanso a quem escreve. No que é ininterrupto, embota a percepção, pois reproduz a história que não repara os sofrimentos que causou e se repete; no que é disruptivo, pode fazê-la avançar para além da estagnação em que a encontramos no poema “Meio do caminho”, retomada ultraconsequente do poema mais famoso de Drummond.
Látego, nádega, apócrifo – essa tríade excêntrica e culta conta uma história comum, que é a da divisão do trabalho social sob o capitalismo, e das peculiaridades que essa divisão veio a adquirir na sociedade colonial, onde, por mais de um motivo, a produção ideológica e artística frequentemente esteve acumpliciada com a defesa e permanência do escravismo. O título da composição – “A mão que escreve” – põe em foco, porém, mais o trabalho intelectual que o trabalho material. A ênfase está no acerto de contas do escritor consigo mesmo e com esse “corpo escuro” – ponto cego em que se reúne o objeto supliciado, o sujeito que o suplicia e o “voyeur” da cena –, redescoberto, ao fim, como “carne tão nossa”.
A carne é nossa, a mão é inautêntica – pois o que se vê não vendo produz estranhamento de si, do próprio corpo, mas também do país, como em “Diante”. Reproduzo as duas últimas estrofes:
Tal fora uma cobra
sucuri enorme
no charco mais fundo
da densa floresta
nestes brasis
de sombra e de sol
violentos
E o tempo dele
de fora e de dentro
fora
o movimento de um corpo
nas águas mortas de um morto
O corpo, que faz confinar mundo e interioridade e se move, prova de que se está vivo e se toma pé no mundo (para falar à maneira da fenomenologia), é, no entanto, um corpo que avança, qual uma sucuri, “nas águas mortas de um morto” – morto o país? A história? Qual história? O ar, diferentemente do que ocorre nos poemas mais solares e bem-aventurados (veja-se “Sonoro”), não circula aqui.
Talvez essa víbora, enorme e primitiva, história inconsciente de si dentro e fora do sujeito – será então história? –, venha a ser a mesma que dá título ao poema jocoso que lemos páginas antes:
a que continua viva
depois de morta
é a que pica mais forte
Por isso é mister
esconder o pau
(e não mostrá-lo
como pensa o vulgo)
Assim nunca saberá
a cobra
de onde baixa o porrete
eternidade afora
Sem duvidar da cientificidade que possa fundamentar a advertência em relação a essa espécie, não deixa de animá-la uma preocupação de natureza supersticiosa, segundo a qual, ante uma fera desse tipo,mesmo liquidada, é prudente ser discreto e evitar vangloriar-se. Pode-se ser punido pelo excesso – antigamente se era pelos deuses; agora pela própria cobra manhosa, de vibrações diabólicas.
Trata-se da recomendação, algo cifrada, dada a quem está encarregado de dar cabo de uma criatura vista como muito perigosa? Da recomendação a um pau-mandado qualquer, que deve eliminar alguém a quem o rancor acumulado torna-o o mais perigoso dos seres, capaz – contradição gritante – de continuar vivo mesmo morto? Assistimos a uma operação pela qual aquele que com razão odeia, e odeia de ódio secular, é transformado em besta infernal, que, mesmo depois de ser dominada, é necessário… dominar? Agora com a astúcia necessária de quando se lida com seres mais metafísicos. Talvez. Essa composição se segue àquela, ultraconcisa e de caráter sentencioso, na qual “Bochecha// ofereça a outra” é tudo que lemos. Pela vizinhança (termo, aliás, que intitula outra peça no livro), podemos pensar que a criatura referida não é do tipo que cumpriria a divisa cristã acatada, a sua maneira, pelo dominador. Este decerto desejaria que ela fosse posta em prática pelo dominado, que assim não picaria nem em vida nem em morte – é verdade também que o mandamento de “Bochecha” poderia ter valor civilizatório e evitar a rinha entre diplomata e coronel, com o assassinato de um deles, no poema que o antecede, “Entranhas”. Por aí podemos sentir um pouco o meio ambiente do livro, em que a ordem e a vizinhança entre as peças não é aleatória. Vale também aqui o que Roberto Schwarz comentou em relação a “Elefante”: “A sequência dos poemas é fruto de muito cálculo, tem o caráter propositado da montagem e obedece a maquinações de encenador.”
Voltando ao conselho em questão, nada se opõe, por outro lado, a que o vejamos como a orientação de um poeta experiente, conforme a qual o artista não deve gabar-se de seu êxito e ficar falando demais. A obra matou a pau a inexistente serpente (termo este descosturado em “Balada”). Nem por isso esta atazana menos, podendo assombrá-la. Essa hipótese, que não elimina a crença num sortilégio, nos faz pensar sobre as relações entre forma e conteúdo, sendo este a fera golpeada ou domada, ao menos provisoriamente. O pau que não se mostra pode ser também o metro ausente e regulador, nenhum, produto de grande internalização de ritmos e musicalidades, apreendidas na forma artística ou em construções produzidas de maneira mais imediata no cotidiano, com menos autonomia – ritmos que parecem capturados em Gonçalves Dias, um “Dona Miazinha” e tantos mais diminutivos, um adorável e desamparado “muito ótimo”, frases de gente descolada, vocabulário técnico, dicções estrangeiras etc. É a música o abracadabra pelo qual temos acesso aos tesouros do presente – mas também do passado. Tal é aquela produzida pelo léxico estranho e já abstrato (pois seu referente se perdeu no tempo) das peças de um carro de boi. Por estas – invocadas como fantasmas –, chega-se ao pai e à infância. O metro (ou a própria forma?) revela tanto mais audácia e enquadra as potências selvagens quanto mais se invisibiliza. Mas esse enquadramento pode virar também um constritor emparedamento.
De outro ângulo, a cobra “que continua viva/ depois de morta” não participaria da mesma contradição articulada nos versos “vida/desvivida/vivida/sem viver”, do poema “Agora”? Este como um todo sugere, no entanto, um lugar em que essas categorias, vida e morte, não estão sacrilegamente misturadas:
Pensa
os degraus ilimitados
lançados do azul de um céu
profundo,
distante
Formas desvividas
Da vida
Tais estrofes pertencem a uma composição complexa, que não cabe analisar agora. Algumas palavras apenas: a felicidade pode estar ligada à aragem que experimenta em seu rosto a criança onipotente, jogada para o alto pelos adultos, cena que Freud viu ser repetida nos sonhos de voo, nos quais alcançamos o céu. Sobressai a obsessão dessa lírica com a cor azul, cor que às vezes surge justaposta ao ouro, como, na igreja barroca, o azulejo português ao ouro da talha. Se é o “ouro falso” da riqueza assentada na mão de obra escrava, ela própria moeda de ouro, o olhar infantil desconhece e se deixa assombrar. Esse momento está também preservado.
Semelhantemente ao Drummond de “Canto negro” (Claro Enigma), prenhe de dor moral em relação ao passado escravista, projeta-se aqui o desejo de novas possibilidades perceptivas, de um novo modo de aparição das coisas ante o olhar: “Essa nostalgia rara/ de um país antes dos outros,/ antes do mito e do sol,/ onde as coisas nem de brancas/ fossem chamadas.”