ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2017
Literatura com torresmo
A biografia de uma porca
Roberto Kaz | Edição 125, Fevereiro 2017
Maria Eugenia Cerqueira escolheu a foto da capa, escolheu o título e escolheu de quanto seria a tiragem. Também escolheu uma citação do naturalista britânico Charles Darwin para abrir o livro. Depois, escolheu fazer um prólogo, em que define Gipsy – a biografada – como uma avis rara. Só não escolheu que a avis rara com quem mora em Alphaville, na Grande São Paulo, iria ultrapassar os 200 quilos. “O exótico chama a atenção, e a Gipsy parece estar sempre fora de contexto”, explica no livro. “Foi esse estrelato que me incentivou a escrever a história de nossa convivência.”
Gipsy é a protagonista de A Porca e Eu, lançado em agosto do ano passado pela auditora fiscal aposentada. “Escrevi como um alerta”, contou, numa tarde recente, em sua casa ampla, repleta de móveis clássicos. “A Gipsy virou um abacaxi de proporções imensas. Se eu tivesse pesquisado a fundo na época, não teria caído nesse engodo.”
O engodo a que se refere tomou corpo seis anos atrás, quando a autora recebeu a visita de um neto. “Ele morava nos Estados Unidos”, recordou. “Veio passar dois meses comigo. Aproveitei para fazê-lo estudar português.” Certo dia, o menino voltou do curso aventando a hipótese de ter um miniporco. “A sugestão caiu em terreno fértil, já que sou siderada por bichos”, relatou a auditora no livro.
Pesquisando na internet, encontrou uma fazenda em Minas Gerais que se dizia especializada na criação de porcos, búfalos e cavalos de pequeno porte. Encomendou uma fêmea, Piggy, que morreu de infecção intestinal uma semana após a chegada. Desgostosa, exigiu reposição da mercadoria – mas quando Gipsy deu as caras, o neto de 11 anos já havia ido embora.
A auditora passou a criar o suíno, que cabia numa caixa de sapatos e, inicialmente, dormia na copa com Tutti, uma cachorra esquálida da raça galgo italiano. “Naquele tempo, eu ainda podia pegar a Gipsy no colo”, lembrou, nostálgica. Em três meses, porém, a porca superou o tamanho de Tutti. Depois, ficou maior que outra cachorra da casa, a vira-lata Catita. Em seguida, ultrapassou as cadelas Gana e Gaia, ambas da raça leão-da-rodésia. “A copa se tornou pequena para um animal que não parava de crescer. Tive que abrigá-la no jardim.” Foi só então que a futura biógrafa se informou melhor e descobriu a verdade nua e crua: de mini, Gipsy não tinha nada. “Simplesmente porque miniporcos não existem!”, atestou, sem meias-palavras. “O que existe é porco filhote, que fica enorme quando cresce.”
Magra e elegante, Maria Cerqueira usa pulseira de brilhantes e aparenta bem menos do que os seus 69 anos. Transformou-se em maratonista há duas décadas, após enfrentar uma pneumonia. “Precisei fazer um spa na UTI do Sírio-Libanês”, ironizou. “Eu fumava pra burro. Parei com o cigarro e acabei engordando. Aí comecei a me exercitar.” Afirma percorrer de 30 a 40 quilômetros por semana. “Em maio, quero comemorar meus 70 anos na Maratona da Muralha da China. Vou subir 5 mil degraus, correndo.”
Além da porca e das cadelas, a auditora possui um jabuti e quatro papagaios. Ciente das dificuldades trazidas por Gipsy, um amigo – dono de uma fazenda com 10 mil suínos – se ofereceu para cuidar dela. Mas a escritora não topou. “Seria como mandá-la a Auschwitz. Mesmo que não a abatessem, Gipsy veria outros porcos morrendo. E porco percebe. É um animal muito inteligente.” A solução foi apelar para o chiqueiro no jardim. A quadra de tênis doméstica também perdeu a função esportiva a fim de garantir os banhos de sol do bicho. À família da auditora, só restou acatar suas vontades. “Quando comecei a correr, meus filhos entenderam que não tenho um comportamento padrão.”
Claro que a porca de Alphaville acabou despertando a atenção dos vizinhos. Gipsy passou a ser assediada por adultos e crianças em seus passeios mensais, de coleira, pelo condomínio. A fama nacional veio em seguida, graças a reportagens em jornais, revistas e programas de tevê. Mas a mídia, concluiu Maria Cerqueira, jamais daria conta de retratar os pormenores de uma mente suína. Gipsy merecia figurar em estantes de livros e nos arquivos da Biblioteca Nacional. “O ideal seria que ela própria escrevesse sua biografia”, reconheceu a autora, no prefácio. “Mas, na impossibilidade, tento interpretá-la da melhor forma possível.”
O livro, de noventa páginas, não se limita a narrar as peripécias da requisitada personagem. Também discorre sobre o porco na literatura, na culinária, na pesquisa médica e no horóscopo chinês. Recupera, ainda, a memória de suínos célebres, como a fêmea Pig 311, que sobreviveu a um teste nuclear americano no atol de Biquíni. Para os mais pragmáticos, a biografia reúne dicas de como adestrar, alimentar e compreender um porco. “Gipsy se comunica por meio de sons distintos, dependendo do que queira exprimir”, escreveu a autora. “Fome, carência, aborrecimento… Para cada momento há uma fala específica. Um bebê é perfeitamente inteligível para sua mãe, apesar de nada dizer. O mesmo acontece com Gipsy.” A própria auditora bancou a tiragem de 1 mil exemplares.
Alheia à trajetória literária, a porca segue tomando sol, banhando-se na piscina da dona e devorando 4 quilos de comida por dia. Maria Cerqueira e seu caseiro, Wilson Mello, pinçam os legumes, frutas e verduras entre as sobras da Ceagesp, a central que fornece hortifrutigranjeiros à região metropolitana de São Paulo. “Ontem, pegamos muita manga e melancia no chão”, disse a escritora. “Ninguém paga minhas contas. Não tenho prurido com esse tipo de coisa.”
Outro prurido que a biógrafa não tem é o de evitar a carne suína. “Minha predileta”, admitiu. “Sei que estou comendo um parente da Gipsy. Nem por isso, deixo de fazê-lo. Se está morto, disponível, não questiono. É um raciocínio meio cabotino, mas…” Maria Cerqueira gosta tanto da iguaria que, há dois anos, criou o Gipsy Chips, um petisco caseiro à base de fígado de porco, vendido em pet shops e destinado a cães e gatos. Já que a mascote gigante come de tudo, a auditora achou por bem convocá-la para o teste de qualidade. “Ela gostou. Só não costumo dar porque é muito caro.” De qualquer maneira, a história da porca canibal pode render um romance.