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Los Supercívicos
Humor contra as mazelas urbanas
Roberto Kaz | Edição 148, Janeiro 2019
“Olá, amigos do Supercívicos, como estão?”, cumprimenta Uziel Garrido, em castelhano, enquanto filma um parque público durante a noite na Cidade do México. “Vejam essa metade do parque, que bonita, iluminada”, ele diz, antes de virar a câmera do celular para a direção oposta. “Mas esse outro lado está na penumbra, nas trevas.” O homem conta já ter reclamado três vezes com as autoridades, sem sucesso. “E cerca de dois ou três meses atrás uma menina desapareceu por aqui.”
Dois dias depois, Garrido faz uma segunda filmagem, no mesmo lugar. “Olá, estimados Supercívicos. Gostaria de informar-lhes que duas noites atrás mostrei que as luzes do parque estavam quase todas queimadas. Hoje foram trocadas.” Ele agradece à subprefeitura responsável pela área e à equipe do aplicativo – Los Supercívicos – para o qual enviara o vídeo. Em seguida, vaticina: “Usem esse aplicativo, ele é a lei.”
O Supercívicos é uma espécie de ouvidoria pública – só que privada –, com 45 mil usuários que produzem vídeos sobre as mazelas da capital mexicana. Numa semana de dezembro, por exemplo, algumas das denúncias versavam sobre assuntos como um cabo elétrico pendendo de um poste, um carro estacionado sobre a calçada, uma esquina mal policiada, um buraco no asfalto, um bueiro com vazamento de água. Cada vídeo transmitido para o aplicativo tem duração de trinta segundos – tempo máximo permitido para as postagens. Desde que foi lançado, em novembro de 2016, o Supercívicos recebeu 7 mil denúncias e proporcionou duzentas melhorias na cidade.
Só que o Supercívicos não é apenas um aplicativo: é um grupo de humor com quase 2 milhões de seguidores entre Facebook, Twitter e YouTube. O embrião do grupo, por assim dizer, surgiu por volta de 2005, quando um dos fundadores, Arturo Hernández, então com 34 anos, pediu a um vizinho que deixasse de estacionar em frente a uma rampa de acesso para deficientes físicos. “E o que você vai fazer se eu não tirar o carro daqui?”, perguntou rispidamente o homem, lembrando que Hernández não podia multá-lo nem autuá-lo.
Dias depois, Hernández comprou uma lata de tinta vegetal, dessas que saem com água, e pintou o asfalto – e o carro do vizinho –, simulando o rastro de uma cadeira de rodas. Quando o sujeito apareceu, explicou-lhe que a marca havia sido deixada por uma senhora. “Você não viu?”, perguntou, com cinismo, enquanto filmava a reação do homem. “Ela apertou um botão que fez a cadeira subir e passar por cima do carro. Eu filmei tudo.” O sujeito ameaçou chamar a polícia. Hernández jogou um balde de água sobre a lataria, limpando a marca de tinta. Ganhou um inimigo, mas conseguiu que o carro fosse tirado dali.
“O Arturo e eu nos conhecemos numa festa de fim de ano”, contou o seu sócio Emiliano Berruecos, de 43 anos. “Ele tinha acabado de voltar de Miami, onde era VJ da MTV latina, e eu tinha voltado de Londres, onde estudei publicidade. Nesses lugares, à diferença do México, as coisas funcionavam.” Inspirados pelo episódio do motorista desrespeitoso, Berruecos e Hernández começaram a pensar em outras situações que pudessem resultar em ações parecidas. Com uma verba da MTV, fizeram o piloto de um programa, que chamaram de Supercívicos. Não despertaram o interesse da emissora, mas emplacaram o projeto na TV Azteca, segunda maior estação mexicana. “Ia ao ar à uma da manhã”, lembrou Berruecos.
Desde que estreou, em junho de 2006, o Supercívicos passou por uma emissora de televisão aberta e duas fechadas (nessas, com outro nome, Houston, Tenemos un Programa). Hoje está apenas na internet, onde os vídeos, somados, tiveram 45 milhões de visualizações (isso só no canal do grupo no YouTube). Quando o programa quis chamar a atenção para um sinal de trânsito quebrado, vestiu quatro homens de Beatles e os fez cruzar a rua diversas vezes, em fila indiana, como na capa do disco Abbey Road (depois que o episódio foi ao ar, o sinal foi consertado). Quando quis constranger jovens que ocupavam assentos do metrô reservados a idosos e pessoas com mobilidade reduzida, mostrou um sujeito vestido de Cristo que “benzia” as pessoas com água, até que elas se levantassem (“Está andando! É um milagre!”, gritava o ator). Se o problema era uma rua esburacada, um humorista jogava golfe no asfalto. Se era um bueiro destampado, o Supercívicos fazia uma reportagem fantasiosa sobre chineses que haviam atravessado as entranhas do planeta, em linha reta, até sair por aquele buraco no México. Os objetos de perseguição ainda incluíam tubulações rompidas, lojas que invadiam o espaço público e toda sorte de infração viária (carros parados em fila dupla, ou em ciclovias, ou na calçada). Quase todos os vídeos eram protagonizados por Arturo Hernández; o grupo, de oito integrantes, nunca foi processado.
Três anos atrás, Hernández foi entrevistado por um repórter, Diego Mendiburu, que havia criado um aplicativo de jornalismo chamado Fáctico. “Nós publicávamos conteúdo próprio”, contou Mendiburu, de 34 anos. “Mas também oferecíamos uma ferramenta, com geolocalização, para que os leitores publicassem suas próprias histórias.” O Fáctico não deu certo, mas serviu de embrião para que o jornalista fizesse outro, nos mesmos moldes, para o pessoal do Supercívicos. “A ideia era criar uma base de dados que pudesse ser compartilhada com as autoridades.”
Hoje o aplicativo tem recebido cerca de dez denúncias por dia. O processo é simples: o usuário grava um vídeo e o cataloga dentro de alguma das categorias disponíveis (transporte público, coleta de lixo, mobiliário urbano etc.); o vídeo vai ao ar na mesma hora, indicando o ponto exato da ocorrência. Dependendo da localização (por exemplo, Centro da cidade) e da categoria (digamos, infração de trânsito), a autoridade responsável é avisada pelo Twitter ou pelo WhatsApp – o grupo fechou parceria com a companhia de gestão urbana, o metrô, a companhia de água e com duas das dezesseis subprefeituras da Cidade do México. “Nós apresentamos o que está ruim, mas quando o problema é reparado também procuramos mostrar a melhoria”, explicou Mendiburu.