CRÉDITO: FAW CARVALHO_2022
A loucura na órbita da garganta
Gianni Gianni | Edição 190, Julho 2022
SINTO A LOUCURA NA ÓRBITA DA GARGANTA
Assisto a linguagem capotar da minha boca sempre que chego a isto
uma urgência de esvaziamento o lobo frontal latejando o centro da testa
ponto exato dentro da cabeça onde a intoxicação do desejo murmura:
você é refém. one more time. Não importa
o quanto preste atenção à lua minguante, estou de volta. Não importa
a corrosão ativa do meu corpo, estou de volta.
Quando converso nessa condição, assombram-me tecelãs e odaliscas
puxo tantos fios tantos fios tantos fios do oco do laríngeo que sinto a loucura
na órbita da garganta sinto a confissão esbarrar nas muradas.
Do que estou falando nessa hora? De fantasmas.
Não penso que o problema seja a ilusão nem a aridez de que és feito
nem mesmo a imaginação da partilha do mar.
Ainda é a violência do ritmo na carcaça de um touro mecânico de quermesse
o brinquedo que se agita a lugar nenhum valsando o compromisso de susto.
Ontem eu disse que vou casar com você, príncipe.
Isso significa que não nos casaremos.
Você lamentaria, mesmo que nunca me mande mensagens. No dorso do desejo,
eu digo de metralhadora, lanço pela janela o que me vem à mão. São cometas, é lama.
ME CONHECESSE SABERIA
Virás a minha casa transar com outra mulher.
É tão cafona essa divisa
ter que escolher entre a paz e os poemas
se você me conhecesse saberia que eu escolho sempre
os mesmos lugares os mesmos pratos
e a mesma paz, príncipe, isso não é coisa que exista
já os mesmos poemas talvez assombrem. Sim,
não escrevo, estou tentando falar. Percebes a órbita? Surdos.
Batuques. Oásis. Maracas. É muito diferente
de quando estava infectada? Não chega nem perto.
O pus na mão ainda muito. Não vou parar
nem que me revires o cinza.
UMA ROSA, QUEM DIRIA
Uma rosa, ainda ela, resgate da
fissura por passos perdidos, antiquíssimos.
Uma rosa, quem diria. Uma rosa.
Desviei o pulso no gesto de seguir os passos
de uma rosa. Seu método de começar tantas vezes
pelo curso do tédio, portar o ímã da beleza:
o que fazer com tantas mulheres, príncipe?
O acúmulo trava a energia do amor.
Quem diria, logo você, do árido embrionário da vida
chegar nos termos da rosa. Não esqueço
com que força me arrancastes de uma moldura
cor de tinta – vermelha, é claro – na mão.
Nada de pus. Você nunca se corta. Uma rosa.
Pensei que duraria os giros do bambolê que
eu aguentasse. Escapuliu bem antes
o medo da rosa, quem diria, uma rosa.
Não finjo desprezo desde que nasci
também seco a insistência pois nem sempre
o louvor eleva a força. Como você
dobraria a ossada da rosa? Uma rosa,
cá estou há muitos dias, ante o tremor
o desastre.
UM POEMA POR MENOS
você se virou bem na hora que eu começava este poema
eu derrubei um ovo no chão do terceiro verso
[sim, ovo quebrado]
sujeira escorrendo na página
é o que dá olhar o desejo de frente
é claro que vão falar mal deste cheiro
se xingam um poema por menos
duvido muito que alguém leia um poema com cheiro de ovo
– por que tu não limpa antes que eles cheguem?
você me diz.
– hora de renunciar a trapaça, príncipe.
o que mais eu poderia ter dito?