Wilson Simonal e a apologia da pilantragem, ou “o descompromisso com a inteligência” ILUSTRAÇÃO: CAIO BORGES_ESTÚDIO ONZE
Loucura & pilantragem
A desistência de Cláudio Torres em A Mulher Invisível e a reabilitação em Simonal
Eduardo Escorel | Edição 36, Setembro 2009
A saída é a loucura. Diante das mazelas sociais, de um casamento de conveniência ou depois de ser abandonado pela mulher, Cláudio Torres não encontra alternativa para seus personagens principais. O jornalista de Redentor, de 2004, o advogado de A Mulher do Meu Amigo, de 2008, e o controlador de tráfego de A Mulher Invisível, um dos filmes mais vistos deste ano, todos sofrem crise de identidade provocada por injustiças sociais, sentimento de culpa ou de abandono.
A essa reação semelhante dos três personagens se contrapõe a diferença de atitude do diretor em cada filme. A ambição de Cláudio Torres, desmesurada em Redentor e modesta em A Mulher do Meu Amigo, deixa de existir em A Mulher Invisível. O apelo comercial desse último é diretamente proporcional à banalização crescente da narrativa e dos temas tratados. O número de espectadores aumenta de forma exponencial quando o filme se torna pueril. Infantilizar o público é uma receita conhecida de sucesso.
Ambição, por si só, não chega a ser virtude. Mas tem o mérito de demonstrar o esforço do diretor para imprimir marca autoral ao seu longa-metragem de estréia. Em Redentor, o expressionismo da iluminação, o uso da lente grande-angular, os enquadramentos e a composição dos planos criam uma atmosfera fantástica. O desvario do personagem surge como decorrência natural da enormidade dos crimes, negociatas, corrupção, da cumplicidade generalizada e da injustiça que permeiam as relações humanas. Sem ser realista, a indignação dos autores, subjacente ao roteiro, vincula o filme diretamente à realidade brasileira atual. Mas o tom grandiloquente, acentuado além da conta desde a primeira sequência pelos acordes da abertura de O Guarani, não se ajusta à tentativa de dar tratamento humorístico à denúncia social. Narrado pelo personagem principal, depois de ele ter sido jogado do alto de um edifício e morrer, o filme é uma fábula moral sem final feliz que ficou aquém da expectativa dos seus produtores em relação ao número de ingressos vendidos.
Apesar de continuarem atuais, os personagens de Redentor (o empreiteiro desonesto, seus advogados e capangas; ministros, laranjas e policiais corruptos; o jornalista venal; sem-teto e favelados) foram abandonados por Cláudio Torres nos filmes seguintes. Alguns ainda participam de A Mulher do Meu Amigo, mas têm papel secundário nessa comédia de erros sobre troca de casais que descamba para a vulgaridade.
Já em A Mulher Invisível o único tormento que resta é o engarrafamento crônico das ruas da cidade, embora não seja esclarecido se a paralisia resulta do delírio do protagonista, um controlador de tráfego. Agora os personagens agem movidos por interesses pessoais, ao contrário do amplo leque de tipos de Redentor, de todas as classes, e cujos comportamentos são motivados por situações sociais concretas.
A essa inversão de perspectiva se soma a assepsia geral de A Mulher Invisível. A cidade do filme parece ter sido higienizada e os ambientes têm atmosfera hospitalar. Sumiram o lixo e as condições de vida degradadas. Foram deixadas de lado as sombras, os contrastes agressivos, as trucagens apocalípticas. A fotografia de Ralph Strelow, que também iluminou Redentor, agora é translúcida. Nas cores, predominam tons pastéis. Os enquadramentos deixam de ser angulados para serem frontais. A câmera perde inquietação e autonomia, movendo-se apenas para acompanhar o deslocamento dos atores. Todo o empenho é para criar um clima de placidez.
Decepcionado com o número de espectadores dos seus filmes anteriores, Cláudio Torres parece ter concluído não estar ao seu alcance conciliar ambição artística e sucesso de público. Em nome do resultado de bilheteria, abriu mão de tudo que havia de pessoal em Redentor, da indignação cívica ao talento visual.
“Pilantragem é o descompromisso com a inteligência.” No documentário Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei, dirigido por Cláudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal, essa é a definição do próprio Wilson Simonal para o movimento musical, surgido na década de 60, do qual ele foi o principal intérprete.
Quem preza a inteligência não pode deixar de sentir um certo desconforto ao ouvir a declaração, feita durante a ditadura militar. Identificado musicalmente com o ufanismo do Brasil Grande, a afirmação, por si só, bastaria para que Simonal fosse tratado com certa reserva.
Resgatando com habilidade a carreira e a tragédia pessoal do cantor, o documentário trata Wilson Simonal como vítima e réu. Atuando como seu advogado de defesa, os diretores traçam o perfil do personagem como o de um grande cantor, vítima de inveja e discriminação racial, impedido de trabalhar depois que foi acusado de ser informante da polícia. Ao negar a acusação, defendendo causa controversa, dão margem para que venham a público informações e argumentos contrários à tese da inocência de Simonal.
Litígios desse teor estão fora do âmbito das questões cinematográficas. E talvez nunca possam ser esclarecidos, nem pela investigação histórica. Sendo notório que o poder de manipulação da linguagem do cinema permite demonstrar qualquer coisa, é ingênuo pretender que uma série de breves depoimentos, entrecortados por material de arquivo, possa provar alguma coisa.
Engajado na reabilitação de Wilson Simonal, o documentário dá voz a quem nega ou duvida que ele possa ter sido informante da polícia, como é o caso do testemunho de seus filhos, mulher e amigos.
A competência e integridade dos realizadores, porém, os leva a expor um fato que eles mesmos apresentam como verdadeiro: Raphael Viviani, que trabalhava para Simonal como administrador da sua empresa, foi torturado por policiais no Departamento de Ordem Política e Social, depois de ser demitido e mover ação trabalhista contra o cantor. Viviani afirma que Simonal estava no escritório da empresa para onde os policiais o levaram, inicialmente, e dá a entender que Simonal foi ao Dops durante o período em que ele esteve detido.
Ninguém nega que detenção e tortura tenham ocorrido. Mas o documentário dá ênfase menor ao envolvimento do cantor na tortura do seu ex-funcionário, como se fosse menos grave do que a possibilidade de ser delator. Fora o depoimento do próprio Viviani, há apenas a conjectura feita, por outro entrevistado, de que Simonal tenha mesmo “pego três caras e mandado dar uma coça”. Dessa maneira, ocorre uma inversão de valores. Ao dar destaque à suspeita de delação, difícil de comprovar, o documentário consegue absolver Simonal. Deixando de sublinhar a responsabilidade dele na prisão e tortura de Viviani, a reabilitação do cantor não corre risco de ser prejudicada.
No final do filme, um entrevistado afirma que Wilson Simonal é o maior cantor do Brasil. Os diretores do documentário têm todo o direito de acreditar nisso. Discutível é acharem que a injustiça sofrida pelo cantor o exime da responsabilidade por seus atos. A anistia que defendem para Simonal não apaga o sofrimento de Raphael Viviani.
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