ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2015
Luxo reciclado
Manhas de uma habituée da avenida
Renato Terra | Edição 101, Fevereiro 2015
“Fada não tem asa, quem tem asa é anjo da guarda. Fada tem uma varinha na mão e um chapéu igual a um cone”, explicou didaticamente Tânia Índio do Brasil. “Manda alguém fazer a cabeça e a varinha, e eu empresto a roupa.” Do outro lado da linha telefônica estava o carnavalesco de uma escola de samba do Grupo de Acesso do Rio de Janeiro – espécie de segunda divisão do Carnaval.
Assim que desligou, Tânia seguiu para uma área coberta nos fundos do quintal de sua casa, na Zona Norte do Rio. É lá que estoca penas de ema, faisão e pavão, panos e esplendores (um adereço emplumado adaptado às costas) – restos de fantasias acumulados em 55 Carnavais. Ela revirou sacolas plásticas e encontrou uma bolsa. Dela retirou um traje de Nossa Senhora, de tecido branco com motivos dourados, usado três anos atrás. Não é por falta de roupa que a fada da agremiação do colega vai deixar de desfilar.
Faltavam três semanas para o desfile e Tânia se preparava para sair na Estação Primeira de Mangueira. É sua 56ª vez. Se tudo correr como previsto, por volta das dez da noite de 15 de fevereiro, um domingo, ela entra na avenida no alto do carro abre-alas. No enredo que homenageia a mulher, se vestirá como uma rosa estilizada, feita de plumas e folhas de tecido verde. Na cabeça, um adereço de paetês minuciosamente colados.
Quem se habilita a sair como destaque em carro alegórico tem que “gostar e gastar”, disse Tânia. Os pretendentes recebem do carnavalesco um croqui da fantasia. Daí para a frente, têm que rebolar para garantir plumas, paetês, lantejoulas e tecidos, que depois precisam ser cortados, costurados e colados. Chega-se a desembolsar mais de 300 mil reais.
Tânia não revelou seus gastos neste ano, mas as amizades do meio carnavalesco lhe permitem fazer alguma economia com o escambo de material usado. “Sou funcionária aposentada do Detran e não saí de lá roubando”, disse. Ela ajuda os companheiros com o que armazena em seu quintal, alimentando o círculo virtuoso da troca de favores. A fantasia de rosa precisou de cinco meses para ser confeccionada. “Só aproveitei a arte plumária, que é o item mais caro. O resto foi feito do zero: vestido, chapéu, esplendor, a base metálica que serve de apoio para as mãos.” Contou com a ajuda do marido, Renato, e de um ajudante. “Mas, se não tiver a minha mão, não é minha fantasia.”
Com um sotaque carioca na voz juvenil e o cabelo louro num corte Chanel curto, Tânia Índio do Brasil aparenta menos que seus 71 anos. Quando começou a sair na Mangueira, em 1959, não havia o Sambódromo, só inaugurado em 1984. Os desfiles aconteciam nas avenidas do Centro do Rio, os ingressos não eram cobrados. “As pessoas vendiam caixas de laranja para que os espectadores pudessem ficar mais altos e assistir ao desfile com visão privilegiada”, lembrou. O primeiro adereço foi feito a partir de uma tampa de queijo Catupiry. “Depois de ornamentada, virou uma coroa de princesa.”
Naquela época, ela ainda não desfilava do alto. “Saía no chão, como figura de enredo”, explicou. “Éramos um grupo de amigas, todas loiras falsificadas.” Nos ensaios da Mangueira, chegou a sentir preconceito por ter a pele branca. “As pessoas até esbarravam em mim, de propósito.” Com o tempo, ganhou a confiança da agremiação.
Tânia nunca faltou a um desfile. Nem uma cirurgia para a retirada de um tumor do cérebro, em 2008, a impediu de cruzar a avenida no ano seguinte. Por precaução, saiu no último carro, da Velha Guarda, que conta com atendimento médico. Em julho de 2014, o Centro Cultural Cartola, que zela pela memória da escola verde e rosa, colheu seu depoimento.
O tempo lhe deu know-how. No dia do desfile, sai de casa com um vestido levinho, na companhia de dois auxiliares que carregam os apetrechos em sacos plásticos. “Não pode levar mala porque não tem onde guardar”, ensinou. Só veste a fantasia completa quando está em cima do carro alegórico. “E por cima do vestido. Quando o desfile acaba, tiro a fantasia e estou pronta para voltar para casa.”
A experiência a ajudou a evitar situações de risco. Certa vez, Tânia desfilou em um carro equipado com uma máquina de soprar papel picado. Percebeu que os papeizinhos caíam em cima de lâmpadas quentes e começavam a gerar um princípio de incêndio. Rápida, mobilizou seus auxiliares: a dupla se escondeu na base do carro durante todo o desfile, e com muita discrição ficou abanando os papéis incendiários com as mãos. Os jurados nada perceberam.
Por princípio, Tânia nunca desfila em escolas que concorrem com a Mangueira no Grupo Especial. Quando sai também no Grupo de Acesso, seu trabalho é maior. O carnavalesco dá apenas as linhas gerais, como a paleta de cores e o tema do enredo, e ela bola a fantasia com o que tem em seu quintal. Apesar do gosto pelos costumes luxuosos, só uma vez participou dos concurso sem clubes. “O que me move é a emoção que sinto quanto estou prestes a entrar na avenida. Sempre tenho que segurar as lágrimas para não borrar a maquiagem.”
Tânia preside a associação Destaques do Carnaval da Cidade do Rio de Janeiro. Com a voz empostada, ela mesma levanta a questão: “Pergunta o que eu faço lá.” Depois de uma pausa, responde: “Nada!”, e cai na risada. Citou apenas uma reivindicação que encaminhou: que se providenciasse um local onde os destaques pudessem despir as fantasias no final do desfile. “Vinham uns meninos e roubavam o chapéu, sumiam com as alegorias.”
Ela vem observando uma mudança importante na categoria, a extinção dos destaques femininos. “Antigamente, todos os postos mais altos dos carros alegóricos da Mangueira eram ocupados por mulheres. Em 2015, dos onze destaques, oito são homens”, contabilizou. “Hoje as popozudas, narigudas, peitudas, querem sair no chão. Dá mais visibilidade”, disse. “Não vai aqui nenhum lamento ou juízo de valor. Os gays estão com tudo: eles têm dinheiro, bom gosto e vontade de brilhar na avenida. Estão assumindo esse posto com muito amor.”