ILUSTRAÇÕES: MÔNICA MARIA_2021
Mal entendo a língua com que os homens falam
Eucanaã Ferraz | Edição 181, Outubro 2021
O XAMÃ
para Davi Kopenawa
Não acordeis o ouro
deixai que durma
em seu porto profundo
o ouro e seus touros.
Não acordeis o escuro
deixai que durma
em seu golfo misterioso
o ouro e seu fogo.
Deixai em seu porão
o ouro em sonho monstruoso
o ouro e seus assombros
o ouro e seus tambores.
Preservai silencioso o bosque
inóspito que sonha o rosto
secreto da morte na ostra
em sonho.
Cuidai que durma o desgosto
a dor imóvel deixai
em sono o que descansa
no horto oculto.
Não acordeis o sorvedouro
não acordeis o que vos cobrará
em desgosto sem retorno
o repouso roubado.
Não desperteis do ouro
o polvo que quebrará em oitocentos
pedaços vosso pescoço
e vosso pulso.
Não tireis de seu trono o ouro
e suas esposas
que descansam em perfeita
fome e abandono.
Não acordeis no ouro o ódio
pois moeda nenhuma pagará
o imposto de vosso remorso
a flor de vossos tumores.
Deixai em silêncio o ouro
deixai em repouso sua alcova
antiquíssima no centro da terra
no antes do ovo.
Não acordeis a raposa
que dorme no outono
o maremoto que dorme
no fósforo e no osso.
Deixai em sossego o que apodrece
deixai em paz o que não vos pertence
deixemos em ouro
o ouro.
NA FEIRA
A feira de sempre
o sempre de sempre.
Foi quando sem mais
na banca de peixes
o peixe me olhava.
A prata parada
as guelras imóveis
no entanto – me olhava.
A pupila negra
a córnea brilhante
me olhava perplexo
embora parado
como se pedisse
uma explicação:
O que faço aqui?
Onde estão as águas?
Os corais morreram?
Por que de repente
me perdi de tudo?
Por que sem aviso
me tornei a pedra
que de longe eu via?
Onde foi a duna?
Onde estou agora?
O que são vocês?
Desviei o olho:
camarões vermelhos
de laca brilhante
polvos moles roxos
ostras caranguejos
a maré quebrando
seus perfumes podres
contra a tarde estúpida
no balcão de aço.
Retornei a ele
o peixe me olhava
seu olhar vidrado
seu cristal atônito.
O peixe me olhava
como se indagasse
(numa língua muda
numa língua olho
numa língua enigma)
a razão de tudo
ou como se desse
(logo a mim? por quê?)
um recado urgente
(para quem? e qual?).
Mal entendo a língua
com que os homens falam
(finjo digo calo)
como entenderia
o que diz um peixe
na banca de peixes
da feira de sempre?
As escamas postas
tão perfeitamente
o olho tão redondo
tão redondamente
e a boca e os dentes
tudo executado
em conformidade
com a matemática
das inumeráveis
mil cosmogonias
que – talvez por erro
sim – elaboraram
nossa vida inteira
e eu estar aqui
nesta feira – vivo.
Me aproximei – mudo –
sem respirar – quase –
do olho que me olhava
que me olhava fixo
que me olhava – vivo? –
de dentro da morte
como de uma fresta
e lhe perguntei:
quanto tempo resta?
(O sol bateu cego
no dorso da lâmina
e a adaga desceu
na carne do mundo.)
FILHO
Os dias têm longos cabelos que crescem mesmo depois
de degolados.
Errei como qualquer vagabundo
até que exausto e velho cheguei a maio.
Foi então que vi sem espanto
no centro azul-turquesa de seu pátio – eu
sem nem um traço de cansaço – eu
jovem como no passado vertical como no passado
e como estava nu e como estava descalço
parecia um bicho
de sua própria liberdade coroado.