ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
À margem da margem
Uma casa para abrigar pessoas trans em situação de rua
João Batista Jr. | Edição 185, Fevereiro 2022
O contador e ativista Paulo Araújo, de 31 anos, procurou durante seis meses uma casa espaçosa para alugar no Centro de São Bernardo do Campo, cidade da Região Metropolitana de São Paulo. Encontrou diversos imóveis disponíveis e fez algumas propostas. Mas sempre escutava “não” como resposta em algum momento da negociação. Araújo atendia aos requisitos exigidos: tinha fiador e dinheiro para o depósito caução. Chegou até mesmo a oferecer doze meses de pagamento adiantado.
Os proprietários se recusavam a alugar os imóveis ao saber o motivo da locação: criar a sede física da ONG Casa Neon Cunha, para abrigar e capacitar pessoas LGBTQIA+ em situação de rua. “Escutei desde que a casa de acolhida desvalorizaria o lugar até que os vizinhos iriam reclamar do entra e sai dessa gente”, conta Araújo, presidente da ONG. Ao todo, ele ouviu 25 “nãos”.
Para tirar a dúvida sobre as recusas em série, o Diário do Grande ABC resolveu fazer uma reportagem em que o jornalista se fazia passar por uma pessoa interessada no aluguel das mesmas casas. Quando era perguntado sobre o objetivo da locação, a reportagem dizia que era para uma república de estudantes. Todas as negociações deram certo, mas não foram fechadas, claro, porque se tratava de uma apuração jornalística.
Araújo, por sua vez, só conseguiu alugar um imóvel em dezembro passado, depois que o site de locação Quinto Andar entrou de intermediário no negócio e bancou a reforma do telhado e das instalações elétrica e hidráulica da casa. “A violência do preconceito mostra a cara na rua, mas também nas transações comerciais”, diz ele.
A Casa Neon Cunha nasceu em 2018, quando o discurso de ódio contra a população LGBTQIA+ se expandia no Brasil, inclusive da parte de políticos e religiosos. O nome é uma homenagem a Neon Cunha, de 52 anos, que entrou para a história dos direitos da população trans depois de viver, nas suas próprias palavras, “mais um processo de apagamento de sua identidade”.
Ela nasceu em Belo Horizonte, mas mora em São Bernardo do Campo desde os 2 anos de idade. Seu pai foi operário na Volkswagen e a mãe, diarista. “Aos 4 anos, eu já ajudava minha mãe a fazer as faxinas e tarefas domésticas”, conta Cunha, que se reconhece como menina desde a infância.
Em 2014, quando tinha 45 anos, ela entrou na Justiça com um pedido de retificação de gênero em sua documentação. Na época, o governo federal exigia um laudo médico que comprovasse a transexualidade de quem pleiteava a alteração dos documentos. O processo era exaustivo e deixava a pessoa refém de uma análise subjetiva de médicos e juízes. Além disso, a mudança, na maioria das vezes, era autorizada àqueles que tinham se submetido à cirurgia de redesignação sexual.
Cunha se recusou a passar pela avaliação médica. Como o resultado do processo estava demorando, ela resolveu enviar à Organização dos Estados Americanos (OEA) um pedido de morte assistida, caso seu gênero e identidade não fossem reconhecidos. Mas, em 2016, o juiz Celso Lourenço Morgado, da 6ª Vara Cível de São Bernardo do Campo, deferiu o pedido de mudança de gênero e nome. Na sentença, ele afirmou: “A transexualidade não é uma condição patológica, e a identidade de gênero é autodefinida pela pessoa.”
Foi o primeiro caso no Brasil de retificação de documento sem a necessidade de laudo médico, o que criou um precedente jurídico. “A morte é a não existência, a ausência de vida. Não ter acesso ao direito de ter documento era uma forma de me apagar”, diz Cunha, que se graduou em publicidade e trabalha como funcionária pública da Prefeitura de São Bernardo do Campo.
A conquista transformou Cunha em um símbolo da luta dos transexuais contra o processo de invisibilização que os atinge. Desde então, ela adotou como lemas duas frases que se inter-relacionam. Uma é da escritora Conceição Evaristo e diz: “Eles combinaram de nos matar, nós combinamos de não morrer.” Outra surgiu do rolê nas favelas: “Corre com nós ou corre de nós.”
A Casa Neon Cunha vai abrir as portas no próximo mês de março. “Até 2020, havia treze mulheres trans morando nas ruas de São Bernardo. Hoje, são trinta”, diz Paulo Araújo, que vai abrigar todas elas na sede e agora está em busca de doações para mobiliar e prover o local, onde será oferecido aconselhamento e qualificação.
No segundo semestre de 2021, uma equipe contratada pela Prefeitura de São Paulo saiu a campo para fazer um novo censo da população em situação de rua. O resultado saiu no final de janeiro: são 31 884 pessoas – 31% a mais que em 2019, quando foi feita a pesquisa anterior. “Houve um aumento do número de famílias morando na rua e também da população trans”, afirma Carlos Bezerra Júnior, secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social. O novo censo constatou que há 171 mulheres trans, 72 homens trans e 50 travestis em situação de rua na maior cidade do país.
“Eu nunca atendi tantas mulheres trans e travestis como nos últimos dois anos”, conta o padre Júlio Lancellotti, que comanda uma enorme rede de apoio às pessoas em situação de rua, a partir da Paróquia São Miguel Arcanjo, na Zona Leste de São Paulo. “E há outro agravante: além de não terem um teto e passarem fome, essas pessoas precisam lidar com ataques constantes de violência física e psicológica.”
Ao contrário de São Bernardo do Campo, São Paulo já dispõe de um abrigo municipal para a população trans, chamado Casa Florescer. Mas, segundo Lancellotti, o local “não tem higiene” e condições adequadas. “A prefeitura não entende que essas pessoas têm família. Uma mulher trans não está autorizada a ficar nesses lugares ao lado de seu companheiro”, diz ele.
Neon Cunha afirma que tirar as pessoas trans da rua é fundamental para garantir que elas continuem vivas. Em novembro de 2020, a transexual Ester Vogue, em situação de rua em São Bernardo do Campo, teve 80% de seu corpo queimado em um crime de ódio. Morreu três dias antes de completar 34 anos.
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