O apartamento da rua Bollagata 12, 2º andar, ainda existe. Está na foto atrás de Thorvaldur Thorvaldsson, um dos quatro candidatos a herdeiro do singular testamento. Cada qual se dizia mais comunista do que o outro FOTO: BROOKS WALKER
Marx + Engels + Lênin = sala e 2 quartos
A história de um apartamento na Islândia deixado em testamento a quem fosse o mais comunista dos comunistas
Christophe Nick | Edição 32, Maio 2009
Reykjavík, 1984. Dez graus centígrados abaixo de zero, o vento soprando a 70 quilômetros por hora. Mais uma tempestade de neve, droga de cidade. Não se enxerga nada da via perimetral. Meu motorista de táxi, herói ou esquimó, segue atrás dos jipes Ford, melhor equipados para avançar nas trilhas da neve já endurecida. Para sair do que poderia ser, na primavera, uma auto-estrada, o motorista dá um giro brusco no volante, o táxi é jogado para o lado e começa a ziguezaguear feito um infeliz na neve fresca antes de se encaixar em outros sulcos que desviam para o centro da cidade. Vê-se o lago, gelado como é de se supor. E uma sucessão de casinholas de pedra e madeira pintada, graciosas, porém enregeladas. O táxi me deixa defronte à sede do governo, dois pisos brancos, sem nenhum policial na frente, nenhuma placa, nem sequer uma campainha.
Afundo até as canelas na neve e tenho que empurrar o táxi para ajudá-lo a sair da montoeira em que se enfiou. Só o tempo de sacudir o gelo grudado nas calças e cá estou eu num vestíbulo bem classe média, com carpete florido e papel de parede amarelado.
– Bom dia, senhorita – digo para uma datilógrafa. – Tenho hora marcada com o senhor Ólafsson, secretário-geral do governo…
– Primeiro andar à esquerda.
Vou até lá, bato à porta.
– Sim?
Entro.
– Ah, é o senhor…
Êpa, entrei direto na sala dele, sem topar com nenhuma barreira, nenhum meirinho, nenhuma desconfiança e olhares de esguelha, sem ter de apresentar a identidade na entrada.
– Bom dia, é que uma secretária, lá embaixo, me falou pra subir e…
– Uma secretária, lá embaixo?
– É, lá embaixo, uma secretária.
– E que jeito tinha essa secretária?
Eu a descrevo. Ele dá uma risada:
– É a ministra das Comunicações…
Cara de tacho.
– Por favor, fique à vontade…
A sala de Magnús Ólafsson lembra a de um diretor de escola primária. É pobre. A janela pequena, à esquerda, não ilumina rigorosamente nada. Dois armários envernizados, um sobretudo pendurado num cabide comprido. Mas chega de considerações anexas: vim conversar com Magnús porque seu passado de deputado íntegro fez com que fosse nomeado assistente num processo, a título de “especialista objetivo do marxismo”. Fora recentemente encontrado o testamento, antigo de vinte anos, de um militante do Partido Comunista Islandês. Esse bravo militante deixava seu apartamento para o melhor marxista do país. Ao herdeiro caberia fundar um instituto cultural e educacional.
E o juiz nomeara Magnús Ólafsson como assistente, responsável por indicar o feliz marxista.
Nada fácil.
A história, aliás, é complicada e Magnús tenta destrinchá-la para mim:
– O falecido, senhor Sigurjón Jónsson, era membro dos Socialistas de Reykjavík, a tendência ultraminoritária do Partido Comunista Islandês que rejeitou o relatório Kruchev[1]. Bom… Ele pretendia legar o apartamento dele para o Partido, mas queria evitar que o seu legado caísse nas mãos da maioria revisionista que ele combatia. Para evitar que isso acontecesse, em 1961, aos 63 anos de idade, ele redigiu esse testamento…
Magnús Ólafsson me mostra o testamento e se esforça para traduzi-lo para mim por extenso. Reproduzo-o aqui:
Eu, abaixo assinado patati, patatá, declaro instituir meu testamento como se segue: o apartamento de minha propriedade na rua Bollagata será transformado em instituto cultural e educacional em benefício do único partido socialista que trabalhar dentro do espírito do socialismo tal como interpretado por Marx, Engels e Lênin. A direção do citado instituto será composta por três pessoas escolhidas pela associação dos Socialistas de Reykjavík, a qual instituirá o regulamento… Vou pular essa parte… Ah, escute mais esta: Caso o Partido Comunista encerre as atividades, ou sofra alguma cisão, o instituto deverá funcionar sob uma direção política reconhecida pelo movimento marxista-leninista internacional etc. etc.
Magnús tira os óculos e olha para mim com um largo sorriso:
– O mais surpreendente é que Sigurjón Jónsson previu muito bem o futuro.
– O Partido Comunista se cindiu?
– Melhor ainda! Ele encerrou as atividades para formar a Aliança do Povo, uma federação dos partidos de esquerda. Os Socialistas de Reykjavík, por sua vez, partiram para uma dissidência e acabaram estraçalhados nas eleições seguintes, com 0,5% dos votos.
– Mas se o Partido Comunista está virando pó, quem pode reivindicar o apartamento deixado por Sigurjón?
– Nesse caso, de resto bem complexo, poderiam ser as associações de amizade com os países socialistas: a Associação de Amizade Islando-Cubana, a Islando-Chinesa, a Islando-Vietnamita e a Islando-Albanesa. Um quebra-cabeças, meu caro senhor, um quebra-cabeças!
– O senhor conheceu o Sigurjón pessoalmente?
– Não, mas converse com Maria Porsteinsdóttir. Ela era a passionária dos Socialistas de Reykjavík.
Júbilo, gritos de júbilo, vou finalmente conhecer uma socialista de Reykjavík. Mas droga! Ela se recusa a me receber. Afastada da militância, Maria é tradutora para o islandês de uma revista soviética. Sua história é dramática: um marido que se suicida na banheira, um filho que vai estudar na RDA [a antiga Alemanha Oriental, hoje reunificada] e lá se casa com uma prostituta, com a qual tem dois filhos antes de também se suicidar. Maria acorre a Viena para resgatar os netos de um orfanato. Cria esses netos e, bum!, um deles se suicida. Cheguei a trocar umas palavras com Maria por intermédio da embaixada da URSS. Ela me sugeriu que procurasse Tryggui Benediktsson, um ex-colega de ateliê de Sigurjón, e atual vice-presidente do sindicato dos metalúrgicos.
Tryggui me recebe na oficina em que fabrica peças avulsas para barcos pesqueiros. Já perto de se aposentar, de início não lembra sequer que Sigurjón Jónsson existiu. Mesmo assim conversamos, as lembranças retornam com dificuldade, como se sentisse saudades da idade de ouro do comunismo islandês.
Eis, então, a história de Sigurjón Jónsson.
Nasceu num fiorde perdido do noroeste da Islândia, numa aldeia de 150 pescadores de baleia situada a poucas centenas de metros do círculo polar. Por aquelas bandas, quando não é o mar enfurecido arrastando bancos de gelo descomunais, é a borrasca que desaba das geleiras e vulcões. O povo é protestante, como reza a religião oficial, mas na verdade cultiva toda uma série de ritos pagãos, acredita nos elfos e nas lendas dos antepassados vikings. E, como eles dizem lá em Patreksfjörour, é besteira não acreditar em elfos se todo o mundo já viu pelo menos um uma vez na vida.
Em 1917, Sigurjón Jónsson está com 24 anos. Ouve histórias trazidas pelos marinheiros do Grande Norte: do outro lado do oceano, na Rússia, os sovietes derrubaram o czar e tomaram o poder. Sigurjón nunca foi à escola, mas sabe ler acompanhando com o dedo. Assim, quando alguns pescadores trazem às escondidas livros de propaganda impressos em Reykjavík, nosso futuro militante se joga sobre eles com avidez. Descobre Lênin, a revolução proletária e a agitprop. Da noite para o dia, vira revolucionário, lá no seu fiorde perdido. Evidentemente, suas primeiras tentativas junto aos pescadores de baleia têm como resultado ser tratado de excêntrico. Ele queria tanto se tornar um militante modelo da revolução islandesa… Mas para isso há que ser proletário. Tudo bem, nosso revolucionário desce então para a cidade.
Num primeiro momento, consegue emprego de operário metalúrgico numa empresa de Reykjavík. Ele se torna um militante profissional. Levanta três horas antes do trabalho para colar cartazes ou coordenar a distribuição de panfletos. Escuta religiosamente os relatórios dos camaradas, combate os desvios, é o guardião da linha justa. Além disso, estuda as obras completas de Stálin até detonar a saúde. Tudo isso para defender os pescadores.
Nesse ponto, a narrativa de Tryggui começa a se embaralhar. Ele se cala, emocionado demais. Nesse país de trinta paróquias protestantes, com menos habitantes que um bairro de Paris – 240 mil no país todo –, jamais se fala na vida privada dos outros.
De modo que fui de novo procurar Magnús Ólafsson.
Quando cheguei à sede do governo, ele vinha justamente descendo do ônibus. E agora, segurem-se bem, a história vai descambar para o rocambolesco.
Sigurjón era um solteiro puritano. Só amava o seu partido. Não tendo jamais conhecido mulher, não tinha herdeiros diretos. Ocorre que, assim como 80% dos islandeses, ele possuía o seu próprio apartamento. Sendo seus rendimentos de operário um tanto minguados, tratava-se de um quatro cômodos feioso num dos prédios mais feios da cidade. Uma construção de periferia, cinza-cimento, deprimente, num cenário de prédios limpinhos e coloridos. Ainda assim, era um quatro cômodos que ele não queria entregar ao Estado burguês. Sigurjón então redigiu o testamento de que falávamos há pouco.
E aí, ó desgraça cruel, Sigurjón se apaixona, aos 69 anos. Casa-se com Sólveig Jónsdóttir, fiel militante, uma moça de 49 anos. Com isso, o advogado é consultado e incumbido de redigir um novo testamento contendo a seguinte frase: “Meu primeiro testamento só terá validade após a morte de minha mulher.” Sigurjón está prestes a assinar. Mas, pensa melhor. “Vou mostrar para a minha mulher”, diz ele. A mulher urra e protesta: o apartamento deve permanecer na família, insiste ela. Um tanto abalado com a brutal reação, Sigurjón liga para o advogado e pede a ele que simplesmente destrua o velho testamento, mas, trapaça da sorte, adoece, é internado no hospital onde morre um mês depois, em 31 de maio de 1964.
A brava Sólveig passa a viver como uma reclusa no seu quatro cômodos. O apartamento lhe pertence e ela aí se entrincheira. Será que a lei a ampara? Um belo dia ela descobre, entre os papéis do finado marido, uma cópia do famoso testamento destruído. Sem dizer nada a ninguém, a viúva conserva aquela relíquia.
Eis que no final de 1982, é Sólveig quem morre, sozinha e abandonada por todos. Os papa-defuntos encarregados do caso encontram numa gaveta o famoso testamento. Tratam, naturalmente, de encaminhá-lo ao juiz.
Alvoroço na magistratura islandesa. O que fazer com o documento? Resolvem publicá-lo no jornal, feito licitação: que o povo inteiro dele tome conhecimento!
O pessoal da direita cai na risada. Para eles, a Aliança do Povo não passa de um tapa-sexo da KGB. Aquilo tudo cria uma notável publicidade para o testamento, e o que era para acontecer acaba acontecendo: três dias depois, um velhote de 87 anos dá o ar de sua graça. Trata-se de um tio de Sólveig, que vem reclamar a herança em nome da família.
No mesmo dia, sai da toca outro pretendente. É Thorvaldur, o secretário-geral do BSK, Partido pela Luta Armada e pela Reconstrução do Partido Comunista Islandês, de tendência albanesa. Ele também reivindica o apartamento.
Quando então… lá dos confins da Islândia, num lugarejo chamado Húsavík, o presidente da Amizade Islando-Vietnamita, por sua vez, toma a ofensiva. Não está nada satisfeito. Por que o infame BSK pró-albanês teria direito à herança, e não ele? Há que passar à frente do BSK. Como? Fazendo uma aliança com todos os outros, a saber, os pró-chineses, pró-cubanos e pró-alemães orientais. Ele convoca uma assembléia geral de todas as Amizades Islando-Alguma Coisa.
Na noite da reunião, porém, o pró-albanês Thorvaldur Thorvaldsson também está presente. É o primeiro a se levantar e tomar a palavra: “Compreendo a preocupação de vocês, senhores revisionistas”, diz ele. “Por obséquio, queiram reler o testamento: ele diz expressamente que somente organizações representantes dos países socialistas estão habilitadas a reivindicar o apartamento. Ora, só existe um país autenticamente socialista, e esse país é a Albânia, dirigida pelo camarada Enver Hoxha!”
Urros, tumulto. Thorvaldur, aos gritos: “Filie-se à Amizade Islando-Albanesa! Filie-se ao BSK, o único legítimo partido marxista-leninista islandês!”
E Thorvaldur deixa a reunião, abandonando os conjurados às suas sinistras manigâncias contra-revolucionárias. Assim é que, naquela noite, assistiu-se à histórica aproximação entre pró-chineses e pró-vietnamitas. Entrando no embalo, pró-cubanos e pró-alemães orientais apõem sua assinatura no documento comum. O que, aliás, não gera nenhum tipo de constrangimento. Pois na Islândia os presidentes das Amizades pró-Cuba e pró-RDA pertencem ambos à Amizade pró-Vietnã e, reciprocamente, o presidente da pró-Vietnã é membro de base das duas organizações supracitadas. Percebem? Numa palavra, ninguém concorda com ninguém mas todo mundo anda por aí com as mesmas carteirinhas, o que simplifica certas coisas quando não as dificulta.
Já Magnús Ólafsson mostra-se claramente menos eufórico. Eis que se vê confrontado àquele imbróglio, àquele dossiê delicado, a todo tipo de perguntas incômodas.
Primeiro: a família de Sólveig tem ou não tem direitos sobre o pequeno quatro cômodos? O único documento jurídico válido é o testamento assinado por Sigurjón que designa os marxista-leninistas como legatários. Mas Sólveig morou no apartamento vinte anos, isso não conferiria algum tipo de direito ao seu velho tio?
Segundo: acaso existe na Islândia um partido que “adote as normas do movimento marxista-leninista internacional e seja reconhecido por ele”? Será realmente a Albânia a representante inconteste do comunismo puro e duro dos anos 50?
Terceiro: em que tendência Sigurjón se alinharia hoje, caso estivesse vivo? O que ele acharia do fracionamento do comunismo internacional? Em que tendência teria ido parar, ele que faleceu vinte anos atrás?
É aflitivo. Para cúmulo do azar, Magnús Ólafsson não tem como me dar nenhuma luz, nenhuma, pois: “Eu sou o juiz desse caso”, diz ele, desculpando-se. “O senhor há de compreender que me é vetado responder publicamente a estas perguntas antes de termos deliberado e estatuído.”
– Entendo. Mas posso saber pelo menos segundo quais critérios os senhores decidirão qual o melhor marxista da Islândia?
– Sinto muito. Estamos deliberando. Aguarde alguns dias.
Tive, assim, de me conformar em empreender um périplo pela esquálida galáxia dos marxista-leninistas islandeses. E aí, nem queiram saber… Os velhos militantes Tryggui Benediktsson e Maria Porsteinsdóttir tinham me parecido patéticos. Só que eu ainda não tinha visto nada.
Para começar, Thorvaldur Thorvaldsson, o sujeito do BSK, o pró-albanês. Do alto do seu conjunto habitacional, o secretário-geral tem uma vista permanente do porto de Reykjavík, da baía e das falésias longínquas, onde estão os vulcões. Uma paisagem congelada. Da sua varanda pendem monstruosas estalactites. Eu esperava um idoso, um velho e tarimbado dirigente do proletariado, e quem me abre a porta é um viking, um barbudo ruivo de pele leitosa com menos de 30 anos de idade e mais de 1,90 metro de altura. Embora o imponente Thorvaldur seja o único membro de seu partido – isso mesmo, o único –, ele optou por representar uma tendência, a albanesa. O que já lhe rendeu três viagens pagas para Tirana, pois os albaneses fazem questão de convidá-lo a cada reunião internacional de seus simpatizantes.
Na caça ao quatro cômodos, Thorvaldur por pouco não foi desclassificado já de saída. É que, para dar seu veredicto, o juiz precisava do programa do BSK a fim de avaliar seu teor marxista-leninista. Nem pensar. Pela regra de ouro dos pró-albaneses, o programa e os estatutos devem permanecer secretos, protegidos dos olhares burgueses e da repressão antioperária.
Thorvaldur foi então obrigado a convocar um congresso do seu partido a fim de, por unanimidade de seu próprio voto, alterar os estatutos e tornar possível a publicação do programa.
– Que programa?
– Digamos que nosso objetivo primeiro é reconstruir um partido marxista-leninista de massa. A vanguarda da classe operária deve manter-se unida no seu partido, o único instrumento eficaz para mostrar a diferença entre revolucionários e revisionistas, desmascarar a natureza dos revisionistas e…
– Claro, claro…
– Os revisionistas impedem que se deflagre a ofensiva contra a burguesia!
– Sem dúvida, mas…
– Causam estragos consideráveis dentro do movimento operário.
– Evidentemente. Então a única via para o socialismo é a luta armada?
– De fato, é a única solução. A burguesia tem armas e serve-se delas. Aos operários só resta revidar.
– E… o senhor faz treinamento?
– Não posso responder a essa pergunta.
A ala dos revisionistas está firmemente decidida a não deixar o BSK se apropriar do apartamento. Vou ter com ela na pessoa do doutor Sveinn Rúnar Hauksson, líder da Amizade Islando-Vietnamita. Marcamos um encontro em Reykjavík. Para comparecer, o doutor Sveinn precisa tomar o avião, já que mora nos confins setentrionais da ilha, num lugar desabitado para onde foi exilado em decorrência de repetidas internações em hospitais psiquiátricos. Na qualidade de paciente, não de médico. Pois, maníaco e incurável, é regularmente acometido de surtos de histeria. Os vietnamitas um dia o convidaram oficialmente para ir a Hanói. O que aconteceu de fato em Hanói? Ninguém quis me dizer. Mas os vietnamitas o despacharam de volta no primeiro avião e pediram que devolvesse o valor da passagem.
Reconheço o doutor Sveinn assim que ele desce do avião. Pela mala. Uma mala constelada de todos os adesivos anti-qualquer coisa que se possa imaginar: antinuclear, anti-Otan, El Salvador, massacre das baleias, comitês feministas etc. Além disso, ele é desde o final dos anos 60 o maior agitador da ilha. As marchas do Maio de 68 islandês, as imensas manifestações contra a base americana, os atuais desfiles pacifistas, ele é tudo isso. É membro de todas as associações de amizade com todos os países socialistas, com exceção da Albânia. E, cristão fervoroso, vai ao culto todo domingo.
Eu só tinha uma pergunta a lhe fazer:
– O senhor, pró-vietnamita, não se incomoda de fazer aliança com o pró-chinês, mesmo em se tratando de lutar contra o pró-albanês?
A resposta durou quatro horas. Resumindo:
– Vá falar com o pró-chinês e entenderá.
Fui, então, conversar com Arnthor Helgasson, o pró-chinês. Sua história é ainda mais estapafúrdia do que a dos outros, se é que isso é possível. Cego de nascença, maoísta desde quase a mesma época, Arnthor fundou a Amizade Islando-Chinesa no final dos anos 60. Ocorre que Arnthor é inteligente, tem um mínimo de ambição e logo compreendeu que a militância pura e dura não o levaria muito longe. Poucos anos antes, quando vagou o cargo de diretor do Instituto Cultural dos Cegos, pleiteou o posto. O problema é que o ministro responsável pelo Instituto era membro do partido dos proprietários rurais, uma agremiação de direita, reacionária que só. Arnthor aderiu ao partido. Mas continuou presidente da Amizade Islando-Chinesa.
– Não vejo nenhuma contradição – explica ele, na sua sala de diretor no Instituto dos Cegos, diante de uma máquina de escrever braile. – O presidente Mao indicou várias vias para o socialismo. Uma delas, quando indispensável, é a colaboração com outras forças políticas.
O presidente Mao também afirmou que o próprio Partido Comunista Chinês não era um modelo eterno. Acreditar no contrário seria opor-se ao pensamento do presidente Mao.
– Mas o senhor não se incomoda de pertencer à mesma organização que um pró-vietnamita?
– Veja bem… não lhe parece que os homens algum dia terão de abrir mão dos seus dogmas? O testamento de Sigurjón, para além de seu discurso meio datado, é de uma sabedoria exemplar: ele nos condena a nos entendermos. Obriga os marxistas de todas as tendências a conviverem. E isso é bonito, não é?
Era bonito esse maoísta cego falando em fraternidade e sabedoria. Não tinha nada de cômico. Perdi a vontade de zombar dele.
Na vasta aliança antialbanesa, anti-BSK, ainda existe, afora o maoísta cego, a dedicadíssima Ingibjörg Haraldsdóttir, presidente da Amizade Islando-Cubana.
Que trajetória a dela! Dez anos atrás, Ingibjörg, então estudante, apaixonou-se por um escritor cubano, com quem viveu seis anos no Caribe. No final, o escritor juntou os trapos e foi morar com a melhor amiga dela. Desde então, no seu apartamento asseado, só lhe restam a tradução de romances e as recordações ardentes dos coqueiros socialistas.
Só me falta encontrar com a família Sólveig, ou melhor, o que restou dela – um idoso de 87 anos. O advogado do vovô vai direto ao ponto:
– Eu aceitei esse caso – diz ele – porque tenho certeza de ganhar.
– Sim, mas o único documento válido é o primeiro testamento.
– Não necessariamente. A Sólveig tinha direito automático a dois terços da herança. Cabia a ela, portanto, fazer um testamento. Já que não fez, dois terços dos dois terços devem reverter para a família. Agora, muito cá entre nós, ainda temos o outro testamento, o que Sirgurjón escreveu pouco antes de morrer. Não está assinado, mas aqui está (está na mão dele). Com isso, é lícito considerar que, dos dois terços que cabiam a Sólveig, um terço reverte para as organizações. O senhor está acompanhando o meu raciocínio?
– Mais ou menos. Então o apartamento poderia ser fatiado. Metade iria para a organização vencedora do concurso de marxismo, e a outra para o seu cliente?
– É possível. É possível que tenha de haver uma partilha. Confesso que essa história já me fez dar boas risadas. Há detalhes que o senhor desconhece: se o meu cliente ficar com o apartamento, seu grau afastado de parentesco o obriga a pagar 50% do valor em impostos…
– Ah!
– É a lei. O senhor gostaria de falar com o herdeiro?
O advogado pega o telefone e começa uma conversa islandesa com seu interlocutor. Os minutos passam e sua fisionomia vai se alterando…
– Me desculpe. Foi a filha dele que atendeu. Acaba de ser informada de que o pai foi levado ao hospital. Mal de Parkinson, o senhor compreende…
– Isso significa que a filha é que vai ficar com o apartamento?
– Hmm… Pode ser, mas depois que ele morrer. Só que com mais impostos!
Março de 1984
POSFÁCIO, MAIO DE 2009: passaram-se 25 anos desde a publicação desta reportagem na hoje extinta revista francesa Actuel. Para saciar a previsível curiosidade dos nossos leitores, e a nossa também, piauí procurou investigar o que foi feito de cada um dos personagens desse notável capítulo do marxismo-leninismo. Eis o que encontramos através do repórter-fotográfico Brooks Walker e seu assistente Arnar Már Hall Guðmundsson:
1. Magnús Ólafsson, encarregado da execução do testamento, morreu em 1998. Foi ministro da Educação e ministro das Questões Sociais e Transportes, além de presidente do Partido Comunista da Islândia.
2. Thorvaldur Thorvaldsson, o único membro da facção pró-Albânia, continua firme e forte aos 51 anos. Mantém um blog (http://vivaldi.blog.is/blog/vivaldi/about/), no qual pode ser visto vestindo uma camiseta socialista. Foi presidente do sindicato dos marceneiros. É um dos fundadores do Partido Verde e disputou uma vaga de deputado em abril passado. Não se elegeu. Atualmente está desempregado.
3. Sveinn Rúnar Hauksson, o ex-líder da Amizade Islando-Vietnamita que sofria de surtos, exerce a medicina numa clínica local de Reykjavík. Costuma frequentar as reuniões da Associação Islando-Palestina. Tornou-se famoso entre seus compatriotas como “notável colhedor de amoras”, na expressão de um semanário local. Também concorreu pelo Partido Verde nas últimas eleições legislativas e não se elegeu.
4. Arnthor Helgasson, o maoísta cego, dirige uma entidade voltada para deficientes físicos. Manifesta irritação explícita ao ser indagado sobre o desfecho do testamento, e se recusa a ser citado ou fotografado. Detestou o artigo da Actuel.
5. Ingibjörg Haraldsdóttir, contatada por telefone, inicialmente negou ser a fogosa personagem cuja fotografia aparece na reportagem original. Um dia depois, enviou o seguinte esclarecimento: “Peço desculpas por levar algum tempo para me lembrar da visita dos dois jornalistas franceses, ocorrida 25 anos atrás. Quase não me reconheci na fotografia, mas imagino que seja eu mesma. Quanto ao que está escrito sobre mim, é pura ficção. Jornalismo da pior qualidade.”
6. O imóvel da rua Bollagata, número 12, foi adquirido pelo engenheiro Thorgeir Pálsson, que não é marxista, muito menos leninista ou comunista. Comprou a propriedade das filhas do tio de Sólveig, a viúva de Sigurjón.
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[1] O “Relatório Secreto” de Nikita Kruchev ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), realizado em fevereiro de 1956, condenou o culto à personalidade e denunciou os crimes de Stálin.