ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Mas nem na China
Síndrome do velho sábio chinês ignora fronteiras
Adam Sun | Edição 6, Março 2007
No início do ano, a secretária de Estado americana Condoleezza Rice foi ao Oriente Médio na sua zilionésima missão de paz. Segundo o Washington Post, ela disse em Riad, capital da Arábia Saudita, que “as circunstâncias no Oriente Médio podiam representar uma oportunidade. ‘Eu não leio chinês, mas me contaram que o caractere chinês para crise é weiji, que significa tanto perigo como oportunidade. Acho que faz muito sentido. Tentaremos maximizar a oportunidade'”. Embora o verbo maximizar consiga soar tão feio em inglês quanto em português, o que de fato chama atenção na frase é que ela encerra uma imensa bobagem. Pior: uma bobagem repetida ad nauseam, sem dó nem piedade, em manuais de auto-ajuda, livros para executivos, declarações exaltadas de financistas, falas solenes de políticos e recintos onde se cura de tudo.
Trata-se de ignorância, ou, na pior hipótese, de oportunismo, relacionar o termo weiji – crise, em chinês – ao binômio perigo/oportunidade. O dicionário Xinhua Cidian traz a seguinte definição da palavra, que é composta pela justaposição dos caracteres wei e ji: “período crucial em que um grave perigo ameaça a própria existência”. Segundo o New Practical Chinese-English Dictionary, weiji significa “crise; situação de perigo; momento precário”.
A escrita chinesa é formada de caracteres, unidades dotadas de som e sentido denominadas morfemas. Dependendo de como eles são enunciados, podem significar várias coisas. O caractere wei da palavra weiji significa, segundo o dicionário enciclopédico chinês Ci Hai: 1) perigo, risco emergente; 2) apreensão; 3) prejudicial; 4) lugar alto; 5) viga do telhado; 6) nome de uma estrela. O caractere ji tem as seguintes acepções: 1) gatilho dos antigos arcos; 2) tear; 3) antiga padiola para carregar cadáveres; 4) ponto crucial dos eventos; 5) inteligente; 6) o mesmo que “diminuto”; 7) ocasião; situação. Nessa última acepção, weiji é dado como exemplo. Em sentido literal, weiji se aplica a uma situação de perigo – definição 1 do caractere wei (perigo, risco emergente) e definição 7 de ji (ocasião; situação). Em nenhum caso aparece a palavra oportunidade. Como, então, surgiu a fórmula weiji = perigo e oportunidade?
É a segunda hipótese: oportunismo. Em alguns dicionários sino-ingleses, como o New Practical, o caractere ji, entre vários sentidos, ganha o de chance, ocasião, oportunidade. Quando esse mesmo caractere ji se justapõe a hui, o resultado é jihui – e jihui é oportunidade. Como dois e dois são cinco, graças a essas casualidades semânticas de um idioma peculiar, weiji foi batizado de perigo e oportunidade.
Se o português carregasse a fama de ser um idioma impenetrável, falado por velhos sábios desde tempos imemoriais, Condoleezza Rice poderia nos citar para dizer a mesma coisa. O artifício lingüístico também funciona aqui. Pela definição do Aurélio, crise significa “momento perigoso ou decisivo”. E momento é definido pelo mesmo Aurélio como “ocasião azada, oportunidade”. Voilà: crise, em português, significa “oportunidade perigosa”.
Um dos responsáveis pela disseminação do elo entre a crise e os caracteres perigo e oportunidade foi o então senador John F. Kennedy, num discurso, feito em 1959, a estudantes do United Negro College Fund, no estado de Indiana. Na ocasião, ele declarou: “A palavra crise, em chinês, é composta de dois caracteres – um representa perigo e outro representa oportunidade. Os sinais de perigo estão a nossa volta. Com menos da metade da nossa capacidade produtiva, a União Soviética tem conseguido pelo menos nos igualar em diversas áreas das ciências e da tecnologia militar”. Daí em diante, a mania nunca mais saiu de moda.
Como no mercado livre dos clichês uma imagem distorcida também vale mais do que mil palavras, o casamento capenga de perigo e oportunidade tem sido exaustivamente usado como expediente retórico para elevar o moral em tempos de crise. Visto que Condoleezza Rice não lê chinês, o Washington Post foi prudente: consultou um sinólogo para confirmar o mito. Dito e feito. Victor A. Mair, professor de chinês da Universidade da Pensilvânia, observou que “toda uma indústria de sábios e terapeutas desenvolveu-se em torno dessa formulação grosseiramente incorreta”. Ou seja, entre o fato e a lenda, adota-se a lenda. Weiji sucumbiu a si próprio. Como lembrou Mair, a palavra significa, na realidade, “uma crise genuína, um momento perigoso, uma fase em que as coisas desandam”. E desandou.
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