ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
Memórias duras e carinhosas
Gambás, política, promotores e o desejo de saber a verdade
Luiz Maklouf Carvalho | Edição 18, Março 2008
Cansada dos gambás e morcegos que volta e meia apareciam no belo casarão oitocentista do centro histórico de Campinas – e, principalmente, da absoluta tolerância do marido, que achava os invasores uma graça – , Roseana Garcia fez as malas, pegou a filha de 14 anos e, do dia para a noite, mudou-se para um apartamento mais confortável. Imaginou, em santa credulidade, que diante do fato consumado – uma separação de corpos, afinal – o marido abriria mão de morar no casarão e logo se juntaria à família. Nada: “Ele achou aquilo lindo, tipo Sartre e Simone de Beauvoir, e ficou uns meses curtindo a situação. Só foi para o apartamento quando eu disse que não dava mais”, conta Roseana, ainda com esgares ao lembrar, entre os sustos, a cena de um gambá na banheira Jacuzzi da suíte.
Pode-se imaginar, pelo jeito despachado de Roseana, psicanalista, mestra em matemática, 51 anos bem conservados, que seu marido tenha passado por poucas e boas. A brigona era ela, muito mais do que ele, Antônio da Costa Santos, o Toninho do PT, prefeito de Campinas assassinado com um tiro no coração em 10 de setembro de 2001, véspera do atentado às torres gêmeas, em circunstâncias até agora não esclarecidas. Viúva de olhos que ainda marejam, isso de gambás e outras puerilidades são histórias do carinho que ficou.
Vai para mais de quatro anos que Roseana deixou Campinas, onde se sentia ameaçada. Mora com a filha, hoje com 21 anos, em São Paulo. Ela abre a porta do apartamento de três quartos, no 23º andar, com simpatia e informalidade. Em janeiro, conseguiu o que vinha pedindo desde os meses imediatamente posteriores ao assassinato: a entrada da Polícia Federal na investigação do crime, determinada pelo ministro da Justiça, Tarso Genro. Espera, agora, ser chamada para depor. Dirá, como sempre, que não acredita na versão de crime acidental apresentada pela polícia e pelo Ministério Público – hipótese que a Justiça de primeira instância também rejeitou. Dirá também que o crime pode ter sido motivado por interesses econômicos contrariados pelo prefeito, possibilidade que, segundo pensa, não foi investigada, “nem de longe”.
Apesar da leniência com gambás e morcegos, o arquiteto e urbanista Toninho também era de briga: denunciou empresários e políticos campineiros na CPI do narcotráfico e processou empreiteiras. Quando era vice-prefeito de Campinas, no começo da década de 90, processou por corrupção o prefeito Jacó Bittar, na época do PT. O gesto o afastou do grupo lulista do partido, no qual o ex-sindicalista Bittar era (e de certa forma continua a ser) figura de apreço. Nas contas da viúva, Antônio (é como Roseana o chama) contrariou onze grupos de interesses em seus oito meses de mandato – entre eles, tráfico, bingos, expansão imobiliária e fornecedores da prefeitura. Mais lenha na fogueira apareceria em 2005, quando o sushiman Anderson Ângelo Gonçalves, de codinome Jack, afirmou, em vários depoimentos, que dias antes do assassinato presenciara de madrugada, num bingo de Campinas, reuniões em que o assassinato teria sido tramado. “Isso também ficou no ar e precisa ser investigado com seriedade”, diz Roseana.
Ela mantém consultório em São Paulo e em Campinas, onde continua a cuidar do casarão que era a menina-dos-olhos do marido. Filho de portugueses bem-sucedidos, o arquiteto tinha uma situação financeira confortável, assim como Roseana. Comprou o imóvel antigo e se dedicou a restaurá-lo (mantendo a bicharada, evidentemente). No começo, Roseana gostava. Recebiam para jantares e audições de ópera, uma de suas paixões: ela é mezzosoprano amadora. “A casa vivia cheia, era animado”, conta. Hoje, seus dias são dedicados à filha, ao trabalho, à tese de doutorado sobre o psicanalista inglês Donald Winnicott e, porque a vida continua, ao namorado.
Marina, a filha, faz um curso de humanas numa universidade pública. É politizada e de esquerda, mas não filiada ao PT, coisa que a mãe ainda é. Acabou de voltar de umas férias em Cuba, onde participou de uma brigada voluntária para colheita de laranja. “Marina achou que as condições são difíceis, mas que o pessoal lá vive melhor do que o brasileiro pobre de periferia.” Faz uma pausa. “A impunidade do assassinato fez com que nós duas perdêssemos um pouco a fé num futuro melhor”, diz a psicanalista, num raro momento de frase feita.
À medida que a noite avança, Antônio reaparece em lembranças cada vez mais afetuosas. “Eu sou o verdadeiro terceiro segredo de Fátima”, ele brincava com a mãe, orgulhoso de ter sido eleito prefeito de Campinas em 2000, ano em que o Vaticano revelou o suposto mistério. Toninho do PT nunca deixou de se encantar com o cargo. Nas eleições, venceu com quase 60% dos votos o hoje deputado federal tucano Carlos Sampaio, promotor público de carreira. Mesmo já tendo passado oito meses no cargo, ainda tinha o hábito de acordar a mulher e perguntar, com bom humor, se ela acreditava que ele era mesmo o manda-chuva local. Conheceram-se em 1982, ele com 30 anos, ela com 26. “Apaixonaram-se perdidamente”, segundo a expressão que ela usa, com lágrimas discretas. Somando namoro e casamento, foram dezenove anos.
O que mais a intriga é a postura dos promotores públicos que fizeram a denúncia de crime acidental. Já foram às turras, eles e ela, com acusações e cara feia de parte a parte. Roseana já ouviu, por exemplo, que seu interesse é se candidatar à prefeitura de Campinas. Ela nega. Já se disse espantada com o “desinteresse” dos promotores em investigar as motivações políticas. Depois da decisão de primeira instância – uma dura sentença contra a denúncia de crime acidental – , foi ao procurador-geral do MP paulista pedir que os promotores não recorressem. Em vão. Os dois lados aguardam a decisão da segunda instância – e, é claro, o andamento do inquérito da Polícia Federal. Se briga fosse uma modalidade de corrida, Roseana Garcia seria fundista. Correrá a maratona judicial até o fim, sem descanso.