ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
Meu nome não é Fernééénda
De como a baiana virou repórter do New York Times
Tania Menai | Edição 21, Junho 2008
“Não tenho mais dúvida: vou para o céu. Só hoje já conversei com um rabino e um monsenhor!”, brinca a repórter Fernanda Santos, de 34 anos. Se fosse mesmo religiosa, essa baiana de Salvador poderia creditar o emprego no jornal mais prestigioso do mundo, The New York Times, na conta de Oxalá, Iansã ou Obaluaiê. Quem sabe, até na conta dos três: para uma graça tão grande, talvez só trabalho em conluio. Mas ela ocupou o cobiçadíssimo posto, em setembro de 2005, sem precisar de orixás.
Fernanda escreve para o caderno metropolitano do jornal. Foi ali que saíram as duas entrevistas. O rabino se tornou personagem de uma reportagem sobre a cidadezinha de Monsey, no estado de Nova York, onde uma comunidade judaica ortodoxa conseguiu sustar a abertura de uma Wal-Mart, a maior loja de departamentos do mundo. O monsenhor, personagem da outra matéria, comentou a expansão de sua igreja na cidade de LaGrangeville, também em Nova York, ao revés da vazante do rebanho católico nos Estados Unidos.
De vestido azul-marinho estampado sobre um corpo esguio, óculos de aro rosado e uma presilha lateral nos cabelos longos e ondulados, Fernanda é brasileira full-time. Com um sorriso larguíssimo e espontâneo, cumprimenta todo mundo no trajeto que a leva à cafeteria da nova sede do NYT (e parece íntima de todos). Atravessa o lobby, toma o elevador e senta-se a uma mesinha. Está quatorze andares acima da Oitava Avenida, entre as ruas 40 e 41, na recém-inaugurada torre de aço e vidro do arquiteto italiano Renzo Piano.
Não há jornalistas brasileiros no NYT. Fernanda Santos é a exceção entre os cerca de mil profissionais da empresa: jornalistas, fotógrafos, secretárias e técnicos de internet. Há outros repórteres estrangeiros, mas a maioria cresceu nos Estados Unidos. Os sobrenomes alemães, latinos, indianos ou chineses que assinam textos no jornal pertencem quase todos a filhos de imigrantes. Fernanda é a única que veio com mais de trinta anos, oriunda de um país cujo idioma não é o inglês. A faina diária a deixa a léguas do conforto da gigantesca redação do jornal, que ocupa o terceiro e o quarto andar do edifício. Ao volante do carro do jornal, ela roda o estado à procura de fatos que dêem notícia. Sua especialidade são as extravagâncias e desatinos do cotidiano, em comunidades fora do radar dos outros órgãos da grande imprensa.
Volta e meia, suas reportagens despertam a consciência samaritana dos leitores, que de bom grado enfiam a mão no bolso. Uma delas, sobre gêmeos siameses unidos pela cabeça, chegou a levantar 30 mil dólares para que a família pudesse pagar a cirurgia de separação. Outra, mais recente e de apelo mais duvidoso, contou a história de uma cabra que vagava ao deus-dará em plena Nova York. Com uma das patas parcialmente amputada, a criatura precisava de uma prótese. Não se sabe até que ponto a matéria teve culpa no cartório, mas o fato é que encaminharam a cabra a um hospital veterinário em Michigan. Ali, foi submetida a uma operação de 5 mil dólares e em breve receberá uma prótese high tech de 20 mil. Fernanda também é boa de obituários. Através dela, Nova York ficou sabendo sobre a senhora que caiu nos trilhos do trem e da família que morreu num incêndio doméstico.
Fernanda chegou aos Estados Unidos em 1998, para cursar mestrado em jornalismo na Universidade de Boston, e não voltou a morar em terras brasileiras. É com orgulho que corre os olhos até o topo da página em que assina uma reportagem e dá com a chancela das quatro palavrinhas mais respeitadas do jornalismo mundial. “Uma vez, participei de um programa do jornal, Ask a Reporter [Pergunte a um Repórter], no qual respondemos perguntas online a estudantes secundaristas”, conta ela. “Uma professora de inglês de Mogi das Cruzes me achou e pediu que eu escrevesse uma mensagem especial para os alunos dela, sobre a importância de estudar inglês.” Fernanda recebeu 50 e-mails dos estudantes. Muitos achavam que ela não existia, outros manifestavam surpresa e admiração pela conquista.
Em sua primeira experiência jornalística, numa revista da empreiteira baiana Odebrecht, ela se encantou com a profissão ao cobrir cantos remotos do Brasil, como Bom Jesus da Lapa, no interior da Bahia, a quase 800 quilômetros de Salvador. A carreira americana teve início logo depois do mestrado, em dois jornais do estado de Massachusetts. No segundo deles, Fernanda recebeu a bênção de um editor atento, que lhe deu uma mãozinha para superar os inevitáveis tropeços gramaticais de falante não-nativa. “Há que ter muita humildade. Eu concorro com gente que nasceu falando inglês.” Confessa que faz uma confusão danada com as preposições in e on. “Meu medo era que alguém dissesse: ‘Não dá, você não consegue saber o que é on e o que é in.’ Mas aí descobri que os americanos também se atrapalham.”
Ela chegou a Nova York a bordo de um drama. Sob os olhos rigorosos de seu mentor, escreveu o obituário de Susie Forrest, jornalista norte-americana premiada com um Pulitzer. Desempregada havia cinco meses, Forrest ofereceu-se como voluntária no auxílio às vítimas do 11 de Setembro – e então cometeu suicídio. Essa história foi o bilhete premiado de Fernanda. Graças ao texto, ofereceram-lhe emprego no Daily News, um tablóide da cidade. O New York Times estava agora um pouquinho mais perto.
Fernanda não se sentia inteiramente à vontade com o jornalismo telegráfico e o sensacionalismo rampante do Daily News. Ainda assim, acumulou ali um portfólio de boas reportagens. Selecionou as menos bombásticas, cruzou os dedos e mandou para o NYT. Insistiu. Batalhou. Meses depois, finalmente obteve o emprego. Sua vida não é fácil: “Várias vezes já cheguei em casa chorando, mas fui eu que escolhi esse caminho. Agora é agüentar o tranco e provar que quem ignorou o meu currículo estava errado”, diz Fernanda, com uma pitadinha de rancor.
No Brasil, ela tem três sobrenomes: Lacerda Saraiva Santos. A família sempre usou o do meio. Os americanos não compreendem essa abundância e adotam apenas o último. “Ressuscitei a dinastia Santos, do meu avô paterno”, conta ela, que ainda agregou um Saucier à fila depois de se casar, há oito anos, com um jornalista americano. “Quando me chamam de Ms. Santos, peço para chamarem de Fernanda, mas eles dizem: Fernééénda. Eu corrijo: Fernãããnda!” Quando fala na língua materna, ela volta e meia deixa escapar um oxe! A interjeição é infecciosa, e o marido, que está aprendendo português, já a adotou. Relações-públicas da prefeitura de Nova York, ele avisou a Fernanda que não se incomodaria em fazer as malas e, feliz da vida, vir soltar os seus oxes! na Salvador da amada.