Uma longa sucessão de surpresas: “Eles tinham costas quentes porque, a essa altura, já estava evidente que Marcos Tolentino possuía conexões com os poderosos de Brasília, incluindo o próprio presidente Bolsonaro” CRÉDITO: KLEBER SALES_2022
Meu pai era um testa de ferro
A história do filho que descobriu ter uma herança de fachada em meio ao pior escândalo de corrupção do governo Bolsonaro
Fernando Boletti de Lima | Edição 185, Fevereiro 2022
Em depoimento a Ana Clara Costa
Meu pai se chamava Francisco Valderi Fernandes de Lima. Morávamos em Itapevi, no interior de São Paulo, com meus dois irmãos e minha mãe. Meu pai sempre esteve envolvido em política, sobretudo a local. Foi vereador pelo MDB, atuava em eleições e tinha muitos adversários na vida pública. Antes de entrar para a política, ele teve uma trajetória vitoriosa. Foi pedreiro, mestre de obras, até criar a própria construtora, que prestava serviço para o setor privado e para a prefeitura. Tínhamos um padrão de vida razoável. Chegamos a ter bons carros, cerca de vinte casas e um posto de gasolina, que ganhamos depois que meu pai fez algumas obras para a Shell. Quando ele decidiu entrar para a política, tudo isso se perdeu. Durante anos, vivemos numa gangorra. De repente, da noite para o dia, tínhamos que vender tudo para pagar dívidas contraídas em campanhas. A construtora fechou e ele passou a trabalhar facilitando o caminho de outras empreiteiras que queriam participar de licitações, o que lhe rendia boas comissões.
Nesse período difícil, meu pai começou a enfrentar também as campanhas de difamação, que acabavam afetando a nossa família. Ele foi alvo de processos de improbidade administrativa por razões políticas, e nós sofríamos as consequências públicas dessas acusações. Minha mãe, com quem ele se casou muito antes de ter qualquer bem, pedia que ele deixasse a política. Ele sempre resistiu. A certa altura, ela decidiu que não queria mais viver daquela forma e pediu a separação. No início da década de 2000, ela se mudou para Londrina com os meus irmãos mais novos. Eu cheguei a ficar um tempo com eles, mas, em 2005, aos 26 anos, voltei para o estado de São Paulo. Em Itapevi, o grupo político do meu pai havia vencido a eleição municipal e fui contratado como funcionário da prefeitura. Cheguei a me candidatar a vereador, mas não fui eleito. Trabalhei na prefeitura até 2009, quando a aliança política foi rompida e meu pai pediu que a prefeitura terminasse meu contrato.
Até que, em 2012, paramos de nos falar. A nossa relação já era complicada, mas chegou a um ponto crítico quando ele começou a se juntar aos inimigos políticos que ajudaram a destruir a nossa família. Não suportei. Eles haviam processado meu pai catorze vezes e transformado a nossa vida num inferno. Meu pai dizia que estava tudo bem, que na política as coisas funcionavam assim mesmo, uma hora se rompia e na outra se reatava. Mas eu não aceitava. Dois anos depois, em 2014, nos falamos brevemente por telefone e ele me pareceu animadíssimo. Dizia que estava viajando o Brasil e fazendo grandes negócios. Achei que fosse exagero dele, mas não falei nada. Em 2019, ele me procurou. Disse que não estava bem de saúde, que havia passado muito mal no escritório e que quase morrera. Tinha diabetes, era cardíaco e não se cuidava. Foi quando nos reaproximamos.
Passei a levá-lo a consultas médicas e exames. Durante a pandemia, ele ficava isolado em casa e eu levava os mantimentos de que ele precisava. Nesses contatos, ele começou a me contar um pouco mais sobre o trabalho que fazia. Eu seguia sem dar muito crédito porque eram coisas fora da realidade, como compra e venda de empresas de capital milionário. Eu achava que ele estava exagerando. Afinal de contas, a vida dele não era luxuosa nem abastada, como poderia ser a vida de um empresário de grande porte. Ele levava uma vida normal e morava de aluguel.
Em 2020, mesmo tendo que se resguardar por causa da pandemia, meu pai resolveu se candidatar a vereador em Itapevi. Na época, fiquei intrigado – como sobraria tempo para a política se ele estava tão ocupado com tantos negócios? –, mas guardei as dúvidas para mim. Ele andava bastante envolvido na campanha quando, no dia 9 de setembro, sentiu-se mal. Me ligou às nove da manhã. Levei-o ao hospital. O médico disse que meu pai havia infartado. Foi internado às pressas para colocar um marca-passo e ficou na UTI inalando oxigênio enquanto o hospital pedia aprovação do plano de saúde para a cirurgia. Fiquei ao lado dele. Nessa noite na UTI, do dia 9 para o dia 10 de setembro, ele enfim me contou toda a história. Não sei bem qual era a sua intenção: me alertar que eu tinha direitos? Hoje, penso que sim.
No leito hospitalar, meu pai me disse que fazia parte de um grupo cujo cabeça era Marcos Tolentino, o senhor que o país conheceu durante a CPI da Pandemia como um dos suspeitos na operação bilionária que pretendia comprar a vacina indiana Covaxin. A secretária de Tolentino, de fato, nos ligava a cada dez minutos para saber como meu pai estava. Ele falou das viagens que fazia para assinar documentos em nome do grupo de Tolentino, das contas bancárias de que era titular, das licitações das quais as empresas do grupo participavam para fornecer equipamentos e serviços ao setor público. Falou do FIB Bank, empresa da qual ele era sócio e que fornecia garantias para diversas operações no setor público. Falou que o capital do FIB Bank era lastreado em precatórios e terrenos. E que ele viajava por todo o Brasil para assinar as garantias emitidas pelo banco. Disse que semanalmente ia a São Caetano do Sul despachar documentos em nome da Chocolate Pan, empresa da qual ele também era sócio.
Fiquei impactado por essa conversa, não entendia de onde saíra o dinheiro para tantos negócios, mas não tive muito tempo para reagir. Na manhã do dia 10, meu pai foi levado para a sala de cirurgia. Ao colocar o marca-passo, sofreu três paradas cardíacas e não resistiu.
Fui enterrar meu pai em Londrina, no Paraná, no jazigo da família, conforme ele havia pedido. Quem pagou as custas funerárias foi a empresa de Tolentino, que se mostrou solícito naquele momento de dor. Ao voltar a Itapevi, fui até a casa do meu pai para começar a esvaziar o imóvel. Foi quando me deparei com contratos sociais de empresas, pró-labores, uma infinidade de documentos que comprovavam tudo o que ele havia me falado no hospital. Fiquei assustado porque, até aquele momento, eu ainda desconfiava de que ele tivesse fabricado algumas histórias. Diante daquela papelada toda, percebi que ele não estava mentindo nem exagerando. Havia falado a verdade. Os documentos de pró-labore mostravam pagamentos de 4 mil, 5 mil reais por empresa da qual ele era sócio. (Nunca consegui ter certeza de quantas empresas meu pai fora sócio, mas cheguei a identificar cinco.)
Com esses documentos em mãos, procurei o escritório de Marcos Tolentino, que comandava o grupo de empresas. Fui recebido pela advogada Cristiany Rocha de Freitas. Ela me disse que, a despeito de todos aqueles contratos sociais, as empresas estavam inativas e meu pai não tinha nada no nome dele. Para comprovar o que dizia, ela me deu uma declaração de renda mostrando que meu pai ganhava 18 mil reais por ano – o que dava 1,5 mil reais por mês.
Nos papéis, meu pai era sócio da MB Guassu, que oficialmente atuava como administradora de bens e cujo capital social era de 2 milhões de reais. Descobri que a MB Guassu era a principal acionista do FIB Bank, que, no papel, tinha um capital social de 7,5 bilhões de reais, uma cifra que me causou enorme espanto. Resolvi consultar a Junta Comercial e descobri que, ao contrário do que haviam me dito, nenhuma das empresas estava inativa. Voltei a procurar o escritório de Tolentino em busca de esclarecimentos. Até aquele momento, eu pensava que estava tratando com pessoas idôneas, de um grupo de empresas correto, com atividades legítimas.
Na minha segunda visita ao escritório, fui recebido por Wagner Potenza, um dos braços direitos de Tolentino. Comecei a conversa já num tom alterado. Disse a ele: “Vamos parar de mentira? Como vocês me dizem que as empresas do meu pai estavam inativas, que meu pai ganhava 18 mil por ano e que isso era tudo que vocês sabiam, e eu descubro que há um banco muito ativo no nome dele?” (O FIB Bank, apesar do nome, não é uma instituição financeira, segundo o Banco Central. Trata-se de uma empresa que fornece garantias fidejussórias, que são como cartas de fiança.) Potenza tentou me acalmar. Pediu para que eu não fizesse nada com aquilo, prometeu que falaria com Tolentino e me daria um retorno.
Nesse meio-tempo, para piorar a situação, fui procurado por promotores do Ministério Público que queriam saber se meu pai deixara bens. Na década de 1990, meu pai foi alvo de catorze processos de improbidade, num valor que hoje alcança 600 mil reais. Por isso, eu fui citado pelo Ministério Público depois de sua morte. Pela lei, nem eu nem meus irmãos herdaremos a dívida do nosso pai, mas o patrimônio dele precisa ser informado à Justiça para ressarcir o erário em caso de condenação. Diante da enorme confusão burocrática, eu não tinha condições de fazer o inventário para apresentar ao MP, e muito menos de custeá-lo. Como pagaria o imposto de transmissão de bens previsto no inventário sobre um patrimônio gigantesco, e que eu desconhecia? Eu não tinha esse dinheiro, nem meus irmãos.
Passaram-se os meses de outubro e novembro de 2020. Como nada se resolvia, procurei Marcos Tolentino diretamente. No dia 20 de dezembro, fui ao seu escritório. Ele passou quatro horas falando coisas bonitas sobre o meu pai. Sempre muito cordial, gentil. Disse que meu pai era seu amigo, que era seu “linha de frente” nos negócios, o primeiro a chegar ao escritório todas as manhãs, em São Paulo. E fez uma promessa: “Não se preocupe, vou pagar todos os custos do inventário.” Disse que passaria as festas de fim de ano na Bahia e, assim que voltasse a São Paulo, por volta do dia 3 de janeiro, me procuraria. Era um sujeito que sabia levar as pessoas na conversa, sempre educado. Confiei.
Tolentino não me procurou. No dia 25 de janeiro, fiz contato com ele pelo WhatsApp. “Fernando, me desculpe, correria total!”, ele escreveu, enviando sua localização do momento. Mostrava que ainda estava na Bahia, em Arraial d’Ajuda. Reafirmou que, ao voltar para São Paulo, me procuraria. Enquanto isso não acontecia, ele pediu que um de seus funcionários, Renato Nunes, me desse a assistência necessária. Nesse período, Nunes, de fato, começou a me assessorar. Mas tudo era muito lento. Eles sempre pediam que eu não fizesse nada, que deixasse tudo na mão deles e me orientavam, acima de tudo, a não procurar o Ministério Público novamente, algo que eu cogitava fazer. Queria apenas apresentar ao MP os documentos comprovando o patrimônio do meu pai e reforçar que não tinha condições de pagar o inventário. Eu acreditava que os promotores pudessem até mesmo me ajudar a resolver o imbróglio.
Ocorre que, em abril de 2021, a CPI da Pandemia iniciou seus trabalhos no Senado. Daí em diante, tudo mudou.
As investigações da CPI sobre a atuação do governo durante a pandemia não demoraram a chegar ao FIB Bank. A empresa tinha oferecido a garantia para a compra da vacina indiana Covaxin, pelo governo de Jair Bolsonaro – um negócio bilionário que, uma vez reveladas as irregularidades, acabou cancelado. Eu não sabia de nada. Até então, achava que o FIB Bank tivesse uma atividade honesta e regular, mas, a cada passo que a CPI avançava, a confusão ficava maior – e o nome do meu pai começou a aparecer na imprensa. Diante dessa avalanche de informação, percebi, por exemplo, que sua morte jamais fora informada nos documentos oficiais das empresas das quais ele era dono. O FIB Bank continuava atuando normalmente, sem que a Junta Comercial tivesse sido avisada sobre qualquer mudança societária. O mesmo ocorria com a MB Guassu, firma na qual meu pai tinha um sócio, um senhor chamado Sebastião Lima, também falecido. As omissões, operadas por Tolentino e seus empregados, configuram crime de falsidade ideológica.
Não cheguei a conhecer Sebastião Lima. Soube que era um homem simples que morava na periferia de São Paulo. Quando morreu, em 2017, seus filhos não herdaram nada da MB Guassu, ainda que Lima detivesse 99% do capital social da empresa. Meu pai era o dono do 1% restante. Como nenhum herdeiro de Lima colocou a MB Guassu no inventário, meu pai tornou-se então o único dono vivo da empresa. Ele assinava por ela e fazia todas as movimentações. Quando meu pai morreu, o grupo do Tolentino continuou movimentando a MB Guassu, mesmo com ambos os sócios falecidos. (Em outubro de 2021, depois das investigações da CPI, uma empresa que foi lesada pela turma de Tolentino protocolou um documento na Junta informando sobre a morte dos dois acionistas. A empresa lesada está em busca de indenização.)
A CPI colocou em evidência que muitos daqueles negócios dos quais meu pai participava pareciam ser formas de arrancar dinheiro do poder público. Eram empresas que existiam, mas não produziam nada de fato. Tratava-se apenas de um amontoado de CNPJs sendo movimentados por indivíduos sem que houvesse uma atividade empresarial nítida por trás – a exceção era o FIB Bank, que, de fato, operava. Havia clientes reais em busca de suas garantias, embora a CPI tenha mostrado que nem todos eles puderam acionar a fiança oferecida, quando isso se fez necessário.
Todos os envolvidos na compra da vacina Covaxin eram ligados, de alguma forma, a Marcos Tolentino. Os documentos revelados pelos senadores durante as oitivas mostravam que meu pai já havia morrido quando o negócio começou a ser discutido com a Índia. Mas toda a operação de garantia da compra daquela vacina foi feita pelo FIB Bank. Naquele momento, tudo começou a fazer sentido para mim: entendi por que eles não queriam resolver o inventário do meu pai. Mexer naquelas empresas significaria alterar toda uma estrutura societária e revelar o que até então estava escondido: Tolentino, apesar de ser o dono do grupo de empresas, não tinha seu nome oficialmente vinculado a nenhuma delas. Esse era o papel do meu pai. Tolentino não tinha a menor intenção de aparecer como dono dessas firmas. Por isso, solucionar o meu problema seria, automaticamente, criar um problema para ele.
Em meados de julho de 2021, conforme as coisas iam ficando mais claras para mim, eu procurava Renato Nunes, o auxiliar que fora designado para cuidar do meu caso. Passou semanas me dizendo que não podia ajudar naquele momento porque Tolentino estava muito debilitado recuperando-se das sequelas da Covid. Ele, de fato, tivera um quadro grave da doença, mas sua recuperação não foi tão longa quanto diziam. Numa das vezes em que ouvi que ele estava em fase de reabilitação, fui surpreendido naquela mesma tarde com o noticiário mostrando Tolentino ao lado do presidente Jair Bolsonaro num evento no Palácio do Planalto. Eu sabia das conexões políticas entre eles. Mas fiquei indignado com a mentira.
No dia 24 de julho, a piauí me procurou quando estava fazendo uma reportagem sobre o FIB Bank. Relatei isso ao Renato Nunes. Ele me orientou a não falar com a revista e disse que, se eu me expusesse, seria chamado a depor na CPI, algo que eu absolutamente não desejava. Questionei por que eu estava sendo procurado por jornalistas e ele me escreveu a seguinte mensagem: “Foi emitida uma carta em um negócio que não se concretizou, num período que o Marcos estava em coma. Mas como ele tem relacionamento com o presidente e o líder do governo, está gerando esse tipo de matéria. Estamos todos muito tranquilos.” Na época, era uma explicação nebulosa, mas hoje se sabe que ele se referia à carta de fiança emitida pelo FIB Bank para a compra da Covaxin e que o relacionamento de Tolentino era com Jair Bolsonaro e o deputado Ricardo Barros (PP-PR). Já então era evidente que eles queriam me calar. Num determinado momento, para se livrarem de mim, me ofereceram um carro zero-quilômetro. Disseram que eu poderia escolher o modelo, de qualquer valor. Eu disse que não aceitaria. Tenho dois irmãos e não poderia sozinho receber nada que se referisse ao meu pai. Eu também sabia que esse carro seria uma forma de ganhar tempo, na expectativa de que eu parasse de importuná-los com a questão do inventário. Não aceitei.
Em outro argumento para me enrolar, diziam que, tão logo terminasse a CPI, Tolentino compraria a participação do meu pai nas empresas – um valor que nunca foi estimado – e eu poderia fazer o inventário normalmente. Tolentino explicava que, naquele momento, entre julho e agosto, centraria esforços em sua defesa e, depois de concluído o relatório final da CPI, poderia se dedicar ao meu caso. Disse que, com seus contatos no Ministério Público, na Procuradoria-Geral da República e na Polícia Federal, ele resolveria seus eventuais problemas rapidamente e logo estaria livre para tratar do meu assunto. Nunca mencionou, no entanto, ter qualquer intenção de aparecer como acionista. Ele era o sócio oculto. Meu pai era o testa de ferro.
Eu não estava nada tranquilo com aquelas promessas. Minha vida estava sendo consumida por aquela burocracia e eu não conseguia resolvê-la. Da parte deles, só enrolação. Para piorar, eles tinham costas quentes porque, a essa altura, já estava evidente que Tolentino possuía conexões com os poderosos de Brasília, incluindo o próprio presidente Bolsonaro. O que eu mais desejava, na verdade, era simplesmente que eles resolvessem as demandas do MP no processo de improbidade e fizessem o inventário. Tolentino havia prometido cuidar das duas coisas, mas nada acontecia.
Em setembro de 2021, quando completou um ano da morte do meu pai, fui ao escritório de Tolentino para conversarmos. Fiquei horas por lá. Ele me apresentou a um advogado que, segundo ele, estava trabalhando diretamente no caso do meu pai. Chamava-se Ricardo Uchôa. O advogado me disse que atuava para extinguir as ações de improbidade em Itapevi, o que me deu alguma esperança de que as coisas entrariam nos eixos e a situação se regularizaria. Mas os sinais que eu recebia, na verdade, não eram otimistas. Dias antes, Tolentino fora depor na CPI. Curiosamente, tentou parecer que estava doente diante dos senadores, em razão de supostas sequelas da Covid. Só que, no escritório, ele agia de forma normal, sem demonstrar qualquer sinal de que estivesse debilitado. Pior que isso. Ali, diante dos parlamentares, ele disse que não tinha nada a ver com meu pai ou com as empresas das quais meu pai era sócio, como a MB Guassu e o FIB Bank. De testa de ferro, meu pai passava agora, diante do país inteiro, a ser o único responsável por aquilo tudo.
Era uma insanidade. Eu não apenas sabia que meu pai trabalhava para Tolentino. Em meio à papelada que encontrei em sua casa, havia um registro, em documento público, comprovando o vínculo. Num termo de declarações assinado por meu pai em 9 de janeiro de 2018, prestado numa delegacia de São Paulo por razões que eu desconheço, ele reconheceu o falecimento do sócio Sebastião Lima, disse não estar a par da data precisa da morte, alegou que não sabia quem era o verdadeiro dono da MB Guassu (empresa da qual ele mesmo era sócio) e afirmou que trabalhava para o grupo de Tolentino. Disse que sua função era de “assessoria na área de política empresarial”. Eu guardo esse termo de declaração comigo, já que ele demonstra a relação que meu pai tinha com o Tolentino – sobretudo porque, desde a CPI, Tolentino tem negado publicamente ter qualquer coisa a ver com essas empresas das quais meu pai era sócio.
O relatório final da CPI ficou pronto no dia 26 de outubro. Em suas mais de mil páginas, os senadores recomendaram o indiciamento de 78 pessoas, incluindo o presidente da República, por crimes cometidos durante a pandemia. Tolentino está entre os citados: é acusado de fraude em contrato, formação de organização criminosa e improbidade administrativa. Os senadores classificaram Tolentino como “sócio oculto do FIB Bank”. Ou seja, o relatório detalhava aquilo que, naquela altura, eu já sabia: embora meu pai assinasse toda a papelada, quem era o responsável pela operação era Tolentino. O governo, que poderia ajudar a esclarecer tudo, colaborando para desvendar como e por que procuraram uma empresa tão enrolada como o FIB Bank para garantir a compra da Covaxin, parece não ter interesse algum em fazê-lo, a julgar pela reação das autoridades governamentais ao relatório final da CPI.
Minha mãe e meus irmãos já não tinham muito contato com meu pai quando tudo aconteceu. Depois do divórcio, ele os ajudou financeiramente até a maioridade de cada um, mas depois se afastou. Nunca foi um pai presente e tampouco deixou a família em condição confortável após a separação. Minha mãe ficou sem nada. No final da vida, como o salário que ele recebia de Tolentino foi minguando, eu e meus irmãos ajudávamos a custear suas despesas básicas e medicamentos. Quando ele morreu, fui encarregado de resolver a burocracia por ser o filho mais próximo dele, mas sempre tive receio de contar à família tudo o que eu havia descoberto. Não queria preocupá-los. Quando a CPI passou a investigar os negócios de Tolentino e o nome do meu pai veio à tona, foi um susto para eles. Descobriram a confusão porque um conhecido estava assistindo ao noticiário e avisou que o nome do meu pai havia sido citado pelos senadores. Foi nesse momento que tive de contar tudo o que sabia. Agora, estão todos assustados e preocupados comigo. Somos pessoas simples. Nada disso fazia parte da nossa realidade.
Diante de tudo o que aconteceu, minha mãe se revolta: diz que, além de toda a confusão que ele armou em vida, deixou como herança problemas ainda mais complexos. Quando ele se foi, nós, os filhos, ficamos tristes. Era o nosso pai. Mas o drama, neste momento, é maior, diante do imbróglio que devemos resolver. Não temos poder, conexões políticas, influência. Somos as vítimas pequenas desse escândalo e, portanto, o elo mais frágil. Meus irmãos e eu sempre nos perguntamos como meu pai foi se envolver nisso. Mas não há resposta. Ele não ficou rico, não acumulou patrimônio, não tinha nem casa própria quando morreu. Senão por dinheiro, por que ele fez isso? Não acho que foi inocente. Não creio que as pessoas que participaram disso, incluindo meu pai, tenham sido enganadas. Mas a razão, de fato, nunca saberemos.
Ao contrário do que Tolentino prometera, quando o relatório final da CPI foi entregue, ninguém me procurou para dar sequência ao meu caso. Ficaram em silêncio. Em novembro do ano passado, o Ministério Público voltou a entrar em contato comigo em busca do inventário do meu pai e eu voltei a recorrer a Tolentino. Foi quando Ricardo Uchôa, advogado de Tolentino, me pediu que assinasse uma procuração dando a eles plenos poderes para movimentar a MB Guassu na Junta Comercial – poderes que incluíam obter certidões de quitação e transferir direitos sucessórios. Pedi explicações. Por que precisavam de uma procuração para atuar na Junta Comercial sendo que o problema estava no Ministério Público de Itapevi? Como confiar nessas pessoas depois de mais de um ano de mentiras e enrolação?
Quando fiz esses questionamentos, Tolentino mudou o semblante. Disse que não iria mais fazer nada por mim e que eu que me virasse para resolver tudo: o inventário, a ação de improbidade, enfim, tudo que se relaciona ao meu pai. Depois de todo esse tempo esperando, voltei à estaca zero. Mas desta vez decidi agir de forma diferente. Estou sendo aconselhado por advogados e já apresentei tudo o que tenho ao Ministério Público e à Polícia Federal: documentos, conversas de WhatsApp e áudios. Se essas empresas, de fato, tiverem algum patrimônio, o que nos interessa é que ele seja usado para resolver as pendências na Justiça. O que mais quero é me livrar dessas pessoas e desse problema que não é meu, mas tem consumido a minha vida.
Para mim, é difícil conceber que meu pai fosse o testa de ferro de Tolentino. Ele sempre trabalhou, estava envolvido em negócios. Não parava em casa. Mas nunca imaginei que pudesse ser esse tipo de negócio, com licitações para o governo federal, para governos estaduais. Embora eu tenha trabalhado brevemente num cargo indicado por ele e até concorrido a vereador, sem sucesso, na verdade nunca fui de política. Essa não é a minha realidade. Tenho uma vida normal, sou comerciante. Por isso demorei a acreditar. Agora, só quero resolver e esquecer – e voltar a viver longe dessas pessoas.