Minhas medalhas eram por elevado espírito esportivo , uma espécie de elogio indireto. Antes de pular, eu observava meus adversários, e me ocorria que um de nós tinha que perder. E eu podia fazer isso por aquela gente NADADOR EM AMARELO _GARETH LLOYD BALL_1990_BRIDGEMAN ART LIBRARY
Meus verões na equipe de natação
Tenho certeza de que meu pai me dizia uma porção de coisas normais enquanto eu estava crescendo, mas o que mais me marcou, provavelmente porque ele a repetiu mais ou menos 10 mil vezes, foi: “Tudo o que você toca vira bosta”
David Sedaris | Edição 63, Dezembro 2011
Sempre achei que, quando chegasse aos 50, eu ia me interessar por ópera, e não de forma ocasional, mas para valer: ia estudar os compositores, aprender italiano, talvez até comprasse uma capa. Isso me parecia empolgante para alguém mais velho – e foi por isso que adiei tanto. Aí fiz 50 anos e, em vez da ópera, descobri a natação. Ou melhor, redescobri a natação. Eu sabia nadar desde os 10 anos e comecei no Raleigh Country Club. Havia outro melhor na cidade, o Carolina Country Club, mas acho que não aceitavam ianques como sócios. Nem judeus, se não me falha a memória.
Os únicos negros de que me lembro eram os empregados, e até as crianças os chamavam pelo primeiro nome. O homem atrás do balcão era Ike. E eu era o senhor Sedaris, um menino de 11 anos.
O melhor clube de campo tinha como princípio que Raleigh era importante, que aquelas velhas famílias eram coisa fina e precisavam de um lugar para desfrutar a companhia umas das outras, sem terem que esbarrar em estranhos. Se não achássemos tudo isso ridículo, nosso country club seria insuportável. Em vez disso, a ideia era: veja só quanta grana você poupa por não ser o melhor.
Quanto aos campos de golfe, não posso falar nada, mas as piscinas eram do mesmo tamanho e, numa tarde quente e sem vento, dava para sentir à distância o cheiro delas. Eram verdadeiros poços de cloro. Banhos químicos. Na parte mais funda da piscina, eu e minhas irmãs gostávamos de mergulhar para pegar moedas. Chegava a hora do almoço e a gente fazia fila na lanchonete, com o cabelo parecendo algodão doce, e os olhos miúdos, ardendo, parecendo duas cerejas.
Tive aulas de natação em junho de 1966, o primeiro ano em que fomos sócios do clube. No verão seguinte, eu estava na equipe de natação. Dito assim, parece uma tremenda façanha, mas acho que, em 1967, qualquer um podia entrar na equipe de natação do Raleigh Country Club. Era só aparecer, enfiar uma sunga laranja e pronto.
Antes da minha primeira aula, eu achava que o ato de nadar estava na mesma categoria que caminhar e andar de bicicleta: uma coisa que se faz para ir de um lugar ao outro. Nunca parei para pensar se fazia aquilo direito. Uma atividade só se torna consciente e tensa quando há competição. Ou, no meu caso, quando a competição era entre meninos. Porque, com as meninas, eu ficava numa boa, principalmente se fossem mais novas que eu. Melhor ainda se fossem mais novas e fisicamente deficientes. Me mandem uma oponente fêmea, que só estudou até a 1ª série, e de perna mecânica, que vou fazer a água espirrar que nem uma lancha de corrida. Quando é para vencer, eu não perco tempo com pequenos detalhes.
A maioria das minhas medalhas era por elevado espírito esportivo, uma espécie de elogio indireto. Quando levantavam a pistola para dar a largada, eu observava meus adversários se ajeitando no pódio. Os pais, bêbados, berravam e torciam na borda da piscina e me vinha à cabeça que um de nós tinha que perder, e eu podia fazer isso por aquela gente. Portanto, ainda que eu me saísse bem ou chegasse por último, tudo o que eu conseguia sentir no final era alívio. Prova encerrada, eu podia ir para casa. Aí anunciavam a competição seguinte e tudo recomeçava: noites sem dormir, dores de barriga, uma avassaladora e torturante sensação de estar condenado à morte. Minhas irmãs Lisa e Gretchen também faziam parte da equipe, mas aposto que elas não ficavam tão atormentadas. Para mim, todo dia de competição era a mesma coisa. “Mãe” – num gemido, como quem pede socorro, soterrado sob as pedras –, “não estou me sentindo bem. Quem sabe a gente…”
“Ah, não senhor, nem pensar!”
Se eu estivesse tentando me livrar da escola, pelo menos ela permitiria que eu defendesse minha tese, só que ela nunca ia à escola. Já no clube, minha mãe ia sempre e era o centro das atenções, vivia de papo com Ike no bar e com as garotas no restaurante, ao lado do campinho de golfe. Quando chegava o verão, a gente passava o dia inteiro na piscina, enquanto ela ficava torrando ao sol. De vez em quando, ela entrava na água para se refrescar, mas não sabia nadar e não confiava na gente, achava que não conseguiríamos rebocá-la do fundo. Assim, ficava sentada na piscininha infantil, com a água na cintura, deixando a cinza do cigarro cair na borda e depois a dissolvia com o dedo.
Havia um bom grupo de mulheres como ela, que só queriam que os filhos as deixassem em paz. Você chegava com alguma reclamação para a sua mãe, e uma delas dizia: “Dá um tempo. Sossega.” Ou: “Ah, qual é! Você ia perder mesmo esse dente. Agora volta já para a água.” Lembro delas naquele calor escaldante, sem guarda-sol, só de óculos escuros e fritando a pele com aquele bronzeador cheirando a coco.
A piscina era território das mulheres e crianças até a hora da prova de natação, que em geral começava às seis. Aí os pais chegavam e pediam bebidas. Para a maioria deles, aquilo era só mais uma atividade a que eles tinham que comparecer, além dos campeonatos de beisebol ou futebol na escola dos filhos. Ou ainda basquete. O meu pai, ao contrário, só tinha aquela obrigação, e do meu ponto de vista, ele devia se dar por satisfeito. Imagina só o tempo que ele ganhava com o meu medo de esportes – fins de semana e noites livres.
Pensando bem, nunca fui um nadador horrível, apenas mediano. Às vezes chegava em terceiro e, uma ou duas vezes, quando fiz parte de uma equipe de revezamento, chegamos em primeiro, embora nem de longe o mérito fosse meu. De vez em quando tinha uma competição interna no clube, nós contra nós mesmos, e nesse caso, como nos outros campeonatos, o grande astro era um garoto chamado Greg Sakas, que tinha o meu tamanho, mas era mais jovem, cabelo louro claro e umas pernas não muito mais grossas do que um cabo de alta tensão. “Caramba, viu só como o Greg Sakas nadou?”, disse meu pai a caminho de casa, depois da minha primeira competição. “Nossa, aquele garoto é incríííível.”
No início, aquilo não me incomodou. Greg não era arrogante. Ele tinha um pai bem legal e todo mundo adorava a mãe dele. Ela era uma das poucas que podiam vestir biquíni, e ela usava um biquíni cor de chocolate que, à medida que o verão avançava, dava a impressão de que estava nua. “O seu filho é formidável”, ouvi meu pai dizer para ela, depois da segunda competição. “Você devia trazer uma câmera e filmar o garoto nadando.”
No caminho para casa, ele repetiu a conversa para minha mãe. “Falei para ela: ‘Mande o filme para um treinador profissional de natação que ele vai vir correndo, na mesma hora! Seu filho é um campeão. Uma criatura olímpica, ouça o que estou dizendo. Tem velocidade, personalidade, o pacote todo.’”
Muito bem, pensei. Agora pode parar de falar do Greg Sakas.
Na época, tínhamos uma caminhonete e minha irmã Gretchen e eu estávamos no que chamávamos de lá atrás – o lugar onde, em geral, ficavam as compras do mercado. Quando Gretchen era bebê, um cachorro mordeu a cara dela e deixou uma cicatriz que era quase invisível, até ela pegar um bronzeado. Aí dava a impressão de que ela tinha rabiscado quatro pauzinhos na bochecha e depois feito um risco transversal, que nem calendário de náufrago em desenho animado.
“Tenho pena é dos garotos que nadam contra ele”, continuou meu pai. “Os pobrezinhos não têm a menor chance. E você ouviu o que ele disse quando recebeu a medalha? Quem podia imaginar que Greg Sakas era tão engraçado? E bonito. Simplesmente perfeito, em todos os aspectos.”
Quando era mais nova, minha irmã era bem cheinha e, quanto mais meu pai falava do Greg Sakas, melhor me parecia a ideia de chamar a atenção para aquilo. “Ei”, gritei. “A Gretchen pegou muito sol hoje. Vocês não estão sentindo o cheiro de bacon frito?”
Minha irmã olhou para mim como se dissesse: Mas a gente não era amigo dois minutos atrás? De onde você tirou isso?
“Talvez a mamãe devesse mandar a Gretchen fazer dieta. Assim ela não ia ficar tão gorda.”
“Não é má ideia”, disse meu pai.
Minha mãe, grávida de pouco tempo e se sentindo também meio cheinha, meteu sua colher na conversa e aí eu me senti vitorioso. Essa era a vantagem de ter família grande. Ninguém ia falar da Lisa – a Miss Perfeição –, mas tinha outros três, e mais tarde quatro, para pegar no pé, todos mais novos e cada um com seu defeito específico: dentes salientes, notas baixas. Era que nem um tiro ao alvo no parque de diversões. Mesmo que eu acabasse sendo castigado, era um jeito de mudar de canal, passando naquele caso do “Show do Greg” para o “Show do David”, que naquele dia era patrocinado pelo problema do excesso de peso de Gretchen. Enquanto isso, minhas irmãs podiam mudar para seus canais próprios e, quando aquilo se tornava insuportável, a ponto de meus pais explodirem, eles abriam a porta do carro e nos jogavam para fora. O lugar ideal para isso – que já estava manchado com as marcas de pneu – era o final de uma ladeira íngreme. A distância de casa nem era tão grande assim, uns 800 metros talvez, mas parecia duas vezes maior quando estava calor ou chovia, ou, pior, debaixo de uma tempestade. “Ah, está só relampejando”, dizia meu pai. “Isso não mata ninguém. Agora, cai fora.”
Os vizinhos passavam e, quando buzinavam, eu lembrava que estava de sunga. Aí enrolava a toalha na cintura, feito saia, e dizia para minhas irmãs que não era roupa de mulherzinha, mas de egípcio, sim, senhoritas.
Chamar atenção para o peso da Gretchenera o tipo da coisa que minha mãe taxava de “revolver o lodo”, e eu fiz isso várias vezes naquele verão. Papai quer o Greg como filho em vez de mim, eu pensava, e para me vingar tratei de me tornar um garoto que ninguém aguenta.
“Mas o que deu em você?”, minha mãe perguntava.
Eu bem que queria contar, mas o que eu queria mesmo era que ela percebesse sozinha. Eles não se mancam?, eu me indagava. Meu pai nunca fala de outra coisa.
A competição seguinte foi uma reprise das duas primeiras. No carro de volta para casa, mais uma vez eu estava lá atrás – eu fazia de tudo para manter a maior distância possível entre meu pai e eu. “Vou te dizer uma coisa: esse Greg é um prodígio. O sucesso está escrito na cara dele e, quando isso acontecer, vou dizer: ‘Ei, lembra de mim? Fui o primeiro a sacar que você era fora de série.’”
Falava como se entendesse de natação, como um caça-talentos de Possêidon ou algo assim. “O nado borboleta é o forte dele, mas não vamos subestimar o crawl, ou também o nado de peito. Esse garoto é um tubarão!”
Essa conversa mole era supostamente dirigida à minha mãe, que ficava olhando pela janela e às vezes dava um suspiro. “Ah, nossa, Lou, não sei.” Ela nunca esticava esse papo, por isso ele só podia estar falando aquelas coisas para mim. Por que outra razão ele falaria tão alto, enquanto procurava meus olhos pelo retrovisor?
Uma vez, quando voltávamos de carro para casa, peguei a boneca da Amy, amarrei o pé dela na ponta da toalha e botei pendurada para fora da janela de trás, e a boneca foi arrastada pela rua. De vez em quando eu a puxava de volta para dar uma conferida no estrago – você precisava ver como o asfalto tinha corroído o cabelo dela e retalhado aquele nariz comprido até ele sumir de vez. Aí eu pensava: O que será que o Greg está fazendo neste exato momento? Será que o pai do Greg gostava dele tanto quanto o meu? Greg era filho único, portanto o mais provável é que ele, em casa, recebesse um tratamento VIP, assim como no clube. Pendurei a boneca para o lado de fora da janela outra vez e depois larguei a toalha. O carro que vinha atrás buzinou, eu me abaixei e, com a mão, fiz um gesto obsceno para o motorista.
Em julho, implorei para sair da equipe de natação, mas meus pais nem deram bola. “Você é um bom nadador”, disse minha mãe. “Não é o melhor, mas e daí? Quem quer ser bom numa coisa que se faz em traje de banho?”
No inverno, minha avó grega foi atropelada por um carro e se mudou do estado de Nova York para a nossa casa. Levar a vovó para o clube deixaria as pessoas deprimidas. Com um vestido preto e soturno, e o cabelo branco num coque estilo roça à moda antiga, minha vó era o equivalente a uma nuvem negra sobre nós. Achei que ela ia pôr um ponto final nas futuras provas de natação, mas quando veio o feriado de 30 de maio, em memória dos soldados que morreram em combate, foi o mesmo de sempre. “Ela já está bem crescidinha”, disse minha mãe. “Vamos deixá-la em casa sozinha.”
“Sim, mas não era melhor a gente voltar às cinco, caso ela caia da escada ou coisa parecida?” Eu não queria que ela estragasse meu verão – só queria que me livrasse da natação. “Eu podia vir para casa e ficar com ela.”
“Não senhor, nem pensar”, disse minha mãe. “Um belo tombo de um lugar bem alto é exatamente aquilo que eu espero.”
Achei que o nascimento do meu irmão Paul também pudesse limitar nossas horas na piscina, mas de novo não dei sorte. Para um garoto de 6 meses, não pode ser saudável ficar debaixo do sol quente. Talvez por isso ele nunca chorava. Paul estava em choque – foi o único bebê que conheci com marca de bronzeado na pele. “Que bonitinho”, disse Greg uma vez, e fiquei preocupado, com medo que ele conquistasse Paul e minha mãe, do mesmo jeito que conquistou meu pai.
O verão de 1968 foi até pior que o anterior. O clube passou a servir um jantar semanal, com costela bovina de primeira e traje esporte fino – o que significava ter que vestir meu paletó esporte de lã azul. Enquanto suava no meu copo de suco de frutas, eu via meu pai fazer a ronda pelo salão, parar na mesa dos Sakas e colocar a mão no ombro do Greg de um jeito como jamais colocava no meu. Naquela época, não havia muita gente que eu odiasse de verdade – umas trinta, quarenta e cinco no máximo –, mas o Greg era o primeiro da lista. O incrível era que aquilo nem tinha sido ideia minha. Eu estava sendo forçado a odiar o Greg, ou melhor, forçado a odiar a mim mesmo por não ser ele. Não que nós dois, na verdade, fôssemos tão diferentes assim: o mesmo tamanho, um corpo parecido. Greg não tinha um aspecto fora do comum. Sem dúvida, não era nenhum erudito nem nada. Eu estava começando a perceber que ele nem era um nadador tão bom assim. Era rápido, é verdade, mas se sacudia demais. Chamei a atenção de meu pai para aquilo e ele viu na minha observação uma chance de lembrar a fábula da raposa e das uvas: “Talvez fosse melhor você treinar mais a sua braçada, antes de criticar os outros.”
As coisas vão melhorar quando o verão acabar, eu sempre pensava. A gente continuava indo ao clube jantar costelas bovinas de primeira, mas Greg nem sempre comparecia e, sem a natação, não tinha muito assunto para meu pai exaltar.
Quando chegou o outono, ele ficou enchendo a bola de um garoto do meu grupo de escoteiros. Mas meu pai na verdade não entendia nada do queacontecia por lá. A coisa mais difícil que a gente fez naquele ano foi embrulhar batatas em papel-alumínio, e eu sabia embrulhar batatas tão bem quanto qualquer um. Então, certa noite, enquanto via o Show de Andy Williams, ele começou a elogiar Donny Osmond.
“Acabei de ver esse cara na tevê e vou confessar que me deixou de queixo caído. Como canta, como dança… esse garoto vai ser um fenômeno, pode apostar.”
“Você não o descobriu”, falei na noite seguinte, na hora do jantar. “Se alguém aparece no Show de Andy Williams, quer dizer que já foi descoberto. Pare de achar que o mérito é seu.”
“Hum… tem alguém raivosinho aqui!” Meu pai ergueu o copo de bebida da mesa. “Eu só quero saber quando o Donny vai aparecer no programa outra vez.”
“A atração são os irmãos Osmond”, falei. “As garotas na escola vivem falando deles. Não é uma apresentação solo… eles formam um grupo.”
“Não, sem ele não formam grupo nenhum. Donny é a alma do espetáculo. Retire o Donny de cena e eles não são nada.”
Na vez seguinte que se apresentaram no Show de Andy Williams, meu pai me arrancou do quarto à força e me obrigou a ver o programa.
“Ele não é fantástico? Olhe só esse garoto! Minha nossa! Dá para acreditar?”
Competir com celebridades, pessoas que não eram “reais”, era inútil. Para mim isso era tão elementar quanto saber meu nome e meu endereço, porém quanto mais meu pai enchia a bola de Donny Osmond, mais ameaçado e insignificante eu me sentia. A questão era que meu pai nem gostava daquele tipo de música. “Bem, normalmente, não gosto”, disse ele quando levantei a questão. “Mas tem alguma coisa em Donny que me faz gostar dela.” Parou um pouco. “E o pior é que ele é mais novo do que você.”
“Um ano mais novo.”
“Pois é, não estou dizendo? Muito mais novo.”
Eu nunca soube se meu pai fazia isso para me ferir ou para me estimular, mas em ambos os casos ele foi tremendamente bem-sucedido. Lembro que eu estava no clube, no verão de 69, no dia em que o homem pisou na Lua. Alguém colocou uma tevê em cima da cadeira do salva-vidas, todos nos juntamos em volta e eu pensei que, pelo menos naquele dia, havia alguma coisa maior do que Donny Osmond e Greg Sakas, que àquela altura já era um pouco mais baixo do que eu.
Naquele Dia do Trabalho, na última competição interna da temporada, venci Greg no nado borboleta. “Você estava assistindo? Não viu? Eu venci!”
“Talvez tenha vencido, mas foi só por um fio de cabelo”, disse meu pai no caminho de volta para casa. “Além do mais, foi o quê? Uma vez em cinquenta? Francamente, não vejo nenhum motivo para você ficar tão convencido.”
Foi aí que pensei: Está legal, então é assim que são as coisas. Meu pai era que nem os fuzileiros navais, só que, em vez de fazer a gente em pedacinhos e depois colar todos os cacos, ele se limitava à primeira parte e dava o serviço por encerrado. Agora parece uma coisa cruel, até brutal, mas tudo isso aconteceu antes da invenção da autoestima, que, para ser sincero, acho uma coisa um pouco superestimada.
Tenho certeza de que meu pai me dizia uma porção de coisas normais enquanto eu estava crescendo, mas o que mais me marcou, provavelmente porque ele a repetiu mais ou menos 10 mil vezes, foi: “Tudo o que você toca vira bosta.” Sua outra máxima era: “Sabe o que você é? Um grande e redondo zero.”
Você vai ver só, eu pensava. Provar que ele estava errado era o que me fazia sair da cama toda manhã e, quando eu fracassava, era o que me fazia ficar de pé outra vez. Lembro que telefonei para ele no verão de 2008, para lhe dizer que meu livro era o número 1 na lista de mais vendidos do New York Times.
“Bem, não é o número 1 na lista do Wall Street Journal”, disse ele.
“Essa não é a lista em que o pessoal que lê livros presta atenção”, respondi.
“Não é uma ova”, disse ele. “Eu presto atenção nela.”
“E você é uma pessoa ligada a livros?”
“Eu leio. Claro.”
Lembrei-me do exemplar de Como Vencer no Golfe, juntando poeira no banco de trás do carro dele. “É claro que você lê”, falei.
Ser o número 1 da lista do Times não significa que seu livro é bom – só quer dizer que uma porção de gente comprou seu livro naquela semana, gente que foi enganada, talvez, ou gente que, para começo de conversa, nunca foi tão inteligente assim. Não é que nem ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, o.k., mas mesmo assim, se for o livro do seu filho, não é de se esperar que você fique feliz e se mostre solidário?
Claro, a situação se complica quando boa parte do livro fala sobre você e mostra que tremendo palhaço você pode ser. O número 1, nesse caso específico, significava que uma porção de gente tinha lido sobre o meu pai sentado de cueca, tacando colheres na cabeça dos outros. Portanto, talvez ele tivesse algum direito de se mostrar pouco entusiasmado.
Quando lhe contei que tinha voltado a nadar, meu pai disse: “Bom garoto.” Essa é a expressão que ele usa toda vez que faço alguma coisa que ele acha que foi ideia dele.
“Vou voltar para a faculdade.”
“Bom garoto.”
“Estou pensando em tratar dos dentes.”
“Bom garoto.”
“Pensando bem…” É o que sempre tenho vontade de dizer.
O que me incomoda não é a aprovação do meu pai, mas minha esperança infantil de que desta vez ela vá durar. Meu pai gosta que eu tenha voltado a nadar, portanto talvez goste também da casa que comprei (“Garoto, é claro que te passaram a perna”) ou do paletó esporte que trouxe da minha última viagem ao Japão (“Você está igualzinho a um palhaço de circo”).
Mais cedo ou mais tarde, Greg Sakas acabaria recebendo o mesmo tratamento, assim como qualquer outro dos aspirantes a filho que meu pai contrapôs a mim ao longo da minha adolescência. Assim que eles se habituavam ao doce sabor da sua aprovação, meu pai não tinha outra opção senão tomar deles esse doce, não por causa de alguma coisa que eles tivessem feito, mas porque essa é a natureza de meu pai. Mal vê uma faísca se acender, o cara não consegue resistir a pôr o pé em cima e apagar.
Eu estava em Las Vegas não fazia muito tempo e, quando ergui os olhos, vi Donny Osmond sorrindo de cima para mim, num cartaz que era só um pouco menor do que o céu. “Você”, sussurrei.
Na piscina do hotel, algumas horas depois, pensei nele enquanto nadava de uma ponta à outra. Depois pensei em Greg e fui transportado de volta ao Raleigh Country Club. Dia do Trabalho, 1969. Uma grande multidão para a competição interna do clube, o ar com cheiro do cloro e da fumaça que vinha da churrasqueira. A parte ruim da natação é que, enquanto a gente está nadando, não consegue enxergar muita coisa: o fundo da piscina, sem dúvida, e mais alguns fragmentos sujos e fugazes do mundo exterior, quando a gente vira a cabeça para respirar.Mas não consegue distinguir as coisas – o rosto de um homem, por exemplo, olhando da borda quando, pela primeira vez na vida, a gente dá uma arrancada e vence a prova.