Chus tem todas as características que distinguem uma pessoa com síndrome de Down, e ao mesmo tempo, em relação ao que importa, tem tudo que distingue uma pessoa maravilhosa ILUSTRAÇÃO: LISK FENG
Minha tia Chus
Uma criança com síndrome de Down na década de 60
Nacho Carretero | Edição 97, Outubro 2014
Não é fácil para Chus subir as escadas do ônibus, de manhã. Seu corpo roliço luta para galgar cada um dos degraus: primeiro uma perna, depois a outra, e começa tudo de novo. Ela vive em seu ritmo, o mundo em outro. Que esperem. Chus é baixinha, rechonchuda, e ao caminhar se balança sobre os pés diminutos, curiosamente dotados de uma força espantosa. Suas mãos, também pequenas, agarram-se às barras laterais para completar a subida. Ela sabe praticamente de cor que movimentos fazer, pois não enxerga quase nada.
Chus nasceu cega de um olho e está perdendo a visão do outro. Ao chegar a seu assento, deixa-se cair com tudo. Uma assistente social ajeita a presilha que prende seu cabelo e lhe dá bom-dia. O ônibus arranca e Chus – cujo nome é María Jesús, mas é chamada de Chus por todo mundo – esfrega devagar as mãos avermelhadas pelo frio. Dá uma olhada ao redor, com um sorriso no rosto – do qual não se separa nunca –, e depois retorna a seu mundo interior, indecifrável, profundo, enquanto o ônibus parte. Lá fora a chuva gelada da manhã molha as janelas.
“Certa manhã o pediatra telefonou e pediu para irmos vê-lo no dia seguinte”, conta meu avô, sério, sentado numa poltrona de sua sala. O ano era 1958. Três meses haviam se passado desde o nascimento de Chus. Quando meus avós chegaram ao consultório, o médico não fez muitos rodeios. “Creio que esta menina é mongoloide.” “O que é isso?”, perguntaram. “Não sabem o que é mongoloide?” “Não.” “Não acham ela diferente?” “Não.” “Crianças assim não se desenvolvem bem e têm retardo mental.” Houve um silêncio. “Ela é boba?”, perguntou meu avô. “Em termos médicos, é idiota. Tem idiotia.”
Meus avós caíram no choro. E olhe que minha tia Chus de idiota não tem nada. O problema – um deles – é que só no ano seguinte o pediatra e geneticista francês Jérôme Lejeune diagnosticaria a síndrome de Down, após detectar uma alteração no cromossomo 21, que se duplica total ou parcialmente. Naquele momento, nem meus avós, nem o médico, ninguém sobre a face da Terra sabia disso. Por isso referiram-se a ela como idiota. Quando saíram do consultório, Martín Pou e Lucrecia Romay (esses os nomes de meus avós, mas todo mundo chama minha avó de Chicha, a não ser meu avô, que a chama de Chola, sabe-se lá por quê) foram para a casa de meus bisavós.
Chus estava num pequeno berço de vime, alheia, naturalmente, a tudo o que a cercava. “Acabaram de nos dizer que a Chus é boba.” La Coruña, cidade do interior da Galícia, na Espanha, tinha na época 150 mil habitantes. Mais do que uma notícia, o que meus avós relatavam era uma maldição. Meus bisavós perguntaram: “Pode afetar o resto dos irmãos?” Na época Chus tinha quatro irmãos mais velhos (um deles, minha mãe). Foi uma dúvida – talvez razoável – que se instalou na casa. O que não pareceu tão razoável para meus avós foi o conselho que meus bisavós lhes deram depois: que não aparecessem em público com a menina, para o bem de toda a família. “É preciso entender que aquela era uma outra época, a mentalidade era outra”, justifica meu avô.
O ônibus chega a seu destino: o centro ocupacional Lamastelle da Aspronaga. De outros quatro ônibus desembarcam dezenas de meninos e meninas, homens e mulheres com diferentes graus de deficiência. Cumprimentam-se, gritam, riem, um está quase dormindo, outro parece chateado. Encolhem os ombros para se proteger da chuva. A ala de Chus é a da terceira idade, e ela caminha para lá devagar, bem devagarinho.
Na verdade, Chus faz tudo devagar – vive presa numa câmera lenta e seus movimentos estão impregnados de pachorra. E isso se acentua cada vez mais: ela completou 56 anos, não está para correrias. O aniversário, é claro, será celebrado como todos os seus aniversários: com chocolate e churros. Não tem jeito de ela comemorar de outra maneira. “O que você quer fazer este ano no aniversário, Chus?” “Chocolate com churros.” Não adianta insistir. Bem, chegar aos 56 anos é um feito considerável para uma pessoa com síndrome de Down, de maneira que ela já não trabalha como até pouco tempo atrás, mas como a maioria de seus colegas, mais jovens, ainda trabalha. São trabalhos manuais, simples, mas que eles desempenham com uma eficácia admirável.
Nisso consiste o Lamastelle da associação Aspronaga: dar ocupação a pessoas com deficiência para ajudá-las a se integrar. Em troca elas recebem um salário simbólico, mas obviamente não é esse o objetivo. No caso da unidade de Chus, trata-se de ocupar o tempo dos mais velhos e dotá-los da maior qualidade de vida possível, o que não é pouco. Nem fácil. Protegida pelo casaco, sem deixar de sorrir apesar da chuva, ela entra no ateliê e dá bom-dia aos colegas.
Na porta, outra assistente social a cumprimenta: “Como foi o fim de semana, Chus?” Ela responde automaticamente enquanto tira o cachecol: “Muito bom.” Para Chus, tudo está sempre muito bem. Se reclama, se algum dia alguém a ouve reclamar, é porque alguma coisa realmente séria está acontecendo.
Chus pendura o casaco, tem apenas 1 metro e meio, e se estica na ponta dos pés para alcançar o cabide. Tem todas as características que distinguem uma pessoa com síndrome de Down: extremidades pequenas, traços mongólicos, problemas psicológicos, tendência à obesidade e baixa expectativa de vida. A mente de Chus, devido à idade, também está prejudicada: gira sobre si mesma, encerrando-a cada vez mais em seu mundo interior. Em relação ao que importa, ela tem todas as características que distinguem uma pessoa maravilhosa.
Finalmente conseguiu pendurar o casaco. Dirige-se a seu lugar, e no meio do caminho deixa-se cair outra vez sobre uma cadeira. Era só o que lhe faltava, ter que manter as aparências quando conseguiu, finalmente, encontrar um assento.
“O que os jovens de agora têm dificuldade de entender”, explica meu avô, “é que naquela época éramos completamente ignorantes, não havia nenhuma informação. Era como estar num túnel escuro, no qual entrávamos sem saber como seguir em frente, nem para onde ir, nem nada…” Um túnel escuro. Meus avós, num silêncio desolador, contemplavam Chus em sua cesta de vime.
Na Europa daqueles tempos, nenhum país tinha uma legislação específica para pessoas com deficiência intelectual, nenhum governo dedicava particular atenção a elas. Eram simplesmente crianças ou adultos doentes, para os quais não havia cura. Uns inúteis que despencavam sobre as famílias, como um feitiço. Não só porque eram um peso, mas também porque implicavam um estigma. Meus avós estavam perdidos. “Lembro que eu não conseguia parar de chorar”, acrescenta com um fio de voz minha avó, miúda, frágil, sentada em sua enorme poltrona que parece devorá-la. “Acho que entrei em depressão.”
Seria somente um ano depois – coincidindo com o diagnóstico da síndrome de Down – que os países nórdicos, encabeçados pela Dinamarca, começariam a regulamentar o tratamento para essas pessoas. Dez anos depois, em 1968, em Jerusalém, seria constituída a Liga Internacional de Associações de Ajuda ao Deficiente Mental, importante contribuição para impulsionar definitivamente os direitos das pessoas com deficiência intelectual. Antes disso, tudo era feito às cegas. Meus avós, em busca de informações, deram início a uma via-crúcis de consultas a médicos, amigos e conhecidos.
Alguém lhes disse para manter Chus encerrada. E, quando digo alguém, não me refiro a um sujeito qualquer, um passante que se virou e deu uma sugestão. Não. Foi um amigo, um familiar, um médico… Aconselharam que ela vivesse num quarto, sem contato com ninguém. Assim evitariam problemas.
Naquela ocasião, havia na cidade centenas de crianças consideradas idiotas – trancadas em seus quartos, isoladas nas profundezas das casas. As famílias não queriam ver sua honra maculada, ou simplesmente não queriam expor o resto dos irmãos ao contágio de idiotia. Naquele tempo, essa era a realidade de muitas crianças. Meus avós se recusaram a acatar o conselho.
Outro alguém lhes disse para não ter mais filhos, já que poderiam nascer como Chus. Meus avós ainda teriam mais quatro, perfazendo um total de nove rebentos. Nenhum deles com síndrome de Down ou com qualquer outro tipo de deficiência.
Um terceiro alguém, membro da instituição católica do Opus Dei, deu a eles conselhos tão abjetos que meus avós se levantaram e foram embora com uma raiva histórica. “Depois eu não conseguia parar de chorar, ouvimos coisas terríveis”, diz outra vez minha avó, com a voz trêmula. “Mas você estava chorando o tempo todo, vó?” Meu avô irrompe: “O tempo todo. Passou toda aquela época chorando.” E, da poltrona, minha avó olha para ele, minúscula.
Um quarto alguém, um médico, recomendou que internassem Chus num centro especializado. Lá ela receberia todos os cuidados de que necessitavam pessoas como ela. Meu avô foi visitar um desses centros, estudando a possibilidade. Descartou-a assim que pôs o pé no primeiro deles. “Parecia um hospício, as camas tinham correias, havia barras, as paredes eram acolchoadas… um horror.” Meu avô, talvez imaginando Chus num lugar daqueles, rememora isso escandalizado.
Um quinto e último conselho veio de outro médico, na época famoso por oferecer um tratamento experimental de vacinas recém-chegadas da Alemanha. “Preciso ressaltar que foi meu pai que me deu dinheiro para pagá-lo”, acrescenta meu avô, para fazer justiça aos pais que sugeriram o enclausuramento da menina. Aquelas vacinas não eram especiais somente por serem caras. O tratamento prometia curar Chus.
Tratava-se de umas injeções, nada mais nada menos, de células vivas de cabra. A primeira dose chegou ao pequeno aeroporto de La Coruña proveniente de Berlim. Meu avô foi à clínica com Chus, de poucos meses, para que uma enfermeira lhe aplicasse a primeira dose. “Ela pegou uma seringa enorme, lembro que era uma agulha bem comprida”, relata meu avô. “E a injetou diretamente na cabeça da menina.” Minha avó chora ao ouvir isso. “Eu não vi, não quis ir”, sussurra. Meu avô abandonou o tratamento depois da segunda injeção. Chus não recebeu mais aquelas vacinas.
Os integrantes da ala da terceira idade estão sentados em círculo, fazendo exercícios de memória. Chus espera a vez acomodada numa cadeira, com as pernocas esticadas, as mãos nos bolsos para espantar o frio, imersa em seus pensamentos. No exercício, cada pessoa deve citar um objeto, de maneira que quando for sua vez, além de anunciar o nome que lhe ocorrer, ela precisa repetir todos os que foram ditos antes. Hoje o assunto é roupa. Quando chega a vez de Chus, já mencionaram quatro peças, não está nada fácil. Num sublime gesto de concentração, Chus apoia a pequena mão na testa e começa a pensar com tanta intensidade que se pode apalpar seu esforço: “Pulôver, calça, roupão e camisa…” Ela consegue. E sorri. Chus sempre sorri.
Há aproximadamente dez anos a demência senil devora, insaciável, sua memória. De uns tempos para cá, Chus perdeu a capacidade de recordar, a tal ponto que não se lembra nem mesmo do que fez no dia anterior. Com frequência esquece o que acabou de acontecer, e por isso costuma entrar em ciclos reiterativos, perguntando ou dizendo a mesma coisa inúmeras vezes.
Certo dia, almoçando em minha casa, Chus repetia incansavelmente a mesma ideia (não lembro exatamente o que ela dizia), até que minha mãe tentou interromper o fluxo: “Chus, a gente diz as coisas só uma vez. Não repita mais, está bem?” Ao que Chus respondeu: “Tudo bem, não vou repetir mais.” E meio minuto depois disse: “Não vou repetir mais.” E outro meio minuto depois: “Não vou repetir mais”, e assim entrou de novo num ciclo daqueles, repetindo que não ia repetir, numa ladainha digna do melhor paradoxo.
Às vezes Chus revive fatos passados – volta atrás anos e anos – e os comenta (novamente no mesmo ciclo reiterativo) como se tivessem acabado de ocorrer. Um dia, em sua ala, aconteceu de ela não parar de dizer que seu salário tinha sido aumentado (o que não era verdade, muito pelo contrário, pois com a crise o salário da maioria tinha minguado). Ao lado dela, um colega, também com demência senil, estourava de raiva toda vez que ela vinha com a boa-nova. “Mas como é que aumentaram?”, ele gritava. Ela se corrigia, mas acabava dizendo a mesma coisa de novo e seu colega – que também tinha esquecido – estourava de novo. E assim eles passaram a manhã inteira, num redemoinho tragicômico.
Essa incapacidade de reter a realidade imediata não permite que Chus leve uma vida normal. Ela não consegue manter conversas como antes e é preciso guiá-la em meio às palavras, estender-lhe a mão, oferecer a ela questões simples e evitar rodeios nas frases. Por isso a maioria das respostas que ela dá é automatizada, e por isso – quando alguém lhe faz frente, quando alguém a obriga a lembrar – seus esforços são louváveis.
O curioso é que nas poucas vezes em que está zangada (zangada é, sem dúvida, uma palavra muito forte para descrever suas irritações) é que ela fica mais lúcida, é quando responde mais e melhor. De vez em quando eu a provoco – por exemplo, quando ameaço tomar o seu suco, isso a tira do sério – porque quero trazê-la a este mundo, por alguns segundos, para poder desfrutar da sua presença – mas sem dar bandeira para minha avó, claro. Sei que acertei na mosca se ela me chama de “tremendo”. Se Chus diz que alguém é “tremendo”, é porque está realmente zangada.
Depois da via-crúcis por especialistas sem noção e seus conselhos absurdos, meus avós continuavam tão ou mais perdidos do que antes das consultas. Mas como as coisas sempre podem piorar, surgiu um novo problema: em seu olho saudável, o único que lhe oferecia visão, foi detectado um glaucoma. O jeito era operar. E aqui cabe falar, e muito bem, dos médicos.
O cirurgião que operou Chus não cobrou sequer uma peseta, daquelas da época. Queria ajudar a pequena e meus avós, e também realizar uma operação bastante ambiciosa. Chegou a lhes pedir autorização para filmar a intervenção, extremamente delicada: um erro de milímetros e ela ficaria cega para sempre. Deu tudo certo. A bem-sucedida cirurgia ocorreu em Santiago de Compostela, e a família do médico hospedou Chus e minha avó durante o pós-operatório.
“Lembro da Chus com ataduras nos olhos, com os bracinhos amarrados à cama, para evitar que ela se coçasse. Que imagem mais horrorosa”, rememora minha avó. Mas correu tudo bem. Chus, ainda que de óculos e com um único olho, pôde contemplar o mundo durante toda a sua vida. E se empenhou nisso. Quando era jovem e queria ler, levava cuidadosamente a cabeça para perto do livro, apontava com o dedo a linha a ser lida e partia, avançando aos trancos sobre as letras. No fim, levantava a cabeça procurando a aprovação de quem estivesse perto. Escrevia da mesma forma. Sim, Chus lia, escrevia, pintava e ouvia música.
Pois, apesar de continuarem atolados no buraco negro, meus avós não se renderam. Remaram contra a maré, aproveitando cada gota de informação que lhes chegava. “Eu me lembro de ficar lendo por horas e dias a fio, procurando todo tipo de informação”, diz meu avô. No decorrer dos meses, as coisas foram tomando forma e, pouco a pouco, eles começaram a entender o que enfrentavam, o que estava acontecendo.
Quando Chus fez 4 anos, eles compreenderam – e admitiram – que a questão não era curar Chus, pelo simples fato de que Chus não estava doente. Foi um passo decisivo. Mudaram de rumo e foram em busca da luz no fim do túnel. Se Chus tinha de conviver com seu cromossomo parcialmente duplicado, então era essencial que convivesse com plenitude e felicidade.
A luta começou. Em 9 de março de 1962, meu avô resolveu publicar um anúncio em El Ideal Gallego, na época o jornal local mais importante. Ele tinha certeza de que em sua cidade havia muitos outros pais, muitas outras famílias com crianças como Chus, mas escondidas, isoladas, atemorizadas. Queria conhecê-los, queria se associar a eles e discutir sobre como avançar. O anúncio dizia o seguinte: “Aviso importante: Todos os pais e familiares de um menino ou menina anormal (mongoloide) estão convidados para uma reunião, a fim de tratar de assuntos de grande importância para esse grupo. Essa reunião acontecerá, se Deus quiser, no próximo dia 12, terça-feira, às 19 horas, na sede social da Cáritas Territorial, situada à rua Teresa Herrera, número 12, nesta capital. La Coruña, 9 de março de 1962. Martín Pou Díaz.”
O anúncio que meu avô lançou no vazio destampou um segredo social gigantesco: no dia marcado, acorreram 100 pessoas ao local. “Fiquei admirado”, diz meu avô. Aquela convocação libertou muitas famílias, que vieram de todos os cantos da cidade, ansiosas por respostas e compreensão. Queriam falar do que acontecia em suas casas, queriam perguntar, livrar-se do jugo do tabu. O pequeno anúncio no pequeno jornal da pequena cidade abriu uma janela nos quartos onde as crianças estavam encerradas. Propiciou uma vida nova para toda uma geração.
A melhor parte do dia de trabalho de Chus é o almoço. Comilona por natureza, não recusa nada, exceto – mistério – pimentões vermelhos. Não gosta deles. “Não gosta de pimentão vermelho, Chus?” “Nem um pouco.” Com todo o resto, não se faz de rogada. Gorducha, sentada em sua cadeira no refeitório, aproxima lentamente o garfo da boca e degusta.
Certo dia, anos atrás, Chus saboreava na cozinha de casa uma xícara de chocolate com biscoitos no café da manhã, quando a poucos metros dela a panela de pressão começou a apitar. Ninguém ligou para isso, muito menos Chus, concentrada exclusivamente nos biscoitos. Ela mastigava um atrás do outro, absorta, enquanto o apito da panela chiava cada vez mais alto. Até que aconteceu, claro. A tampa voou e lançou ao teto parte do cozido que estava sendo preparado. Segundo a lenda familiar, o conteúdo da panela ricocheteou até na xícara de Chus, que mal reparou no grãozinho de feijão que ficou boiando no chocolate. Ela continuou sua degustação, impassível. Quem se importa com explosões quando se dispõe de uma cumbuca de biscoitos?
No refeitório ecoa o clamor das conversas, das risadas e dos talheres nos pratos. É dia de sopa galega e bife. De sobremesa, tangerina. Chus divide a mesa com vários colegas. Lorena é fã do cantor David Bustamante. É monotemática da primeira colherada ao último gomo de tangerina. “Pois, como eu vi outro dia, numa revista, ele disse para a mulher dele que queria outro filho, porque ele, que é muito na dele, mas que eu sei que quer muitos filhos, tinha dito…”, e assim por diante. Seu grau de deficiência é o mais leve da mesa, e por isso ela impõe sua lei.
Fernando é mais calado, mas basta atiçá-lo com histórias de futebol que ele se anima. Torcedor do Deportivo, parece preocupado com o futuro do clube. “Viu o Barça ontem?”, pergunta. “O Barça? Mas você não é torcedor do Depor?” “É do Barça!”, grita algum desalmado à distância, provocando. E Fernando fecha a cara durante todo o almoço. Chus se concentra em comer. Igual a Toñito, o garoto a seu lado, também com síndrome de Down.
A propósito, referir-se a eles como pessoas com deficiência intelectual é uma prática relativamente nova. Ao longo da vida de Chus, as pessoas com deficiência receberam uma profusão de denominações, digamos, médicas. Na verdade, desde seu nascimento o nome foi mudando de cinco em cinco anos. Quando ela nasceu, era chamada idiota. Depois, boba. Oligofrênica, mongoloide, retardada, inválida, deficiente, incapaz, incapacitada, dependente psíquica, pessoa com incapacidade psíquica e – a denominação atual na Espanha – pessoa com deficiência intelectual e de desenvolvimento. Mas, a ela, todos chamam Chus.
Depois da reunião convocada pelo anúncio no jornal, começou a ganhar corpo uma ideia que há tempos rondava a cabeça (já sem cabelos) de meu avô. Essa ideia surgiu depois de uma viagem que ele fez a Valência, durante a qual entrevistou o presidente da Asociación de Personas Anormales (ele até gravou a entrevista, equipado com um gravador velho que anos mais tarde acabou danificado num incêndio). Assim, e depois de compartilhar suas experiências com os outros pais na tal reunião, nasceu o projeto: fundar na Galícia uma associação igual à de Valência. Um projeto que, a partir daquele momento, transformou-se no próprio sentido da existência de meus avós, e mudou a vida de centenas de crianças com deficiência. Mas não ia ser fácil. Longe disso.
Alguns pais abandonaram a corrida assim que foi dada a largada. “Não vou mencionar nomes”, diz minha avó, prudente, “mas sei de famílias que mantiveram os filhos trancados num quarto a vida inteira. Até pouco tempo atrás.” Sem querer justificar, cabe contextualizar. O que aqueles pais estavam prestes a fazer era um desafio para uma sociedade fechada, conservadora e, em grande medida, ignorante. Não sabiam quais seriam as consequências, e, em todo caso, previam sérios preconceitos. Aqueles meninos e meninas eram desprezados por muita gente, e meus avós, e os demais batalhadores que começavam a trilhar aquele caminho, iam sentir isso na própria pele. Apesar de tudo, a ideia de meu avô foi recebida com entusiasmo pela maioria dos pais.
Em sucessivas reuniões, criou-se a associação, redigiram-se alguns estatutos e foram nomeados dirigentes e consultores. Em seguida, decidiu-se o objetivo primordial: a necessidade mais urgente era fundar uma escola para que aquelas crianças tivessem a possibilidade de se integrar socialmente. O primeiro passo para que isso tomasse forma foi recorrer ao prefeito da cidade, que então respondia, como de resto as demais cidades da Espanha, ao regime do general Franco. “Havia muitos prédios desocupados na cidade, e então marcamos uma audiência para ver se ele nos cedia um para começarmos a associação.”
Sentados em seu gabinete, meu avô e outros dois pais lhe explicaram a iniciativa. A resposta do governador foi imediata: “Sabe o que eu acho? Que sua filha e os outros como ela devem ser levados para o Castillo de San Antón.” O Castillo de San Antón era uma antiga prisão de La Coruña. Meu avô congelou na cadeira, depois se levantou e saiu praticamente correndo, enquanto gritava para a secretária do prefeito: “Seu chefe é maluco!” Chorou só quando chegou em casa. A noite toda. “Sinceramente, acho que ele era uma boa pessoa, mas vítima de uma sociedade equivocada”, diz meu avô.
Após vários fracassos similares – outro político disse a meu avô que, a investir mil pesetas num projeto para crianças anormais, ele preferia acender um charuto com uma nota desse valor (e foi o que fez) –, veio o milagre. “É que foi mesmo um milagre”, reitera minha avó. “Eu estava trabalhando”, prossegue meu avô, “quando veio me visitar o Julio Casares Rivera.” Meu avô sempre diz nome e dois sobrenomes quando fala de pessoas da sua cidade. “Ele perguntou se eu podia ajudá-lo a vender a residência de seu pai, que acabara de falecer. Na época eu trabalhava na Secretaria da Fazenda e conhecia muita gente interessada em investir.” Naquele momento, meu avô viu com clareza: localizada bem perto do Centro da cidade, aquela casa poderia ser a sede perfeita para a escola. Negociaram e acertaram a venda por 2 milhões e meio de pesetas (15 mil euros).
Meu avô apanhou o casaco e foi até o escritório da Caja de Ahorros de La Coruña para pedir o crédito de que necessitavam. “O diretor do banco era o Antonio Lorenzo Pérez, que eu conhecia pessoalmente.” E eis o milagre. O que a priori ia ser um crédito mais que difícil, o que poderia ter sido outra desfeita a Chus e a crianças como ela, no estilo daquela do acendedor de charutos, virou o contrário. Dom Antonio Lorenzo Pérez tinha um filho deficiente e desconhecia o movimento que meus avós e outros pais estavam levando a cabo. O crédito foi concedido com entusiasmo, além do aporte pessoal de 300 mil pesetas e do compromisso de que os juros seriam doados pelo próprio banco. Fim do milagre. Havia um local.
Em 11 de maio de 1963, a escritura da casa foi assinada em cartório e ela começou a ser adaptada. “Eu me lembro daqueles meses como os mais atarefados e ocupados da minha vida. Precisávamos ter 26 horas no dia, em vez de 24”, explica meu avô. Pintaram todo o imóvel, ampliaram e reformaram a cozinha e compraram móveis de todo tipo. Entre eles, umas poltronas estofadas. “Teve gente que me disse que não fazia muito sentido ter poltronas estofadas, porque acabariam se estragando com a baba das crianças”, diz meu avô. “Mas era disso que se tratava: que aquelas crianças pudessem estar num lugar normal e aprendessem a viver nele.” Se considerarmos que as poltronas só foram substituídas quando ficaram fora de moda, passados muitos anos, pode-se dizer que o trabalho no colégio foi um sucesso.
Mais de um ano depois, chegou o dia tão esperado: em 14 de setembro de 1964, o centro educacional da Aspronaga foi inaugurado. Após uma obstinada insistência de meu avô – consciente do benefício midiático que aquilo traria –, compareceu ao ato ninguém menos que Carmen Polo, mulher do general Franco. No começo, quando ele tentou convidá-la, disseram-lhe que a experiência de ver aquelas crianças poderia ser muito dura para ela. Meu avô não se deu por vencido e voltou à carga repetidas vezes, chegando até a perguntar a um general, se a Senhora (como ela era chamada) ficasse impressionada com algumas crianças excepcionais, o que se podia esperar, então, da sociedade espanhola? O general olhou para ele, desafiante, mas anotou o pedido. No dia da inauguração, a Senhora compareceu e doou 60 mil pesetas. O Aspronaga era uma realidade. Tinham conseguido.
A jornada de trabalho de Chus termina às cinco da tarde. É a essa hora – depois de uma indispensável e generosa sesta – que Chus veste novamente o casaco e pega a condução de volta para casa. No ponto de ônibus, Eli está à sua espera – ela é uma assistente social contratada por meus avós para cuidar de minha tia, agora que lhes faltam as forças. Com Eli – que Chus considera uma amiga – ela dá um passeio, ouve música ou joga bingo.
Nessa tarde vão dar uma volta e Chus quer tomar sorvete. “Sorvete?”, minha avó se espanta enquanto lhe coloca o cachecol. “Não, Chus, está muito frio, sorvete hoje não.” E Chus olha para mim, depois para minha avó. “Não?” “Não. Outro dia, está bem?” “Tudo bem.” Eu dou força para minha avó. “Está um frio danado, eu não tomaria sorvete hoje nem que me pagassem.” Ela me olha de novo, arqueia a sobrancelha. “Nem eu”, fala.
Chus nunca se queixa, nunca reclama, nunca faz birra, nunca se irrita. Ela é a bondade em estado puro, sem artifícios, sem pretensões, a bondade inconsciente de si mesma. Antes de sair, senta-se um pouco a meu lado enquanto minha avó termina de me contar uma história que viveu poucos dias depois da inauguração do colégio.
Embora a meta tivesse sido alcançada, ainda havia muito a ser conquistado, muito para avançar. A maioria dos preconceitos continuava intacta. “Era de tarde e peguei um ônibus com Chus para voltar para casa. Subimos e nos sentamos ao lado de uma senhora”, relata. “A mulher olhou para Chus, levantou-se e foi sentar noutro lugar. Depois eu a ouvi dizer ‘mongoloide’.” Minha avó exala tristeza enquanto Chus e eu a escutamos. Eu compreendo o significado das palavras, Chus parece compreender a intenção delas, porque seu olhar, mesmo sem saber do que estamos falando, é triste, como se pudesse sentir o que acontece. Olho para ela e digo: “As pessoas são tremendas, né, Chus?” E ela me responde: “Tremendas.”
Essa capacidade de intuir o que está acontecendo sem compreender o que acontece é uma estratégia que define o caráter de Chus. Dadas suas limitações, Chus sempre reuniu um arsenal defensivo para superá-las. É raro, ou pelo menos era, vê-la bloqueada – ela sempre driblava o obstáculo, sempre conseguia evitar a queda num mundo que gira muito mais rápido do que ela. Às vezes com uma inteligência e um sarcasmo – galego – admiráveis. Se a gente lhe perguntava o que estava escrito em alguma placa e ela não conseguia ler, limitava-se a responder: “Você está cego?” Se não lembrava o que havia para o jantar, simplesmente dizia: “Para o jantar? Segredo.” E se simplesmente não entendia o que a gente estava lhe dizendo, ela cortava: “Não provoque.”
A história do ônibus foi uma das centenas de maus momentos que meus avós tiveram de passar, provavelmente como todo pai de cada criança deficiente daquela época. “Eu me lembro de uma vez, na arquibancada”, diz meu avô, fanático por futebol e torcedor do Deportivo, cujos gritos, quando os centroavantes perdem a bola, são lendários, “que uma senhora sentada atrás de mim xingou o juiz: ‘Debiloide! Vá para o Aspronaga!’” Meu avô se virou e lhe disse que tinha uma filha no Aspronaga e que não entendia o que o árbitro tinha a ver com aquilo. A mulher, decerto alheia a esse tipo de preconceito e simplesmente levada pela fervorosa excitação futebolística, pediu desculpas e lhe deu um abraço.
Foram precisos muitos anos até que a presença de Chus na rua não provocasse olhares constrangidos. E para que isso ocorresse, sem dúvida o crescimento do Aspronaga contribuiu de modo decisivo. Os pais envolvidos no projeto trabalharam loucamente para que o progresso fosse rápido. Durante o primeiro ano mimeografaram uma série de folhetos para divulgar o centro educacional – era assim que se fazia publicidade naquela época. Um desses folhetos está hoje na casa de meus avós. “Posso vê-lo?” A filipeta, que era espalhada pela cidade toda, contém a seguinte mensagem: “La Coruña pelo Aspronaga. Criança deficiente! De agora em diante você não estará mais sozinha.” Ocioso dizer que hoje em dia o slogan não funcionaria muito bem.
Meus avós começaram a dar palestras e a participar de reuniões. Falaram com pais, enfermeiras e médicos. Dedicaram a vida para expor à luz uma questão até então mergulhada na vergonha. As solicitações de matrícula logo superaram a capacidade da instituição. Às melhorias no colégio se uniu, com os anos, a inauguração de um centro laboral para adultos (chamado Lamastelle, onde Chus trabalha) e um centro assistencial para pessoas com deficiências muito profundas, que foi batizado de Ricardo Baró – homenagem a um dos pais que lutou para tornar realidade a ideia do Aspronaga.
O sucesso foi estrepitoso e se estende até nossos dias: hoje o Aspronaga – todas as suas unidades – funciona noite e dia. Centenas de crianças e de adultos sobem todo dia nos ônibus, entre eles Chus, agarrando-se com suas pequenas mãos às barras laterais para conseguir alcançar o assento sobre o qual se deixarão cair.
“Na verdade, não consegui fazer mais nada na vida”, diz meu avô. “Demos o sangue para isso.” Minha avó me olha. “Os irmãos”, ela me diz. “Os irmãos de Chus foram incríveis, o modo como cuidaram dela, como a protegeram. Nenhum deles jamais me perguntou o que a Chus tinha, nem quando eram pequenininhos. Simplesmente cuidaram dela, perceberam desde pequenos que tinham que fazer isso e pronto”, conclui.
“E em troca? O que a Chus deu a eles?”, pergunto. Eles ficam calados, não porque não saibam o que responder, mas porque têm isso claro: “Somos melhores. Ela nos tornou melhores.”
A conversa termina, fecho minha caderneta cheia de notas e rabiscos que são lembranças, feridas, vivências. Antes de chegar à porta, meu avô me chama, com prudência, como se receasse que o que vai dizer possa me chatear. “Se for escrever alguma coisa sobre isso”, diz sussurrando, “por favor não o faça de modo a parecer que nós queremos inspirar pena, ou que exageramos, nem nada disso. O que sempre quisemos para a Chus é simplesmente o mesmo que qualquer pai quer para seus filhos. Ponto.”
Na rua, Chus e Eli estão voltando do passeio. Amanhã ela vai madrugar de novo, esperar o ônibus e trabalhar. “Chus, vou escrever uma história sobre a sua luta e a dos avós, tudo bem?”, digo, sem a menor intenção de que me compreenda. Ela me olha, sorri e me diz com orgulho: “Não tomei sorvete.”
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