CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2022
Misericórdia!
O pastor de Michelle Bolsonaro reage – mal – à vitória de Lula
Thallys Braga | Edição 195, Dezembro 2022
Sob a chuva fria que caiu no Rio de Janeiro na quarta-feira de Finados, uma multidão vestida de verde e amarelo clamava por intervenção militar em frente ao Comando Militar do Leste, no Centro. Desde que perdera a eleição, Jair Bolsonaro deixara órfãos seus seguidores inflamados: pronunciara apenas 210 palavras em público, num discurso que durou dois minutos e um segundo. A cerca de 40 km da manifestação, Josué Valandro de Oliveira Junior, o pastor da primeira-dama Michelle Bolsonaro, apresentava sua infelicidade no culto que conduziu na sede da Igreja Batista Atitude, na Barra da Tijuca.
“Sem sombra de dúvida, esta é uma semana muito esquisita”, disse ele em tom de lamento, quando subiu ao altar. “Mas, às vezes, é andando para trás que a gente pega o maior impulso. Oramos, pedimos a Deus, fizemos a nossa parte por tudo que envolve a nação. Agora é hora de continuar trabalhando para Jesus.”
O culto daquele 2 de novembro – o primeiro celebrado na igreja de Valandro depois da vitória de Lula – estava esvaziado. Os fiéis espalhados pelo templo não preencheriam sequer uma das seis longas fileiras de assentos da igreja. Estavam quase todos vestidos em cores escuras: preto, cinza, azul-marinho. Valandro era um dos poucos de verde.
Nos corredores, a conversa ia de temas triviais ao Apocalipse: falava-se de filhos gripados, de sobrinhas com casamento marcado e de cristãos cujos dias de liberdade estariam contados. “Agora que eles ganharam, vão começar a prender os evangélicos. O primeiro vai ser o Crivella”, disse uma senhora baixinha, no que a amiga colocou a mão no peito e exclamou: “Misericórdia!”
No microfone da igreja, nenhum político foi mencionado pelo nome – e nem precisaria ser, já que os líderes da Atitude se comunicam por metáforas. Depois de um curto discurso de abertura, Valandro anunciou que estava de folga e convidou o casal Camila e Felipe Freitas a fazer a pregação da noite. O pastor da primeira-dama sentou-se numa cadeira ao lado do palco, com cara de tédio, e se pôs a mexer no celular.
“Meus irmãos, estamos em tempos difíceis. O inimigo tem feito estrago nas nossas famílias”, começou Felipe, erguendo e baixando a cabeça, sem saber se olhava para a plateia ou se lia seu texto. A pastora Camila, mais segura de si, consolou os presentes: “A batalha não está perdida. Não se desespere.” Valandro pareceu ter sido tocado pela mensagem. Retirou os olhos do telefone, ergueu o braço direito aos céus e sussurrou: “Aleluia.”
Três dias antes, no domingo do segundo turno, a igreja estava cheia de gente vestida de verde e amarelo. No culto matinal, Valandro deu o recado: “Nunca pedi voto aqui. Nas redes sociais da igreja, nada de política foi feito. Que Deus tenha misericórdia da nossa nação e que você exerça o seu voto diante do teu Deus. Que Ele veja o teu voto e fale: ‘É isso que eu queria. É isso que eu aprovo.’”
O pastor da primeira-dama tem 53 anos e é branco, alto e atlético. Mantém a coluna sempre ereta e o peitoral estufado. Intercala frases de efeito com períodos de silêncio, o que confere uma inflexão professoral a seu discurso. “A igreja não tem candidato, mas o Josué tem”, prosseguiu. “E ninguém vai me calar.” No culto das sete da noite, no domingo do segundo turno, assim que soube da vitória de Lula, ele subiu aborrecido ao altar da igreja. “Não quero ninguém chorando, lamentando nada”, disse ao microfone, andando de um lado para o outro. “Agora, se você votou no lado do mal, fique feliz: você vai ver o que é bom.”
O “candidato do Josué” não pode ser outro senão o presidente que conferiu ao pastor a maior honraria da diplomacia nacional. Há um ano, Valandro foi agraciado por Bolsonaro com o título de comendador da Ordem de Rio Branco, oferecido a brasileiros que se destacam por serviços prestados ao país – embora, oficialmente, o pastor não preste serviço algum à administração pública.
A terceira esposa de Bolsonaro começou a frequentar a sede da Atitude em 2017, depois de deixar a igreja liderada por Silas Malafaia. Michelle se tornou intérprete de Libras da Atitude e logo levou o marido à igreja. Na campanha eleitoral de 2018, o casal subiu ao altar para ouvir, de joelhos, uma oração de Valandro. O episódio rendeu ao pastor denúncias por propaganda eleitoral irregular, que foram arquivadas pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro.
Eleito presidente, Bolsonaro voltou ao templo, onde chorou com o discurso de vitória feito pelo pastor. Nos quatro anos de mandato do marido, Michelle raramente visitou a igreja da Barra da Tijuca, mas não se afastou do líder religioso. Ela instalou uma célula da Atitude dentro do Palácio do Planalto. Vez ou outra, encontrava maneiras de levar Valandro até Brasília no avião presidencial.
Ao longo da campanha deste ano, Valandro afirmou reiteradas vezes que sua igreja não apoiava qualquer candidato. As ações da Atitude desmentem essa alegação. A três semanas do primeiro turno, a Atitude lançou uma campanha de “jejum pelo Brasil”, divulgada no Instagram com uma foto de Valandro segurando a bandeira nacional.
Os fiéis eram aconselhados a ficar sem comer por doze ou dezoito horas, ou a renunciar a uma refeição, enquanto oravam pelo futuro do país. Em um culto dominical a 21 dias do primeiro turno, o pastor convocou sete candidatos ao Poder Legislativo e orou pela eleição deles no púlpito. No mesmo dia, fez uma chamada de vídeo com Bolsonaro, que foi reproduzida no microfone da igreja. Dos oito candidatos que receberam as preces do pastor, um foi eleito, Otoni de Paula (MDB-RJ).
“O que vocês acharam do resultado da eleição?”, perguntou a piauí para alguns fiéis que deixavam o culto no Dia de Finados. Cinco pessoas responderam que Valandro as aconselhara a não falar com a imprensa. O pastor foi procurado, mas também não quis fazer comentários. A secretaria da igreja disse à reportagem que os fiéis são livres para dar depoimentos a quem quiser.
Um homem grandalhão, na casa dos 40 anos, fechou a cara ao escutar a pergunta. “Você não tem vergonha de sair da tua casa para tirar a paz do povo de Deus?”, retrucou, antes de sair em direção a uma barraquinha de yakisoba. No pátio da igreja, há também lanchonetes que servem pastel, churrasco e salada de frutas, além de uma cafeteria.
O comércio reflete a afeição de Valandro e de sua família por gastronomia. A mulher e os dois filhos do pastor usam as redes sociais para descrever suas experiências em restaurantes caros do Brasil e do exterior. A família viaja muito: nos últimos cinco meses, visitaram Itália, Reino Unido, Suíça, Luxemburgo e Estados Unidos.
O pastor de Michelle Bolsonaro menciona as viagens nos seus sermões dominicais, sempre em tom jocoso. Só engrossa a voz quando fala aos fiéis daquilo que “ameaça o futuro da nação”: ideologia de gênero, sexo entre dois homens, maconheiros, ex-presidiários e o “fechamento de igrejas”. Nessas semanas tão esquisitas, ele esqueceu de mencionar outras tribulações que vêm assolando os brasileiros, como a fome e a miséria.