Misoginia e sadismo na Zona da Mata
Cláudio Assis defende o seu Baixio das Bestas
Autor Anônimo | Edição 8, Maio 2007
Na madrugada da última terça-feira do mês passado, Raquel Cristina, de 18 anos, foi morta a tiros quando voltava para casa com um amigo. Ela morava em Afogados da Ingazeira, no interior de Pernambuco. A polícia suspeitava de que a jovem tivesse sido assassinada pelo namorado ciumento, que matou também o amigo que a acompanhava. Pelas contas do Fórum de Mulheres de Pernambuco, Raquel foi a 96ª mulher assassinada no Estado nos quatro primeiros meses de 2007.
Como explicar que a violência contra mulheres bata recordes em Pernambuco? Como dar forma artística ao horror de sociedades patriarcais e machistas?
Baixio das bestas lida com as duas questões. O filme, que se passa na Zona da Mata pernambucana, mostra o horror com agrado e crueza. Ele conta a história de um avô que, em troca de dinheiro, exibe uma menina de 14 anos nua, para que uma platéia de machos se masturbe. A menina é, simultaneamente, sua filha e neta. Outro entrecho expõe os divertimentos de um grupo de jovens ricos da região. Eles são exibidos, longamente, em nu total, coçando a genitália. Num cinema abandonado, estuporados, bebem, fumam maconha e gritam obscenidades. Um aparece pisoteando a cabeça de uma prostituta. Outro, enfiando um toco de madeira numa mulher. Outro, estuprando uma adolescente. São cenas realistas, iluminadas com esmero detalhista. Os personagens são de dois tipos: moderadamente estúpidos ou escarradamente boçais.
O filme é tão repulsivo, tão estúpido, tão abjeto, que dá até vontade de interpelar quem o concebeu, o auteur pernambucano Cláudio Assis, diretor de Amarelo manga. Marcou-se um almoço na Casa da Suíça, restaurante antigo e simpático no decadente bairro da Glória, no Rio. Assis chegou um pouco atrasado. Com 46 anos, vestia o uniforme dos adolescentes filhinhos-de-papai: jeans, camiseta estampada fora da calça e boné enterrado na testa. Demonstrou também os modos (estudadamente) mal-educados de um púbere mimado, pois almoçou sem tirar o boné e pontuou todas as frases com palavrões. Pediu um steak tartare, que nunca havia provado.
Como era de se prever (em se tratando de um pernambucano macho paca) adorou o prato de carne crua. Como também era de se imaginar, Assis se disse um artista de esquerda. Na juventude, chegou a freqüentar uma organização comunista. “Saí do partido porque não queriam que eu fumasse maconha, bebesse e falasse palavrão”, afirmou. “Ora, eu sou um homem do povo, bebo e falo palavrões.”
Informou que seu filme tem dupla intenção: denunciar e provocar debate. Debatamos, pois. Foi com amolação que ouviu o argumento de que Baixio das bestas se compraz em mostrar a nudez da garota Auxiliadora, interpretada pela atriz Mariah Teixeira (que é maior de idade, mas parece uma adolescente). O cineasta não se agüentou, e interrompeu: “Mas eu quis mostrar o que é a exploração!” Mas, então, por que a câmera se deleita em exibi-la, durante um tempão, tomando banho de rio, só de calcinha? “Porque eu precisava mostrá-la no espaço dela”, respondeu. Ficou definitivamente agastado quando lhe foi dito que a cena é uma exploração, é manipulativa, baixa e resvala na pornografia de inspiração pedófila. “A pedofilia está em você”, atacou. Assim, não há debate intelectual que vá adiante. Briga de homem cheira a sangue.
Cláudio Assis insistiu em defender sua oeuvre. Falou que, por mostrar plantação, colheita e moagem de cana-de-açúcar, Baixio das bestas é um ataque à “civilização do etanol” (como se a justaposição mecânica de bestialidade e produção econômica fosse cinema épico). Revelou que, “por pudor”, exibiu apenas sombras da seqüência do estupro de uma prostituta com um bastão (o que a tornou ainda mais grotesca). E contou que uma cena de “homossexualismo explícito” que estava no roteiro virou uma “sugestão” no filme pronto (ou seja: as mulheres pobres podem ser humilhadas com estrondo e escândalo, mas machos pederastas, desde que ricos, devem ser focalizados com pudicícia). Explicou que ao filmar as surubas dos “agroboys” num cinema abandonado e aos pedaços, quis fazer uma crítica ao cinema brasileiro atual, “que não tem nada a dizer”.
O cineasta, que tomou duas taças de vinho, parecia feliz da vida com o que tinha a dizer, no filme e no almoço. Motivos para satisfação não lhe faltam. Baixio das bestas ganhou meia-dúzia de prêmios no Festival de Brasília e um no de Roterdam, na Holanda – e em ambos foi considerado o melhor filme. É sinal de que quem se refocila no sadismo misógino está sintonizado com o imaginário perverso dos tempos que correm.
Pobre Raquel Cristina, que vivia na realidade.