ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Missivistas contumazes
Leitor também tem opinião, gente
Tatiana Bandeira | Edição 9, Junho 2007
Um dos desejos de Maria de Lourdes Medeiros, de 85 anos, é que o neto escreva cartas para jornais. Seria um modo de garantir a transmissão do legado e de passar adiante a tradição. Desde 2002, ela enviou mais de 150 opiniões escritas à mão para a seção de cartas de periódicos gaúchos. Sua produção vem se acelerando a cada ano ─ atualmente, são três cartas por semana, sem contar as que envia para políticos e instituições públicas. Cuidadosa, antes de cada ida aos correios ou à caixa de coleta postal, ela ligou para os destinatários e os avisou da chegada iminente da missiva. A dona-de-casa está convencida de que opinião é moeda que faz diferença. Marcelo, 21 anos, o neto em questão, desconversa. “Estou com outros projetos”, diz, acendendo um cigarro. Maria de Lourdes suspira, mas não se desespera. Ainda há esperança. Além dos outros netos, há os sete bisnetos. O que não a impede de ralhar com o rebelde, que se recusa a escrever cartas à redação para não encolher o tempo que dedica à universidade, onde estuda biologia. “Ah, se eu fosse tua mãe!…” Na família, ela tem um irmão, Huldo ─ “com agá” ─, que também é escritor contumaz de cartas.
Sentada num café de Porto Alegre, Maria de Lourdes espeta o dedo no ar e declara não ter pejo de meter o pau em todo o mundo. Acabara de receber a resposta de uma carta enviada à deputada federal Manuela D’Ávila, do PCdoB. “Não é que eu seja do contra. É que eu gosto do que é direito. Disse a ela que largasse do pé do Bush e se concentrasse nos problemas nacionais”, esclarece a ex-udenista e ex-pefelista, enquanto se abana com uma carta. Marcelo retira da mochila três pastas azuis, repletas de correspondência enviada, respondida e publicada. O material pesa em torno de sete quilos. O neto é responsável pela digitação e a catalogação do material. A avó é assinante do jornal O Sul e lê o Zero Hora e o Correio do Povo de graça, num hotel cinco estrelas em frente ao prédio onde mora sozinha.
Maria de Lourdes conta que escreveu para presidentes da República, vices e primeiras-damas. Na lista dos dez mais, aparecem Sarney, Fernando Henrique, Ruth Cardoso, Lula e José de Alencar. Este último foi alvo de uma carta mal-humoradíssima, na qual recebeu um pito em regra por aventar a hipótese de mudar o Hino Nacional. Ainda que a informação fosse suspeita, pelo sim, pelo não, Maria de Lourdes decidiu se manifestar. “Eu sou do tempo em que as pessoas eram patriotas. Que história é essa de mexer no ‘Deitado em berço esplêndido’?” Suas broncas não discriminam ninguém; dirigem-se a pessoas, órgãos do governo (federal, estadual ou municipal), empresas privadas e entidades internacionais. “E a Unicef? Que pouca-vergonha! Nunca responde e nunca tem dinheiro.”
Outra pendenga foi com o senador Jefferson Peres, do PDT, que respondeu a uma carta de Maria de Lourdes com um telegrama azedo, sem medo de dedo em riste: “Como a senhora mesma diz, eu sou um senador corrupto e esclerosado, que recebe milhões do narcotráfico. Por isso, não perca seu precioso tempo escrevendo para mim. Com os cumprimentos, senador Jefferson Peres”. Hoje ela se diz amiga íntima de Peres, embora não concorde com a legalização das drogas, uma das bandeiras do senador. Não seria bom para a integridade da família.
No café, Maria de Lourdes tem agora a companhia de Antonio Brás Constante, de 36 anos. Constante batuca os dedos na mesa, à espera de ser interpelado. Bancário, dois filhos pequenos, formado em ciências da computação, calva que já se insinua, ele se considera escritor. Faz jus ao sobrenome. Em 2003, com assiduidade notável, começou a mandar para jornais o resultado de sua faina. Como seus contos e poesias eram rotineiramente rejeitados, resolveu se dedicar com afinco às crônicas. Nunca escreveu para o pequeno espaço reservado às cartas. Nem precisou, pois ganhou latifúndios (não remunerados) em meia dúzia de jornais gaúchos, catarinenses, paranaenses, capixabas, mato-grossenses-do-sul e roraimenses, que passaram a publicar rotineiramente suas crônicas e versos. “Olha só… Ele é nacional, é completo!”, exclama Maria de Lourdes, logo emendando que, mesmo se ficasse parada a noite inteira olhando a lua, não arranjaria inspiração para fazer versos. “Nem duas palavras que rimem”, lamenta com um segundo suspiro.
Laureado com o primeiro lugar, categoria crônica, num concurso literário realizado por uma fundação de Canoas, onde mora, na região metropolitana de Porto Alegre, Constante recebeu a honraria de ser publicado numa coletânea. Ele quer mais. Deseja ter um livro só dele, não importa o gênero, conto, poesia ou crônica. Constante garante ser capaz de ler cinco livros em um mês, mas também pode passar anos sem ler nada ─ depende. Sua última investida no mundo da literatura dos outros data de 2005. Foi o Código Da Vinci, traçado durante uma greve de bancários. O horário preferido para polir suas “pérolas textuais”, como ele as intitula, é entre 5 e 7 da manhã. Calcula já ter enviado mais de cem textos para no mínimo 200 veículos.
Um terceiro escritor chega ao café. A passos miúdos, um homem de 79 anos se junta ao grupo. Em quatro ou cinco envelopes, traz algumas das cartas que escreveu nos últimos tempos. Poucas, considerando o que ficou em casa, mais de dezoito pastas cheias de recortes. “Esse Djalma é o Beyer?”, pergunta Maria de Lourdes, acusando o fato de que monitora nomes alheios que aparecem com regularidade nas seções de cartas. Ele não ouve. Usa aparelho auditivo; é preciso sempre falar mais alto. Aposentado, o ex-professor de inglês e ex-vereador é famoso nas seções de leitor, para as quais despacha contribuições desde 1971. “Sabes, no momento estou apaixonado pelos grandes vultos da humanidade”, informa. Recorda Castro Alves, declama Vozes d’África, sob os aplausos de Marcelo e da avó. Seus temas prediletos, além do poeta abolicionista, são gente como PC Farias, Pasteur e polêmicas contemporâneas, como a clonagem. Na tentativa de furar a quarentena de trinta dias imposta pela maioria dos jornais ─ para refrear compulsões epistolares ─, Beyer chegou a adotar uns sete ou oito pseudônimos. A estratégia deu certo, até começarem a exigir que as cartas viessem acompanhadas de RG, endereço e telefone. Para horror de Maria de Lourdes Medeiros, Antonio Brás Constante e Djalma Beyer, a face pública da obra dos missivistas compulsivos foi drasticamente reduzida. Eles acham que é uma injustiça.