Gostaria que Paris se entregasse a mim sempre como no primeiro dia. Estou aqui há quatro meses: mas cheguei ontem de noite, chegarei outra vez esta noite. Amanhã será meu primeiro dia foto: PIERRE BOULAT_TIME LIFE PICTURES_GETTY IMAGES
Misteriosa entrega e mudança de si mesmo
A imersão do autor de O Jogo da Amarelinha nos labirintos secretos de Paris – percorrida a pé, de bicicleta, numa Vespa, em ônibus ou metrô −, que ele confrontou com a sua íntima experiência de Buenos Aires, onde despertaram a sua sensibilidade, o seu imaginário, o seu amor pela literatura
Davi Arrigucci Jr. | Edição 58, Julho 2011
A principal qualidade destas cartas é a de nos devolver a voz genuína do grande escritor Julio Cortázar. Depois de longa temporada no inferno, na qual Cortázar teve de se submeter não apenas àquela cota de esquecimento e indiferença em que costuma cair a obra de grandes autores após a morte, mas até a equívocos jornalísticos que quase o transformam, à semelhança de R. L. Stevenson, em um escritor para adolescentes, o criador de O Jogo da Amarelinha e de alguns dos melhores contos latino-americanos do século XX volta de corpo inteiro.
A abertura de baús post-mortem nem sempre é propícia à memória de um escritor e raramente traz novidades reais que possam mudar sua fortuna crítica. Ao contrário, em geral serve apenas a interesses comerciais e argentários de herdeiros e maus editores, quando não empetecam obras completas de notas e páginas inúteis que só desviam a atenção do essencial. Julio teve a sorte de ter a seu lado, durante longa parte de sua existência, nos anos finais e ainda depois de sua morte, a presença de uma figura extraordinária, a de sua primeira mulher Aurora Bernárdez. Essa grande tradutora, cuja sensibilidade e senso crítico fizeram dela uma leitora privilegiada de seus escritos iniciais, e um porto seguro em seu caminho a vida toda, tornou-se também por fim uma curadora especial de sua obra: soube cercar-se de pessoas competentes, como Carles Álvarez Garriga, para dar sequência às publicações póstumas, tratadas com tirocínio e aparato adequados.
Creio, porém, que de tudo quanto foi publicado até agora nada tem a importância dessas cartas. Os textos narrativos de O Exame Final, La Otra Orilla ou dos Papéis Inesperados, por exemplo, pouco acrescentam às obras principais do autor publicadas em vida, embora contenham algumas páginas valiosas e, sobretudo, constituam os passos reveladores da história da aprendizagem de um narrador. Revelam erros entre acertos, titubeios e lacunas de sua prosa ficcional no processo de afirmação de um estilo, além de indiciarem a gênese de motivos, temas, situações e ideias que só receberam tratamento pleno e apropriado nas obras maduras do escritor.
Textos críticos, por outro lado, como o livro sobre John Keats, de que há muitas referências nas cartas, assim como várias intervenções pontuais sobre tópicos e autores que lhe interessaram durante sua carreira, trouxeram decerto elementos relevantes para a compreensão da poética e da prática narrativa que Cortázar foi exercendo através dos anos. É o que se vê, por exemplo, pelo conceito de “ubiquidade dissolvente”, que tantos desdobramentos teve no interior de sua obra ficcional, e que foi tomado precisamente de Keats para definir o modo de ser do poeta como uma espécie de camaleão movido por uma ânsia de viver que o leva a amoldar-se mimeticamente ao modo de ser de outro a cujo espaço se transporta com facilidade a ponto de nele se fundir, adotando pelos olhos alheios outro modo de olhar. Ser que anseia ser, o poeta seria capaz dessa posse do outro pela linguagem, perseguidor radical de uma plenitude ontológica que o obriga à busca e à rebeldia diante de um mundo degradado que não corresponde às suas aspirações.
Contudo, essas páginas de ficção e crítica em obras póstumas estão longe da importância extraordinária das 126 cartas, treze cartões-postais e um recorte publicitário que Julio enviou, entre fevereiro de 1950 e fevereiro de 1983, a seu ex-colega de escola normal Eduardo Jonquières, poeta e pintor casado com María Rocchi, guardiã e também destinatária das cartas, assim como Mariclo, filha do casal. De todo esse acervo se dá aqui uma breve, mas substancial amostragem, em excelente tradução de Josely Vianna Baptista. Por ela é possível acompanhar aquele fundo anseio de vida que o autor descobriu na concepção do poeta de Keats, e transformou também num modo próprio de mudar para se entregar ao mundo: um processo de metamorfose pessoal de que essas cartas dão um palpitante testemunho.
Basta bater os olhos nessas páginas para se ter ideia da alta qualidade, da contundência da prosa e de sua versatilidade diante dos diferentes interlocutores, graças à notável maleabilidade de suas frases de hausto longo e ampla passada, deslizantes, sinuosas e inclusivas, onde sempre cabe muito de tudo. Da intensidade das emoções que elas exprimem, da riqueza de informações que registram – sobre literatura, artes plásticas, teatro, música e cinema –, são inúmeras as referências às leituras, às visitas a museus, a obras de arte específicas e às obras do próprio punho, como as trabalhosas 2 mil páginas de Poe que traduziu.
Mas aí também se fala muito sobre cidades, países, relações humanas (as relações familiares, com a mãe, a avó, tias e muitíssimos conhecidos e amigos, além dos Jonquières), vida cotidiana com suas alegrias e dificuldades (inclusive as de saúde, dinheiro ou banho), sobre fatos biográficos, sobre a história intelectual argentina e latino-americana. Pode-se avaliar assim em profundidade, pela imensa quantidade de pormenores concretos e precisos, a espessura da complexa experiência que nelas se transmite por força desse dom de si que Borges considerou a primeira das paixões argentinas: a amizade.
Elas constituem desde já a melhor biografia de Cortázar e de Aurora durante o longo período em que conviveram, a partir dos anos de 1950, sobretudo após seu casamento em 1954. Em 1950, o escritor deixa a Argentina – só agora ficamos sabendo com todas as letras a verdadeira dimensão do mal-estar que o advento do peronismo, em 1946, significou para ele até sua saída em 1950, quando passa pela Itália antes de se fixar definitivamente em Paris, em 1951. Contos como “A banda”, de Final de Jogo, deixavam entrever, sem dúvida, a grave situação da Argentina com a irrupção do populismo com traços fascistas naqueles anos. Mas não havia um documento explícito da atitude do escritor diante da realidade do país que iria abandonar em seguida.
Pouco se sabia também desses primeiros tempos de exílio voluntário na Europa. Na verdade, nada sabíamos do processo interno e mais íntimo de assimilação do vivido durante a fase europeia da formação do grande escritor, que foi aos poucos concretizando a viçosa promessa do jovem autor que deixara com dificuldades a terra natal, impregnado de informação livresca e sonhos.
Agora se pode ver em detalhes concretos e profícuos o percurso interno de sua vida intelectual, do desabrochar de sua sensibilidade artística e da radiosa superação das dificuldades íntimas de comunicação com o mundo até uma plena entrega de si ao outro, ao mesmo tempo que vai afinando o olhar crítico em renovadas descobertas do universo da arte e das distintas formas de vida do cenário europeu, que conhece em sucessivas viagens internas pela Europa e ao longo da permanência em Paris.
Aí se observa, sobretudo, a profunda imersão de Cortázar no universo parisiense, nos encantos e labirintos mais secretos da cidade em que escolheu viver – percorrida de ponta a ponta, a pé, de bicicleta, numa Vespa, em ônibus ou metrô − e que pôde confrontar todo o tempo com sua saudosa e íntima experiência de Buenos Aires, onde despertaram a sua sensibilidade, o seu imaginário, o seu amor pela literatura.
Do lado de lá, do lado de cá, de toda parte as cartas dão notícia desse ser humano ímpar, alto e apaixonado, que tudo queria ver com olhos assombrados da primeira vez, e se curvava a cada passo diante das pequenas coisas que descobria pela ardente ternura com que as olhava e pela misteriosa capacidade de entrega e mudança de si mesmo que fez dele o verdadeiro poeta à maneira de seu tão amado Keats.
***
Paris,
24 de fevereiro de 1952
Meu caro Eduardo:
É noite de domingo, e estou descansando um pouco, sozinho em meu quarto, depois de uma semana cheia de coisas, idas e vindas, experiências curiosas, “quebradas de cara” e grandes maravilhas. Há um silêncio imenso na Cité porque é meia-noite, os últimos grupos de estudantes se dispersaram, e os rádios – um ou dois – do meu andar emudeceram. Tenho aqui comigo um gatinho, que preciso alimentar e abrigar esta noite, pois é o filho coletivo dos moradores do 3º andar. (Há uma semana eu o salvei de morrer gelado na neve, e em reconhecimento o dito-cujo lambeu de tal maneira um pulôver meu que estava ao pé da cama que o estropiou para sempre.) Acho que há exatos dois anos eu estava em Veneza, prestes a vir para a misteriosa Paris. Já estou aqui há quatro meses e, ontem à noite, ao fazer um balanço mental desse período, percebi a familiaridade incrível com que me movo neste mundo. É aí que está o perigo. É agora que devo vigiar minha visão, a forma de me colocar diante de coisas que venho conhecendo cada vez melhor; é agora que devo impedir que os conceitos escamoteiem minhas vivências. Seria terrível (não me aconteceu, por sorte) eu ter um dia que passar às pressas diante de Notre-Dame e só dar aquela olhada distraída que se dedica a bancos ou a casas para alugar. Quero que a maravilha da primeira vez seja sempre a recompensa para o meu olhar. Posso me dar ao luxo de passar perto do Museu Cluny e pensar comigo: “Vou entrar outro dia.” Mas entrar ali tem de continuar sendo uma coisa séria, última, o motivo verdadeiro de minha presença em Paris. Nós rimos dos turistas, mas juro que eu quero ser turista em Paris até o fim, ser o homem que anota na agenda: quinta-feira, ir ver o São Sebastião, de Mantegna… É horrível perceber a cada minuto como as faculdades intelectuais empiétent[1] sobre as intuições puras, tentando esquematizar o mundo… O cruel de Buenos Aires é que ela é muito mais matéria intelectual do que estética, e apressa esse processo horroroso de cristalização de um homem. Por isso os argentinos são gente de tanto “caráter” (!), de tanta “personalidade” – repertórios de ideias definitivamente fixas, congeladas, sem movimento possível. Todo mundo lá tem sua opinião sobre as coisas, mas você há de concordar comigo em que basta opinar sobre uma coisa para, ato contínuo, deixar de vê-la. A ideia de Wilde em seu Retrato do Sr. W. H. é realmente profunda: se no ato de provar que uma coisa é A ou B irrompe de repente uma angústia terrível e uma sensação de descrença total no que se afirmou, isso se deve ao fato de que todo homem inteligente e sensível sabe que uma prova é sempre outra coisa, que absolutamente não afeta a realidade essencial daquilo de que se fala. Eu gostaria que Paris se entregasse a mim sempre como a cidade do primeiro dia. Estou aqui há quatro meses: mas cheguei ontem de noite, chegarei outra vez esta noite. Amanhã será meu primeiro dia em Paris.
Comecei a ir ao Louvre, depois de um repentino ataque de raiva por meu condenável mandarinismo. Fui com uma alegria de criança, entrei por aquela porta do Carrousel e me dei ao luxo de passar um bom tempo no hall de entrada, olhando livros e cópias… depois atravessei a Galerie Daru, e lá de baixo vi a Vitória de Samotrácia com toda a sua túnica ao vento. Levava grandes mapas exploratórios (em 1950 estive só dez vezes, de maneira que só conheço algumas seções), mas quando desci pela escadinha da esquerda e me vi diante da Hera de Samos e dos Apolos arcaicos… pronto. Já estive lá três vezes, e não saio das salas gregas. Ontem de tarde o sol iluminava os mármores, vi uma cabeça de atleta com o nariz e os lábios transparentes, como se fossem de mel. E o Apolo Sauróctono brilhava como se a luz brotasse de dentro dele. (Ah, mas antes de ir embora fiz uma travessura: desci correndo até as salas egípcias e fui olhar a deusa dentro do nicho, aquela que iluminam com “luz negra” e que gela meu sangue.)
Já fiz a primeira gravação para as Actualités. Sou um péssimo speaker, pois meus erres fazem o coitado do gravador pular, mas parece que dá para entender muito bem o que digo, ao contrário do que ocorria com o sujeito que estou substituindo. Não acredito que esse trabalho vá durar mais de dois meses, mas são alguns francos facilmente ganhos. E vou conhecendo pessoas curiosas: um grego, um árabe, um chefe de som que fala o argot mais invejável da terra.
Estou muito contente de saber que saiu “El juicio”. Pepe me mandou três números de Sur, mas falta o último; espero vê-lo muito em breve. E seus poemas, vai fazer o livro este ano? Já encontrou o título? Cada dia gosto mais de Georg Trakl. Tenho uma amiga que lê para mim em alemão e depois me traduz linha por linha. Temos muitos poemas de Trakl, ele nos parece um poeta muito intenso. E agora este finalzinho de carta eu dedico a María. Quero dizer novamente que você fez muito bem em me escrever daquele modo, e que não há motivo para se desculpar. Se minha memória continua fiel, no próximo dia 27 você vai somar mais um ano a sua vida. Beberei por você uma grande taça de Beaujolais num bistrô da rue du Cardinal Lemoine, ao lado da place de la Contrescarpe. Gosta disso como presente de aniversário?
Um abraço bem grande, e que esta o encontre bem,
Julio
María querida:
Como Roma é linda, toda amarela, toda ocre, toda cheia de telhados quadrados com uma pontinha que mal se destaca no meio, e repleta de italianos que invadem as ruas com as mãos e a voz, falam e estão contentes (ou tristes, não sei, mas todos parecem contentes), e de repente numa viagem qualquer você encontra um monte de gatos, e percebe que Roma é também um grande gato amarelo, que de dia anda devagarinho fantasiado de Tibre, e de noite se enrosca e dorme e é o Coliseu. Depois deste exemplo de prosa poética ruim, acrescento que estamos aqui há menos de dois dias, mas que isso já foi suficiente para que embolsássemos uma imensa dose de felicidade. Compramos duas xícaras para café com leite na Upim,[2] da via del Tritone. São brancas, com listas azuis e verdes. Valem 125 liras com o pires. São lindas e bem grandes. (Aurora não me deixa escrever, me fala o tempo todo de blusas e combinações, e outras roupas mais ou menos íntimas que acabou de ver na via delle Quattro Fontane, e que são tão baratas, tão lindas, tão engraçadinhas etc. etc.) Esta manhã, com um sol morninho e um céu aberto, entramos em Santa Maria Maggiore para ver os mosaicos. Não lhe direi nada sobre eles porque você os conhece e porque o repertório da admiração vale menos que o silêncio. Mas como um princípio de conhecimento de Roma, que beleza! Sabe, o que acontece com Roma é que nela a gente logo se sente à vontade; é como um vilarejo (que mundo pequeno!), e tudo está ali, quietinho, esperando. Ontem estávamos vendo uns garotos brincando entre as pedras do Fórum de Augusto, e pensei em seus filhos, imaginei-os brincando entre as pedras do Fórum de Augusto. As lembranças são como os álamos daqui, sempre próximos das colunas, dos lugares bonitos. E depois você, que fala italiano, que conhece tudo isto, deve ver tudo com mais intimidade do que nós.
Acho que vamos nos dar muito bem em Roma. O sabor da comida nos agrada (é mais gostosa e farta que a francesa, mas carregada de reminiscências argentinas, pelos molhos e pelas massas). Adoramos os cappuccinos, os caffè latte. Gostamos de tudo, até do prédio do Correio. Ontem o facchino[3] que me roubou 200 liras para carregar três malinhas por alguns poucos metros redimiu-se de seu roubo me chamando de reverendo. Aurora se jogava no chão de tanto rir. Só a vi rir assim mais uma vez: quando me ouviu falar em italiano com a dona do hotel. Ela ria de tal maneira que quase fomos expulsos. Veja só, estou casado com uma mulher impossível. Eduardo deixaria você rir dessa forma? Seja franca e me responda, para que eu ajuste minha conduta à de vocês.
Aurora lhe manda um grande abraço e pede que dê um beijo nas crianças por ela. Outro beijo meu (dois para a dona do pedaço). Ciao, María. Com todo nosso afeto, e um abraço,
Julio
Roma,
9 de dezembro de 1953
Meu caro Eduardo:
Sejamos metódicos, vamos resumir, organizar o pequeno caos de nossa vida. Você me escreveu no dia 7 de novembro anunciando a remessa do dinheiro, e acrescentou a reconfortante frase: “Imagino que você já deve tê-lo recebido.” Isso aconteceu, vou repetir para enfatizar o “suspense”, no dia 7 de novembro. Até o dia 20, o socorro ainda não tinha chegado. Foi então que, da cama e com uma asma bárbara, eu lhe escrevi três páginas, uma sobre bens, outra com notícias, outra com um poema chamado “Los dióscuros”. (Este detalhe vai para o caso de a carta ter se perdido.)
Como nos contos, passou-se o dia 20, o dia 21, o fim do mês chegou e… só o silêncio profundo desse instrumento tão celebremente sonoro que é a lira. Não ouvíamos liras em nenhum lugar. As liras estavam caladas. Estavam mais forradas e cobertas de pó que a famosa harpa de Bécquer. Chegou dezembro e com ele a aflição. (Tudo isso é divertido contado a posteriori, mas só a posteriori.) Fizemos um grande balanço: restavam-nos 36 mil liras. Pouco dinheiro para Roma, believe me. Esperávamos incéssamment sua carta. Aqui elas são distribuídas às terças e às sextas-feiras. Passou-se uma terça… passou-se uma sexta… Niente da fare. Eu relia sua primeira carta, procurava sinais criptográficos, perguntava-me se eu não teria que fazer algum trâmite, se não haveria duplo sentido em algumas frases, que talvez contivessem instruções… Nada. Quase a atirei no fogo, quase a esfreguei com vinagre, para ver se surgiam letras vermelhas como em “O escaravelho de ouro”.[4] Mas sua carta era inocente e pura, era uma carta-carta e não uma carta-código. E assim chegou o dia 5 de dezembro, e Aurora e eu nos olhávamos e ríamos, mas por baixo parecia andar um bichinho de inquietação. E então, náufragos heroicos, encarapitados em nossa balsa (já competindo com a vizinha Barcaccia), decidimos fazer o que todo náufrago inteligente e industrioso faz: racionamento. Decidimos viver com mil liras diárias, para conseguirmos chegar até o fim deste mês. Decidimos só almoçar, e de noite comer um ovo cozido e um sanduíche de stracchino ou de fontina (50 l’etto). Decidimos inaugurar a era do café com leite. Decidimos não subir em nenhum ônibus, renunciar às pizzas, e viver monasticamente e ter confiança, e olhar pela janela de vez em quando para ver se avistávamos uma vela. (A verdade é que avistamos velas aos montes, mas só de cera, porque, com o Ano Mariano, Roma é uma maravilhosa fogueira de fé. Mas sobre isto [eu lhe falo] depois.)
No dia 7 de dezembro, convencidos de que ocorrera um sério accr-oc (desculpe esta divisão, certamente está errada),[5] e que as coisas andavam muito mal, decidimos iniciar a era dos recursos heroicos. Descartamos o mais vulgar de lançar a sorte, a fim de incorrer no usual canibalismo. Aurora achava que era pequenina demais para me alimentar por muito tempo, e quanto a mim, sou um monte de ossos, e realmente não poderia lhe deixar muito para comer. (Como simultaneamente eu andava traduzindo as aventuras de A. Gordon Pym, o tema do canibalismo voltava muitas vezes a nossos diálogos, e se adequava lugubremente a nossa situação.) Descartado esse recurso extremo por ser grosseiro ou não levar a nada, que remédio nos restava a não ser supor que você tinha escrito para nós, que a carta tinha se perdido, e que lá em Buenos Aires, região de bifes com batatas fritas, vivia na feliz ignorância de nossas aflições, convencido de que tínhamos feito o necessário para receber o dinheiro, ou que a pessoa X encarregada disso tinha feito tudo certo como devia? (Restava ainda outra possibilidade, tão triste quanto: a de que minha carta tivesse se perdido, e que você estivesse pensando que já tínhamos os fundos desde novembro.) Enfim, e para não ficar batendo na mesma tecla, fomos para a rua bras dessus bras dessous (é só um modo de dizer, pois se eu der o braço a Aurora, a coitada entra em completa levitação, e não é hora para faquirismos, embora estejamos muito perto disso). Saímos, claro, e procuramos os telefones do estado italiano, para ver quanto nos custaria falar três minutos com você. Quando descobrimos que nos custaria quase 9 mil liras, nós voltamos atrás. Mas, oh, iluminação, poucas horas mais tarde soubemos que podíamos ter lhe mandado um telegrama (o que é absurdo, pois jamais se esperou de um náufrago que mandasse telegramas, e sim que os recebesse) pela módica soma de 4 mil liras, o que era um pouco menos repugnante, e nos permitia lhe contar em cinco palavras a história de nossa tragédia. Decidimos esperar exatamente até hoje, quarta-feira, dia 9, ao meio-dia. Se a essa hora ainda não tivéssemos notícias suas, mandaríamos o telegrama, para que você soubesse o que estava havendo.
Então continuamos tomando café com leite, minuciosa e delicadamente preparado por Aurora, que se destaca nessas tarefas, e libando modestos sanduíches de queijo. Cuidávamos do número de achas de lenha que púnhamos na lareira (parce qu’on en a, tu sais!) e nos dedicávamos a visitar museus que, graças a nossa tripla téssera nacional-vaticana-comunal, nos dá toda a Roma de graça. Quase não falávamos do problema e esperávamos, cada um sumido em sua tradução ou em seu matezinho amargo.
Esta manhã (agora é meio-dia) acordamos decididos a lhe mandar o telegrama, pois realmente não podíamos continuar assim. E então teve início o conto de fadas, teve início exatamente o conto de fadas. Campainha, o carteiro (o carteiro é o arauto do príncipe, claro), um envelopezinho azul com ar insignificante (a chave do tesouro é sempre pequena, a lâmpada de Aladim estava embolorada no começo, as portas se abrem para Ali Babá com uma vulgaríssima frase cerealista) e dentro do envelopezinho algumas linhas de uma senhora que ostenta um nome imperial, uma referência a um senhor que exerce uma profissão liberal e outro papelzinho que soava, ah, como soava, oh, que música, que brilhos fulgurantes, oh, Nero tocando esta imensa lira, este compêndio de liras, oh, música que nos devolve à pizza e ao sonho sem íncubos!
As três semanas que passamos na balsa nos maltrataram e, como os bons náufragos dos romances, apenas a bordo da goleta salvadora nos recuperaremos completamente. Minha asma está bem melhor; fui a um médico, que me achou muito abatido e me receitou um tratamento de injeções broncodesinfetantes que me limparam pulmões e pleuras. Agora me sinto bem melhor e acredito que terminarei o inverno (muito benéfico até agora) sem inconvenientes. Em nenhum momento interrompi meu trabalho, embora tenha passado vários dias de cama ou sem sair de nosso quarto (que é grande como uma praça de touros e permite viver nele sem claustrofobias). Aurora, como sempre, está fortinha como um broto de carvalho, e se desdobra em múltiplas atividades.
Ontem começou o Ano Mariano, e não me cansarei de agradecer por ter estado em Roma nesse dia. O papa passou a 100 metros de nossa casa, pois antes de ir a Santa Maria Maggiore parou defronte ao Collegio di Propaganda Fide, na nossa esquina. Não o vimos porque havia multidões infindas e, além do mais, basta uma boa foto e a salvação, como dizia uma senhora que conheci no campo. Mas de noite aproveitamos a temperatura primaveril, um ar delicioso e a cidade em festa, para nos lançarmos a grandes aventuras exploratórias. Roma estava deliciosa, cheia de lanterninhas que lhe davam um ar incrivelmente medieval, principalmente nos bairros de ruas estreitas. Na igreja situada na esquina da Fontana di Trevi tinham acendido verdadeiras tochas em todo o frontão do edifício, aquilo era de não acreditar. Santa Maria Maggiore nos deslumbrou. O papa tinha estado ali de tarde e, quando chegamos por volta das nove, multidões ainda desfilavam para rezar, olhar a cadeira onde o Santo Padre havia sentado e ver a igreja iluminada. Os italianos têm rasgos geniais. Por exemplo, a iluminação externa era feita de milhares de lampadazinhas elétricas, mas mesmo a poucos metros era difícil acreditar que fossem isso; imagine que eles as colocam dentro de pequenos tubos ou copos, e programam para que variem de voltagem continuamente, de forma que dão a exata impressão de círios, de pequenas chamas oscilantes. Era simplesmente admirável. Não sei nem o que lhe dizer dos mosaicos iluminados a giorno. Na rua havia multidões indo e vindo com essa convicção que o povo assume em suas grandes festas, e era um prazer olhar seus rostos e andar entre eles. Foi uma folia memorável.
Você recebeu o pacote com as cópias dos poemas? Eu não recebi a revista do Pellegrini que você me anunciou, e que eu realmente gostaria de ler. Acabo de mandar para La Torre,[6] de Porto Rico, umas traduções de poemas de Sidney Keyes e uma nota biográfica. Se tiver interesse, me avise que eu lhe mando uma cópia. Não tenho lidado com nada além de Poe, mas estou um pouco atrasado com ele, que, aliás, me dá bastante trabalho. Gostaria de escrever um romance, mas só tentarei quando [tiver] terminado a tradução e me sobrar tempo em Paris. Até agora a Europa me invadiu de tal maneira que não me deixa ser eu mesmo. Estou o tempo todo sendo outras coisas, a paisagem, os quadros, os cheiros, a felicidade. E vou lhe contar, com um egoísmo enorme, que não ligo de não escrever. Nunca acreditei nas “missões” dos escritores e entendo que o escritor trabalha pelas mesmas razões hedônicas que o opiômano acende o cachimbo ou o violinista toca Bach. E minha felicidade pessoal – tantos anos restringida, diminuída, ersatz-izada na Argentina – vale mais para mim do que tudo o que eu possa escrever. Se resolver trabalhar, vai ser para continuar sendo feliz ou para combater alguma infelicidade (assim como escrevi o Imagen de John Keats para combater a infelicidade de meu último ano em Buenos Aires). Só lamento e sempre lamentarei que não tenha sido possível publicar O Exame Final. Ali também não havia nenhuma “mensagem”, mas era um testemunho, a merda que veio à tona, uma constância de algo que acontecia na turma e que teria sido bom dar a conhecer dentro e fora do país. Mas me alegra que meus amigos o tenham lido: já é muito, talvez tudo.
Bem, agora dou fim a esta longuíssima arenga para que você a receba o mais rápido possível e saiba que está tudo bem. Agradecer-lhe seria bastante inadequado. Você resolveu um problema muito sério para nós, deu-nos estes meses em Roma. Por aí pode medir o que nosso coração reserva para você.
Com todo o afeto de Aurora para os dois, e um forte abraço meu,
um Natal bem feliz e um ano novinho para os cinco!
Julio
Roma,
15 de janeiro de 1954
Caro Eduardo:
Escrevo-lhe com atraso, e depois de uma porção de dias em que venho me sentindo culpado. A razão central é Poe, cuja tradução entrou naquele período que um mau escritor chamaria de crucial, mas que eu, mais purista, chamo de um deus nos acuda. Embora eu não saiba exatamente o número, a pilha de laudas é impressionante, mas Poe se propôs a escrever comigo seu melhor conto fantástico, o do escritor que não se deixa traduzir totalmente. Há dois meses calculei que faltavam umas 600 páginas. Traduzo mais ou menos dez por dia. Ontem à noite fiz as contas e ainda faltam umas… 600. (Estou exagerando um pouco em prol do seu sorriso, mas a verdade é que Edgar tem uma elasticidade que já teria agradado a meu cunhadíssimo – escritor prolífico.)
Isso se transformou numa corrida contra o tempo. É divertido e estimulante. Nossos planos, em princípio, seriam estes: acabar Poe – a tradução e a revisão – no final de fevereiro. Apaziguada a consciência, descer a Nápoles por alguns dias (não me esquecerei de Ravello, sois sans crainte!)[7] e dali à rota dos azuis e dos dourados e das franjas alvinegras: Orvieto, Arezzo, Siena, San Gimignano, Perúgia, Assis, e por fim Florença. Aqui nos fixaríamos para eu terminar o Poe, ou seja, escrever o estudo preliminar e as copiosas notas que devem dar à edição um arzinho universitário (sem pedantismo, prometo). A ideia é boa porque: a) um mês e meio em Florença é tempo de sobra para esaurirla (hiperbolicamente falando); b) há bibliotecas inglesas e norte-americanas, ergo, trabalharei como em Roma, ou melhor. Da outra vez fiquei uns nove dias em Florença, e me convenci de que a gente não vê nada como deveria ver. É impossível marcar encontros com os pintores como se fossem num escritório. Não se pode ver Fra Angelico às dez, Masaccio às onze e Paolo Uccello às três. Justamente esses quatro meses (já!) de Roma me provam como uma visão se ajusta e se afina quando se dá a ela o seu tempo, que não é o turístico. Viver em Florença me parece uma perspectiva admirável. Farei a mesma coisa que aqui, dividir o dia entre o trabalho e o lazer. Acho que encontraremos algum quarto barato, e ficaremos muito bem.
Está aqui Jorge de Obieta[8] com seu simpático amigo Bernabá (que me pareceu um cronópio muito mais enormíssimo que o outro). Demos a eles magníficos tuyaux romanos que fizeram com que economizassem pilhas de liras, e estavam adorando. Partiram para Nápoles, e nos despedimos com um fritto de calamaretti e carciofi, regado por nuvens inteiras de Chianti.
Falemos de Eugénie Grandet: Obieta me emprestou o número 1 da revista do Pellegrini (pois o que você me mandou não chegou). Eu o li de fio a pavio e vou lhe dar uma opinião que naturalmente você fica autorizado a comunicar ao Pellegrini. A revista tem um defeito grave (pois básico): a retórica insuportável dos ataques, a suficiência empolada da linguagem e das ideias. Já de saída, a “Justificativa” não justifica nada, com tanta mediocridade. Vai de um sofisma a outro, passando por vários lamentos à la Sade[9] que já não convencem ninguém com mais de 25 anos. Que história é essa de reincidir nas lamúrias sobre “o escritor jovem” incompreendido e inédito? O sofisma mais grave é afirmar – como faz o redator – que “as revistas literárias (leia-se Sur) não publicam os jovens, pois um escritor não entra em seus sumários antes de ser admitido pelo consenso geral”. (Cito de memória.) Ora: se o consenso geral o admite, deve ser porque ele foi lido, não? E se foi lido, o sujeito deve ter publicado, não é mesmo? Eles amolam um pouco com essa história do escritor jovem. E amolam porque partem um pouco da ideia de que a juventude é um mérito literário, o que – se a gente vê o que escrevia aos 20 e mesmo aos 30 – é uma barbaridade daquelas. Parecem acreditar que em cada Paulista[10] de Buenos Aires há um Rimbaud pálido de incompreensão, que não é consenso porque tem gênio. Parecem acreditar que Sur, por exemplo, tem medo dos jovens – ou do talento. Confundem a política interna das revistas (muito asquerosa, sempre) e o estado do fígado do secretário de redação, com uma posição conservadora que não existe. Você e eu conhecemos bem a Sur (continuo com este exemplo) e não nos iludimos. Mas partir para o outro lado e acreditar que o talento e as revelações estão entre os rejeitados pelas revistas equivale a substituir as inteligências pelo ressentimento.
Afora isso, as execuções sumárias de Bernárdez e de Sábato são tão justiceiras quanto divertidas (mas insisto em discordar do tom tão velho desses jovens justiceiros). Além do mais, a melhor “justificativa” da revista consistia em apresentar, pelos fatos que ocorrem na Argentina, um time de jovens escritores formidáveis. Limitar-se a publicar um texto de cada um: isso bastava. Fizeram isso. Você não é um exemplo, porque não é um poeta “jovem”: tem vários livros, e nenhuma revista pode agora se opor a publicar nada que você lhes oferece. Resta o outro poeta (me esqueci do nome, mas gostei das coisas dele) e só. Não há absolutamente nada de criativo na revista. Talvez só pretenda ser crítica, mas se for por aí vai acabar morrendo na praia. Assim que fuzilarem Molinari (como prometem) e todos os que eles acham ruins ou medianos, o que vão fazer? Nenhuma revista sobrevive de crítica. Os números que eu guardo da Sur ou da NRF são os que contêm poemas ou contos que me agradam. (Me diga o que pensa do que eu penso.) Quanto ao que você me dizia sobre colaborar, não há inconveniente, pois também nesse caso prefiro fazer algo a criticar. Se quiser alguma coisa, me dê um toque.
Outro dia ocorreu-me que, se eu tiver tempo e vontade, vou escrever um Manual de Instruções. Isso surgiu porque Aurora e eu tínhamos ido a San Giovanni in Laterano para continuar explorando o museu (que é fenomenal, incluída a parte etnográfica, tão divertida, mas principalmente os sarcófagos cristãos e os mosaicos das Termas de Caracala). Como faltava um pouco para que o abrissem, libamos um timballo di lasagna numa tavola calda, e entramos no palácio da Scala Santa. Você deve saber que por tal scala sobe-se de joelhos, pois santa Helena a levou a Roma depois de tirá-la da casa de Pilatos. Notei, entre várias coisas notáveis, que vendiam uns livrinhos com “instruções para subir a Scala Santa” e achei muito interessante. Tão interessante que percebi o quanto estamos órfãos de boas instruções para fazer uma porção de coisas importantes. Seria bom ter instruções para beber uma xicrinha de café, por exemplo, ou para sentar numa cadeira. São coisas elementares – ou seja, profundas, ou seja, mal- entendidas. Como se acende um fósforo? Você sabe? Não, você o acende. Mas e se do fósforo, por inabilidade sua, brotar uma cebolinha enorme? Etc. etc. Reconhece, contudo, que o Manual se impõe. Alguém teria de escrevê-lo. (Um inglês, provavelmente.)
Passamos o Natal e o fim de ano em rigorosa intimidade, como diria La Nación. Ouvimos a Missa do Galo em Santa Maria in Aracoeli e assistimos ao momento prodigioso em que descem o bambino coberto de ouro e pedrarias para levá-lo em procissão até o presépio. Fazia muito frio e, lá fora, na plataforma nua da igreja no alto do Campidoglio, lá estavam os zampognari com suas melodias rústicas (mais bonitas que o empolado órgão de dentro). No dia 31 zanzamos até tarde e às onze voltamos para casa porque já tínhamos sido avisados do perigo que corríamos se a meia-noite nos fisgasse na rua. E não era história porque os entusiastas romanos jogam carradas de garrafas e pratos na rua e assim não se vê uma alma nas calçadas. E olhe que é vietato[11]…
Trocamos presentes de Natal: Aurora ganhou uma sottoveste de que precisava, e eu um prodigioso caleidoscópio. Esse caleidoscópio (300 liras em La Rinascente[12]) me serve, entre outras coisas, como testa-cronópios. Quando vem alguém aqui em casa, eu logo lhe ofereço o caleidoscópio. Se a pessoa enlouquece, dá pulos etc., eu a proclamo cronópio. Se ela se mostra condescendente, com um sorriso bem-educado, mando-a mentalmente às favas. Aconselho você a ter um. Vai lhe mostrar mais coisas sobre uma pessoa do que o Rorschard – se é que se escreve assim –, em que não se escreve.
Roma é uma cidade de loucos. HÁ UMA EXPOSIÇÃO INCRÍVEL de holandeses! Há esse inconcebível escândalo que é O Atelier, de Vermeer, e quatro autorretratos de Rembrandt, mais quatro retratos de seu filho!!! E Hals, Ruysdael e toda a nata pegajosa dos natura-mortalistas, com limões cortados e copos onde o vinho estremece – mas que sempre assusta um pouco.
Leio Berenson. E o acho um chato de galochas.
Escreva uma carta cheia de ondas atlânticas, e que você se bronzeie como um grande pele-vermelha e que o chamem de URSO SENTADO ou GRANDE LAGARTO DO SOL. Com um abraço do
Julio
Perto de Dacar,
22 de outubro de 1954
Meu caro Eduardo:
Alá é grande, mas a merda pode mais. Desculpe este meu começo sem elegância. Não estou sob a influência de Antonin Artaud, nem sou discípulo de Henry Miller. Simplesmente navego num barco da CGTM, ou seja, Compagnie Générale des Transports Maritimes, embora eu esteja convencido de que a sigla quer dizer “Como Guentar Tanta Merda”. Pode acreditar que a coisa fede, fede. Aurora e eu estamos admiravelmente situados para julgar a coisa, posto que a famosa “cabine de duas camas” que nos deram (como grande prerrogativa) é absolutamente idêntica a uma pissotière de Paris. Não falo daquelas em forma de caracol, mas das retangulares – por exemplo, a da rue de Médicis, costeando o Jardim de Luxemburgo. Como esta, nossa “cabine” tem 2 por 1,60 metro. Subtraia o espaço das duas couchette se verá que mal cabemos em pé: ergo, nem mesa, nem cadeira, nem cabides, nem água. Mas sua sublime semelhança com as pissotières não advém da estreiteza, e sim da estrutura: seus tabiques não chegam nem ao teto nem ao chão. Vinte centímetros em cima e 20 embaixo são vazados, e então não venha me dizer que isto não é uma pissotière perfeita. Em todo caso, o símile não me ocorreu por razões estruturais, mas tristemente olfativas. Exatamente contra uma de nossas soi-disant paredes se ergue em toda a sua fragrância o gabinetto per donne da terceira classe na qual estamos. Nesse gabinetto ocorre um fenômeno de desconcerto universal, topológico e geográfico, que só Rabelais poderia descrever adequadamente. Saiba apenas que o barco (velho, atroz, lentíssimo) está lotado de imigrantes napolitanos (horresco referens![13]), grupos de armênios e bandos de galegos. Para as mulheres e seus incontáveis filhos, o gabinetto de referência oferece a insinuação bastante explícita de um buraco redondo no meio e dois sólidos apoios de pedra onde firmar os sapatos. Ora, como a psicanálise já provou que o buraco, o orifício, é um dos principais temas obsessivos do Homo sapiens, ocorre que tanto as tanas quanto as filhas de Maomé parecem recuar diante do que a saúde pública lhes oferece, como se a presença desse buraco pusesse em perigo o seu próprio, ou algo assim. A questão é que a sintonia, a concordância, a coincidência lógica não se produz e, depois de um tempinho neste gabinetto, e em todos os outros (pois tenho inspecionado todos), você vê que o buraco funcional rutila e resplandece, enquanto ao redor, nas bordas, no teto, nas paredes, contra a porta e fora da porta, levanta-se toda gama de colorações nacionais e dietéticas, as pirâmides exalantes e probatórias da triste condição humana. A esta paisagem marcadamente orográfica soma-se a hidrografia adicional que provoca as adernadas desta besta-fera náutica. Toda a serragem do mundo não bastaria para cobrir a capacidade vomitiva dos filhos de Cumas, Baia e do Vesúvio. Acho que Pompeia acabou coberta de vomitadas: apresentarei a tese em algum congresso. E tudo isso acontece, não ao redor de nossa cabine – pois com a porta fechada tudo se ajeita –, mas na cabine, ou seja, na pissotière, já que a falta de paredes completas nos deixa vinculados, enraizados, entranhados nessa orgia contínua de funções e disfunções. Somem-se a isso: alaridos contínuos (os árabes, monstros em estado natural), brigas por conta de italianas e espanholas, às vezes imitadas por seus esposos e fratelli, e choros ou gritos contínuos de dezenas de crianças bastante catarrentas todas elas, e de péssimo humor. Moralité: nós pagamos mais caro pelo acidente do Provence do que pensávamos, pois a Cia. nos garantiu em Paris qu’on voyageait très bien sur le Florida, qu’il venait d’être modernisé etc.[14] Cortázar ingênuo! Eu tinha já a experiência de minha volta no Anna C., em 1950 (não sei se você percebeu que a cada volta meu navio a vapor quebra e tenho que pegar outro), mas lamento que a coitada da Glop[15] tenha de se misturar a esta saison aux chiottes.[16] Você deve pensar que nos resta o grande recurso de passar o tempo no convés, contemplando la mer toujours récommencée. Liberte em seu coração essas últimas esperanças: a proa pulula de seres desenfreados, que brincam de quebrar as costas de pancada, cantam melopeias em hebreu e em árabe (oh, Herodes, oh, Carlos Martel, seres superiores e proféticos!), enquanto suas crianças vertem aletrias por via oral, outras matérias por via retal, e são capazes, no entanto, de brincar, cantar e principalmente ulular, técnica na qual se sobressaem. Rapport à la boustifaille,[17] uma gororoba intragável. E não há duchas. Desde ontem falta água doce nos escassos banheiros. França querida! Amado regime capitalista. À la MERDE (sic)!
Apêndice consolador: exasperados e frenéticos, decidimos escrever ao comissário francês. Por milagre a carta chegou ao seu destino e desde ontem à noite, oh, deuses, oh, sombra gentil de Palinuro na esteira da nau, estamos autorizados a passar o dia todo na segunda classe. Temos duas cadeiras de praia, um bar tranquilo, e SILÊNCIO. Podemos ler, podemos olhar os golfinhos que começam a brincar ao lado do barco. O comissário se mostrou très chic. Como me alegro de ser capaz de redigir uma boa carta em francês! O homem entendeu e obrou de acordo. Alá é grande.
Mas ainda permanece, de qualquer modo, o tratamento infame dado a essas pobres pessoas que não têm como ir para a segunda classe. Não temos remédio senão comer a gororoba e dormir na pissotière. Já estamos viajando há uma semana. Por volta do dia 5 ou 6, Glop estará chegando e lhe contará o resto. E eu, de Montevidéu, vou me sentir bem próximo de vocês e logo darei um pulo aí, e vai ser tudo muito bom.
Um forte abraço do
Julio
Paris,
27 de agosto de 1955
Meu caro Eduardo:
Ontem fiz 41 anos. Je viens d’avoir trente ans, dizia Jean, o da estrela, num belo poema do qual deves se lembrar, e ele dizia isso com tanta tristeza quanto eu. Quarenta e um é um número horrível para quem acredita que o mundo é belo, mas alheio, alheio aos meus sentidos que só conhecem uma parte ínfima, à minha inteligência, incapaz de apreendê-lo em suas estruturas mais elementares. Agora começa verdadeiramente o declive, a década que nos leva aos 50. E eu, que me sinto sempre com 20 anos, tão bobo, tão crédulo, tão entusiasta, tão esperançoso como naqueles tempos! Mas os sinais físicos me trazem de volta à realidade. Fico doente mais seguidamente, me canso muito mais rápido. Até cinco anos atrás podia passar uma noite em branco e continuar perfeitamente no dia seguinte; agora, se vou me deitar depois da meia-noite, pago o preço no dia seguinte. Não posso beber tanto vinho, não posso comer tantas coisas, não posso ler tantas horas. Coisas profundamente materiais começam a minguar, a afinar sutilmente, como se o mundo iniciasse, sigiloso, sua retirada, deixando-me cada vez mais suas imagens em troca de suas matérias… Imagino que essa melancolia (acompanhada, ao mesmo tempo, de uma exaltação extraordinária, de uma vontade, como nunca antes, de fazer coisas, de conhecer, de amar) deve-se a uma vistosa transformação de minha fórmula sanguínea, derivada de um danado de um vírus filtrável que me pegou durante uma parte deste mês, que passei me levantando e caindo. Nunca tenhas mononucleose infecciosa, porque incomoda muito. (Deves estar sorrindo ironicamente, pobre velho, também versado em achaques…) Agora estou melhor e respondo a tua carta que chegou há pouco, e que li tomando um vinhozinho perto da place de Ternes, cheias de castanheiros que já começavam a ficar com esse amarelo propício ao outono… Ma foi, tua carta me deixou triste vários dias, e estou quase contente de não tê-la respondido em seguida. Agora eu a vejo – te vejo – com mais perspectiva. Agora consigo ser um pouco mais desapiedado, embora não seja piedade, muito pelo contrário, o que tu esperas de mim. (Hoje me saem “tu” por todo lado: devem ser os galegos da Unesco se infiltrando em meu sangue. Não estou disposto a renunciar ao “você” por nada neste mundo. No máximo, um ponto intermediário como os uruguaios, que dizem “tu diz”…) De tudo o que me conta, de tudo o que confia a mim, o pior é esse sentimento de solidão, de estar isolado entre todos os que o cercam. Conheço um pouco esse sentimento porque fui quase um camarada de juventude e você sabe disso muito bem. As causa e os matizes eram outros, mas não os efeitos. Por isso me dói – e como lhe dizer com as palavras certas tudo isto, se a única coisa possível seria olhá-lo nos olhos e dar umas palmadinhas em seu ombro para que você soubesse que seu amigo está perto? –, me dói ver você metido num labirinto tão sutil, tão feito de nadas que são tudos, com paredes que se franqueiam com o corpo mas que nem assim o deixam em liberdade. E me dói – e me dá raiva, não vou esconder isso, e tenho vontade de gritar que assim você não pode continuar –, me dói ver se agravar o que não foi difícil de suspeitar durante todo o verão passado em Buenos Aires. Naquela época pensei que seu estado físico somava desassossego a sua inquietação moral, mas agora acho que entendo que esta pode mais que qualquer outro fator momentâneo. Não retiro o que disse naquela noite em que conversamos sobre seu diário. Acho que seu defeito – para lhe dar um nome francamente, embora talvez fosse melhor dizer sua maneira de ser, pura e simplesmente – é uma soma de incapacidades e inadaptações que eu gostaria de conhecer bem para poder enumerá-las e ajudá-lo – se isso fosse possível.
Você me escreve num tom que me autoriza, creio, a empregar o tom daquela noite e completar, talvez, o que eu lhe disse um pouco intimidado pela presença muito próxima de María e pelo fato de entrar com você num terreno tão pessoal, no qual não tocávamos há pelo menos quinze anos. Deixe que eu empregue outra vez o termo “egotista”. Não é pejorativo, você sabe. Você tem um interior rico demais para não ser um pouco bumerangue e retornar a si mesmo toda vez que sai para o mundo. Seu egotismo me parece uma barricada, um muro de defesa. Não me parece seu verdadeiro ser, o profundo; insisto em vê-lo como um método de vida, um meio que ameaça tomar o lugar de um fim. Se me perguntar por que penso isto, vou lhe responder francamente: acho que sua infância e sua primeira adolescência são culpadas, e que não existe nenhuma razão verdadeira para continuar mantendo uma fachada (porque no fundo é só uma fachada), quando você está beirando os 40 e já não tem os problemas do menino. Me desculpe por essa psicanálise barata (e absolutamente desprovida de rigor) que, aliás, você já deve ter praticado sozinho mais de uma vez. Se me perguntasse no que me baseio para dizer tudo isso, eu mencionaria o quadro oferecido por todo homem que passa sua infância sem o pai, rodeado de uma mãe bondosa, mas severa, e de três irmãs bem mais velhas, que triplicam a imagem materna e acabam lhe dando uma dimensão esmagadora. (Quando fui visitá-lo um dia em sua casa de Banfield, por vezes não sabia quem era sua mãe, se a verdadeira ou a Quica… E você vivia assim noite e dia.) O mecanismo de defesa viril, de rebeldia necessária, é claramente visível em sua conduta daqueles anos. Você já era “difícil” e, mil vezes, em conversas com Paco – o único amigo em quem eu confiava plenamente, além de você –, nós ríamos lembrando suas reações petulantes, seus acessos de entusiasmo seguidos de depressões brutais que o deixavam arrasado e atormentado. Depois fiquei um longo tempo sem vê-lo, mas foi então que você fez o que correspondia exatamente a seu mecanismo de rebelião: foi para a Europa numa viagem bastante insensata e, ao fazer isso, fez o que Freud chama de “matar a mãe” (matava vários outros, de quebra). Não sei muito bem como você viveu quando voltou, embora imagine que tenha sido uma pequena boemia honorável, viveu sozinho – um dia me mostrou seu ateliê –,mas tudo isso encobria, receio, o começo da derrota, a volta ao rincão natal, o ingresso na ordem. Talvez tenha sido nessa época que teve medo (inconscientemente, sem confessá-lo) de escolher um caminho absoluto, ser um artista, como Van Gogh escolheu ser, ou um poeta, como Vallejo escolheu ser. Tudo reside, creio, no fato de você ter vocação para o que não faz, ou para o que faz insatisfatoriamente (não estou aludindo aos resultados, mas a sua satisfação ao fazê-lo). A única maneira de se realizar teria sido, naquele momento, quando você não era casado nem tinha filhos, fazer a viagem verdadeiramente. Entendo por viagem qualquer roteiro interior ou exterior que o teria levado até o extremo de si mesmo. Porque – e será o melhor elogio já feito a você – você não é homem de termos médios, acomodado. Tem uma espécie de sede de absoluto, que se reflete em toda a sua conduta. Sua vida, porém, foi montada sobre uma série de compromissos, e até irrisoriamente você caiu num tipo de trabalho fundamentalmente impuro e cheio de concessões, arranjos e compromissos (como o que eu tive um tempo na Câmara, e do qual me libertei porque eu ia acabar na rua). Você tem de sair de carro com geólogos e voar para Córdoba com médicos, tem de fazer coisas que acha repugnantes, e paga caro por isso. Paga especialmente caro porque quando era menino não quis se entregar e se rebelou contra seu meio familiar, e continua atrás de sua barricada, como se nota em muitos detalhes de sua conduta; ao mesmo tempo o inimigo está infiltrado em sua cidadela, todos os dias da meia-noite às seis, e tem outros inimigos mais doces e mais sutis nas horas restantes. Desses últimos “inimigos” não quero falar porque gosto muito deles e porque eles não têm a menor culpa do que acontece com você; aliás, você é o primeiro a reconhecer isso. Não são inimigos, você é que se rebela contra a ordem que eles representam, e assim os transforma no que são, em inimigos. E por que você se rebela contra a ordem burguesa que aceitou há dez anos? A rebelião aos 15 anos tudo bem; esta rebelião aos 40 dá o que pensar; tem muito de absurdo, tem muito de cópia irrisória da primeira, da autêntica. Entre as duas há uma derrota, a de seu ingresso numa ordem que você não queria. É aí que você tem de procurar uma solução possível, aí e em seu próprio caráter, alterado por fossos, barricadas e pontes levadiças que não são seu verdadeiro eu.
Vou lhe falar com toda a franqueza: neste verão tive a impressão de que você perdeu um dom que antes tinha, embora nunca em grandes proporções: o da alteridade, o de saber se debruçar e escutar, o de se colocar um pouco no lugar de seu interlocutor, de seu amigo, de quem estiver com você nesse momento. Eu me surpreendia, por exemplo, que numa reunião incoerente, onde circulavam diversas pessoas, você se empenhasse em encontrar cinco minutos para me mostrar poemas e esperar minha opinião, ou me fazer ver quadros em circunstâncias nada propícias. Eu ficava comovido com seu desejo evidente de se vincular ao interlocutor por meio do que fazia, mas ao mesmo tempo percebia em você certo desprezo (agora não consigo encontrar outra palavra, e esta está longe de dar conta do que quero dizer) dirigido a seu interlocutor, fosse eu, Aurora, Sakai ou qualquer dos presentes. Não gostaria que me entendesse mal nesta passagem. Minha impressão é que você estava ansioso por testemunhas, por pessoas que o amam e que você ama, mas que procurava essas testemunhas de uma forma perigosamente egoísta, sem dar nada de você e mesmo assim esperando tudo do outro. Achei que você tinha perdido a capacidade para o diálogo, um pouco porque era continuamente rodeado e amavelmente fustigado por seus filhos e por tantos que continuamente o acompanhavam; mas mesmo aceitando essa justificativa, insisto em dizer que o achei um pouco rígido, um pouco cristalizado, ansioso por oferecer tudo espiritualmente e ao mesmo tempo se negando a fazê-lo, encerrando-se rapidamente na anedota fácil, na conversa anódina, no papo-furado social. Tome tudo isso a conta-gotas; provavelmente eu esperava de nosso diálogo um encontro em profundidade e que cada quadro ou cada poema fosse como um ponto de partida para conversas muito mais profundas do que as que tivemos.
Como as circunstâncias não o permitiram, a não ser por raras vezes e por breves minutos, posso estar atribuindo a seu caráter algo que era apenas exterior. No entanto, algo em mim insiste em dizer que não estou totalmente equivocado. Há em você um fundo invariável de ternura, de confiança e entusiasmo adolescentes; sei que continua encarando a amizade como um sentimento muito mais exigente que o que pode ter, por exemplo, Jorge. Suas reações frequentes e bastante violentas diante da conduta displicente e desapegada do Jorge me provam isso. Sei também que, se eu morasse em Buenos Aires, já teríamos alcançado o plano que eu esperava encontrar neste verão (tanto em você quanto em María, pois também com ela eu esperava dialogar a fundo, já que sei como é sensível, inteligente e carinhosa). Não pense que ignoro o fundo de bondade até excessiva que há em você; o que me espanta um pouco é sua tendência resoluta a disfarçá-la, a se mostrar muito menos espontâneo do que poderia ser. Acho que só no final – tinha de ser assim – eu o medi de novo em toda a sua admirável qualidade humana. Estou falando da noite anterior a sua viagem a Córdoba, quando jantou com Aurora e comigo, e conversamos durante horas. Naquele momento você foi como talvez devesse ser sempre com os outros; agora deixe que eu me ponha de lado e o defronte com os outros. Se me escolhi como interlocutor nesses “exemplos” foi porque só assim podia lhe dar uma ideia de minhas reações. Agora penso em você diante das outras pessoas. Que razão fundamental você tem para estar divorciado de sua mulher ou de seus amigos, ou de seus filhos, ou do papa? Que razão pode haver senão esse encastelamento obstinado, essa resistência ferrenha às ofensivas do mundo? Não é necessário resistir ao mundo de hoje, o que é preciso é escolher bem o mundo que se prefere e ao qual é preciso se dar; e a esse, ah, a esse é preciso se dar profundamente, como quando se nada, ou se dorme, ou se ama. E eu temo (me diga se estou enganado, porque tudo isso pode ser falso) que sua velha rebeldia de menino contra sua mãe e suas irmãs está envenenando seu presente sem uma razão legítima.
Veja que não estou aludindo, não quero aludir à razão central de sua infelicidade, que é, na verdade, o tema de boa parte de sua carta. Não quero porque, ainda que admita sua existência, e isso me dói tanto, entendo que essa razão não é a última e que sua única saída consiste, se for para sair do poço, em voltar para trás, refazer sua vida analisando-a longamente, descobrir sem engano possível os erros, e depois, instalado em seu presente, e sem renunciar a ele, travar a batalha. E essa batalha irá se travar dentro e fora de você, que poderá vencê-la. As soluções extremas e românticas (a pobreza, a travessia do Atlântico, a renúncia às obrigações sociais), você deve descartar de cara. Se não pode ser Van Gogh, quem o impede de ser como Picasso? Se não pode ser Vallejo, por que não viver como Valéry? Não insista em viajar para Marrakech, como aos 17 anos. A vida já provou que você não foi feito para isso. Em compensação, foi feito para tantas outras coisas igualmente valiosas, igualmente belas! Se você achar que deve tomar algum outro rumo, seja inflexível nisso: ninguém deve impedi-lo. Se entender que precisa de seis horas por dia para pintar, é necessário, absolutamente necessário que as encontre. Não diga já de saída que é impossível, tampouco exija que sejam doze ou dezoito horas. Conforme-se com seis, mas ganhe essas horas. Recuse as pequenas coisas parasitas que vão nos roubando as grandes. Procure outro trabalho, sem se apressar e sem ficar frenético, se não aparecer alguma coisa logo. Será que você procurou de verdade? Digamos que você realmente chegue à conclusão de que só saindo da embaixada terá condições de alcançar certa paz; no mesmo instante tem de começar a procurar, e sei que encontrará. E não me diga que a embaixada não é, nesse momento, a razão de sua infelicidade. Já sei, e insisto em que não quero tocar no assunto de sua situação com sua mulher. Só acho que, se você conseguir uma base material de tranquilidade (outro emprego, tempo para seu próprio trabalho, certa satisfação diante do espelho quando estiver vivendo como quer e fazendo o que quer), há mais possibilidades de o outro se acertar, de os fantasmas irem embora, de haver paz. Receio que você esteja combatendo no campo errado; tem que procurar os inimigos em outro lugar, a começar por você mesmo. Vou lhe dizer algo muito duro: acho que até agora você brinca de não ter pena de si mesmo (escrevendo, por exemplo, um longuíssimo diário onde não demonstra ter a menor pena de si mesmo, embora o próprio fato de escrevê-lo mostre de sobra que você tem, e quanta); penso que chegou a hora de você realmente começar a não sentir pena de si mesmo, ou seja, hora de renunciar a esse narcisismo às avessas que consiste em cuspir na água onde seu rosto está refletido. Aceite seu rosto, no dia em que ele for como você o deseja.
Eduardo, acho que me excedi na mesma tecla, e me pergunto o que você vai pensar desta carta. Claro que vou mandá-la mesmo assim, como uma simples prova de amizade, de um antigo afeto que só vai acabar junto comigo. Eu também me pergunto o que María vai pensar se a ler. Acho que entenderá. Acho que vai me perdoar por me intrometer num espaço tão privado, para o qual, no fundo, não fui chamado por ninguém. Teria sido mais fácil ignorar sua última carta e responder, como tantas vezes, com notícias sobre as exposições e a literatura. María sabe, também, que gosto muito dela, e que tenho profunda admiração por sua sensibilidade, seu contínuo dom de poesia, sua graça. Não me desculpo com você, nem com ela. Mas gostaria tanto de estar com os dois quando receberem esta carta, e dar um empurrão em vocês, meio na louca, e que nós três caíssemos na risada, na água-furtada da rua Ocampo onde fui tão feliz com vocês, e para onde eu quero tanto voltar um dia.
Com um abraço,
Julio
E tudo o que eu queria lhe dizer não está dito nas palavras. Pode se aborrecer com elas, se quiser, mas não duvide do carinho que as move.
2 de junho de 1956
Aproveito uma parada em meu trabalho da Unesco para lhe escrever (e olhe que tenho uma carta inacabada em casa, mas depois vou mandar tudo junto). Quando voltamos da Espanha vimos novidades sensacionais em Paris. Acho que você sabe que em dezembro foi aberto um concurso no mundo inteiro para preencher cargos permanentes de tradutores na Unesco e nas Nações Unidas, ou seja, nas sedes de Nova York, Paris e Genebra. Nós não tínhamos o menor interesse em ser permanentes, ou seja, escravos o ano inteiro, mas tivemos de fazer o exame, pois as listas resultantes seriam levadas em conta para contratar também os “temporários”. Bem, apresentaram-se mais de 600 candidatos, e o exame durou três dias e foi uma parada. Tanto Glop quanto eu sabíamos que a experiência ia nos ajudar a figurar entre os vinte primeiros, pois os textos que deviam ser traduzidos eram altamente “onusianos” no espírito e na letra. Mas o que jamais imaginamos é que ao chegar a Paris ficaríamos sabendo que eu ocupava o primeiro lugar… e Aurora o segundo. Feito Fausto Coppi e Pascualito Pérez![18] Quando nos mostraram a lista e vimos duas vezes o nome “Cortázar” (com três pontos de vantagem sobre o terceiro vencedor), pensamos que estivessem caçoando. Mas não estavam, e o mais engraçado vem agora. Ofereceram um cargo permanente para Glop ou para mim (pelo regulamento nós dois não podemos entrar) em Paris, Nova York ou Genebra. Você já imaginou nossa resposta: um não redondo e contundente. E, olhe só, com nossa colocação eles são obrigados a nos contratar como temporários cada vez que for preciso, e isso nos garante pelo menos seis meses de trabalho por ano. Com isso a gente se vira para viver. Eu já tinha sido contratado como revisor, faz um tempinho, e isso supõe um salário muito maior que o de tradutor; quer dizer que quatro ou cinco meses como revisor valem por sete ou oito como tradutor. Nossa decisão não foi previdente, mas não assinamos o pacto com o diabo. E tem mais, você não pode imaginar o pasmo do pessoal da seção espanhola. Se as almas caridosas tinham desconfiado que havia um pistolão, dada a espantosa conquista dupla do exame, a essa hora terão de recorrer a hipóteses muito mais sutis para explicar nossa recusa a recolher os louros que soubemos conseguir…
A história de ir à Índia em novembro está meio verde, porque reduziram muito a equipe necessária, e eu disse que não vou se não levarem a Glop também. Só tem uma saída, que é Glop ir ver sua mãe em Buenos Aires enquanto eu pego o avião para Nova Delhi. Não é ideal para mim, mas talvez seja bom para ela, que nos últimos tempos teve acentuado o típico “complexo de culpa” dos argentinos que saem de Buenos Aires. Ela se sente muito em dívida com a mãe, e eu entendo isso de sobra. Além disso, ela não gosta da França como eu gosto, recusa-se terminantemente a falar francês, a estudá-lo… É um problema para mim, que me sinto, por minha vez, culpado de submeter Glop a um desterro que ela evidentemente só tolera em nome de seu afeto por mim. Tu vois, on a aussi ses ennuis…[19] (Não os comente ao me responder.)
Escreva bastante,
Julio
Havana,
22 de janeiro de 1963
Querido Eduardo:
De 15 graus negativos, em Praga, a 30 positivos, em Havana, haja salto, chê. Mas nos demos bem e aqui estamos, hospedados num hotel onde os americanos jogavam roleta diante de um mar fabulosamente azul (Drake, Morgan, Kidd, oh, manes de Stevenson!). Não lhe escrevo muito porque a Casa de las Américas não me deixa, o tempo todo há passeios, exposições, visitas, montanhas de livros e revistas (que lhe darei em Paris, há poetas e contistas formidáveis), e, além disso, a cidade está incrível, com sua praça da Catedral – Gropius disse que era a mais bela da América e acredito nele – e com sua gente contente, entusiasmada, embalada como só acontece depois de uma revolução semelhante. Depois falamos da revolução, hoje só vou lhe dizer uma coisa: salvo quatro ou cinco escritores (Lydia Cabrera, Novás Calvo…), todos os intelectuais e os artistas estão até o pescoço com Fidel Castro, trabalhando como loucos, alfabetizando e dirigindo teatro, e indo ao campo para conhecer os problemas…
Não preciso lhe dizer que me sinto velho, mirrado, francês ao lado deles. Se eu tivesse 20 anos a menos, eu me despediria e ficaria aqui. Mas voltarei, já não consigo sair de minha casquinha. (Sem contar que não fecho os olhos para as contrapartidas, mas estas não são nada diante da beleza deste son entero[20] de verdade.) Que figuras, chê, que povo incrível! O embargo é monstruoso. Não há remédios, nem sequer pastilhas para a garganta. Prodígios são feitos para combinar o arroz com as batatas-doces e as batatas-doces com o arroz. Tudo entre risadas (salvo, claro, as inevitáveis caretas dos que não se conformam com menos de sete ovos por mês…). Acho que ficaremos aqui até o dia 20 de fevereiro, mais ou menos. Mando umas linhas para minha mãe por você, por favor envie-as a María Herminia D. de Pereyra, General Artigas 3246, apartamento 7. Se tiver que me escrever, envie para “Casa de las Américas”, La Habana. Lembranças carinhosas para todos de Aurora, um grande abraço,
Julio
Fac-símie do cartão em que ele fala de Caetano Veloso, Oscar Niemeyer, Haroldo de Campos de Décio Pignatari
Saignon,
25 de agosto de 1970
Querido Eduardo:
Pode ser que você tenha concluído que meu rosto muda muito e que quase não me reconhece sempre que nos reencontramos; já eu acho você sempre igualzinho, com alguns fios brancos a mais no bigode, quando está de bigode, ou no cabelo (que evidentemente estão com você cada vez menos). A frase entre parênteses é obviamente destinada para que você me mande à merda.
Claro que nos vemos pouco, mas as órbitas dos homens são mais complicadas que as controladas pela Nasa. Passei a maior parte da minha vida numa atitude nostálgica diante do que ia ficando irremediavelmente para trás: agora prefiro viver no presente e, quando posso, projetar-me no futuro. O elegíaco deixou de me interessar há muito tempo, embora possa compreendê-lo e até admirá-lo em outros.
Mais uma vez vamos nos cruzar como velozes jogadores de hóquei sobre o gelo; Ugné[21] e eu chegamos a Paris no dia 2 de setembro, depois de fechar o rancho saignonês, e no dia 4 ao alvorecer irei sozinho, de carro, para a Alemanha, onde me esperam cinco dias de conferência num lugar inverossímil chamado Wiesbaden; com esses dólares passarei dez dias, sempre sozinho e de carro, e muito satisfeito com as duas coisas, ao longo de uma Alemanha que quase não conheço, tentando ver museus, pessoas e lugares; no dia 22 estarei em Viena para a conferência da IAEA[22] (da qual você me resgatou, lembra-se?, com um braço quebrado, illo tempore[23]); no dia 2 de outubro irei gastar em Veneza os dólares ganhos em Viena e no dia 12, Dia da Raça, terei o prazer de cumprimentá-lo na Unesco, onde trabalharei na Conferência Geral. Duvido que nos dois dias que vou passar em Paris na semana que vem eu consiga vê-lo, por isso prefiro que nos encontremos em outubro para conversar sobre sua viagem, que me interessa, e suas libidinosas ainda que apressadas (sic) descargas seminais em Túnis.
Obrigado pelo recorte, meio acanhado, na verdade. Gostaria de tê-lo aqui no dia 15 deste mês; com a estreia da peça de Carlos Fuentes, no Festival d’Avignon, houve um grande encontro latino-americano que terminou numa noitada espasmódica em minha casa. Estiveram lá Carlos, Mario Vargas, García Márquez, Pepe Donoso, Goytisolo,[24] todos eles cercados de amiguinhas, admiradoras (e ores), o que elevava seu número a uns quarenta; você pode imaginar o clima, as garrafas de pastis, as conversas, as músicas e a estupefação dos aldeões de Saignon diante da chegada de um ônibus especialmente alugado para cair bem na minha casa… Foi muito agradável e muito estranho ao mesmo tempo; algo fora do tempo, que não se repete, naturalmente, e com um sentido profundo que me foge, mas ao qual, no entanto, sou sensível.
Até logo, lembranças afetuosas aos seus, e um forte abraço,
Julio
[Brasília, 1973][25]
Cher Maître, veja do que são capazes as Damas Rotárias (uma dama rotando soa meio feio, não?). Aqui estou, em Brasília, enviando-lhe com atraso este delicado testemunho da arte de Arequipa. Sem dúvida, Arequipa é uma cidade maravilhosa, que talvez você tenha conhecido em suas missões unesquianas. E agora, depois de sobreviver ao aluvião equatoriano e peruano, vou conhecendo este Brasil (Ouro Preto, Congonhas, Rio, São Paulo, Brasília) e amanhã estarei na Bahia com Caetano Veloso e os outros cronópios da música. Faz um calor dos diabos, mas Niemeyer, que grande sujeito! Volto para São Paulo, onde os poetas (milhares!) me levarão a seus países concretistas, com Haroldo de Campos e Décio Pignatari à frente. É tudo uma imensa loucura, Cusco, Otavalo no Equador, as pessoas, a bebida, a amizade, as noites com estrelas enormes.
Manágua,
24 de fevereiro de 1983
Querido Eduardo:
Pode ser que esta carta chegue até você depois de meu regresso a Paris, considerando que o correio é muito lento nestas latitudes; em todo caso, vou enviá-la para agradecer a sua, que me alegrou receber aqui. Como em viagens anteriores, Tomasello[26] tratou de me reenviar a correspondência e, de quebra, dar uma olhada no apartamento vazio há tanto tempo. Volto no dia 10 de março, depois de viajar para o México daqui, via Havana.
Vou lhe falar pouco de mim, estou tão desolado que tenho dificuldade em me reconhecer toda vez que acordo.[27] Só o trabalho vem um pouco em minha ajuda, que não me faltou na Nicarágua. Entre outras coisas, esses loucos tão queridos decidiram me homenagear com a Ordem de Rubén Darío, o que me emocionou muito porque é a primeira vez que a concedem a um estrangeiro. Tive de preparar um discurso e ser protagonista de uma dessas cerimônias que a gente vê tantas vezes no cinema ou na televisão: mas, neste caso, havia tanto carinho por parte dos dirigentes e do público que o lado protocolar não me incomodou nem um pouco. Deram-me uma fita com a gravação do ato e dos discursos (Sergio Ramírez leu um que reivindica a personalidade inteira de Darío, não somente os cisnes e o modernismo); se quiser podemos passá-la em Paris na casa de alguém que tenha o aparelho de vídeo, e você poderá vislumbrar uma das facetas deste país tão ameaçado, tão pobre e tão amável.
Afora isso, estive em expedições fronteiriças que me deixaram fraco e destroçado por mosquitos e outros insetos com uma clara vocação contrarrevolucionária.Tentando descansar dessa aventura, fui com os Flakoll a Corn Island, um pequeno paraíso à base de coqueiros e lagostas, a uma hora e meia de teco-teco de Manágua, na costa atlântica. E justamente lá eu tive uma nova cólica renal, desta vez de matar, que me deixou só pele e osso pelas dores, vômitos e pedrinhas por fim expelidas. Não estou nada bem nessa ida para o México, e na volta consultarei Elmaleh para ver como dar a volta por cima. O que mais me custa é lutar contra uma espécie de atonia ou de indiferença que nunca fez parte de minha personalidade; mas hoje em dia a química sabe como injetar-nos ao menos um grau normal de vitalidade.
Alegra-me saber que você gostou tanto de Avalovara, pois ainda que eu não me lembre dele em detalhes, ficou em mim como uma grande experiência de leitura. Coisas como a imagem de “Cecilia, rodeada de leões”, perduram em minha má memória destes tempos. Às vezes penso que o que li de mais forte nos últimos dez anos é a obra de dois brasileiros, Clarice Lispector e Osman Lins; dá vontade, quase, de me aventurar ao português em busca de outras coisas que talvez existam.
Assim que eu voltar nos vemos. Um abraço bem forte,
Julio
[1] Transbordam.
[2] Grande magazine.
[3] Carregador.
[4] Conto de Edgar Allan Poe.
[5] O hífen no original corresponde à mudança de linha: accr-oc.
[6] Revista da Universidade de Porto Rico.
[7] Não tema.
[8] Escritor, filho de Macedonio Fernández.
[9] Sociedade Argentina de Escritores.
[10 ]Café em Buenos Aires.
[11] Proibido.
[12] Uma loja.
[13] Expressão latina para “tenho horror em ter que dizê-lo”.
[14] Viaja-se muito bem no Florida, que acaba de ser modernizado etc.
[15] Aurora Bernárdez, primeira mulher de Cortázar.
[16] Temporada nas latrinas.
[17] Quanto ao rancho.
[18] Ciclista italiano e boxeador argentino, estrelas do esporte na década de 50.
[19] Veja, a gente também tem problemas…
[20] Alusão ao livro de poemas El Son Entero(1947), do poeta cubano Nicolás Guillén.
[21] Ugné Karvelis, segunda esposa de Cortázar.
[22] International Association for Educational Assessment.
[23] Em tempos idos.
[24] Juan Goytisolo, escritor espanhol.
[25] A carta está escrita num cartão de boas-festas do Comitê de Damas Rotárias de Arequipa.
[26] Pintor e escultor argentino.
[27] Carol Dunlop, a última esposa de Cortázar, falecera em 2 de novembro de 1982.