A turma do Sítio, com Tia Nastácia de turbante: “negro” é um vocativo recorrente – e jocoso CREDITO: RAFAEL SAM
Monteiro Lobato da minha infância
Cresci sentindo imensa compaixão por Tia Nastácia
Itamar Vieira Junior | Edição 172, Janeiro 2021
A polêmica obra de Monteiro Lobato voltou ao debate público porque sua bisneta acaba de lançar uma adaptação de Narizinho Arrebitado, uma das onze histórias que integram o livro Reinações de Narizinho. A iniciativa atualiza as ilustrações originais, dando à trama uma identidade visual mais próxima ao nosso tempo. Tia Nastácia, por exemplo, deixa seu habitual figurino para ser representada de turbante, bata e colar de búzios pelos traços de Rafael Sam. O principal motivo da adaptação de Cleo Monteiro Lobato é fazer com que seu bisavô seja descoberto pelos mais jovens. Para tanto, ela suprimiu da versão anterior trechos que hoje soam racistas. Assim, a frase “a boa negra deu uma risada gostosa, com a beiçaria inteira” virou apenas “Nastácia deu uma risada gostosa”.
O racismo nas obras de Lobato tem sido alvo de intensa discussão nos últimos anos e atingiu seu ápice com o parecer técnico de 2010, do Conselho Nacional de Educação, sobre outro livro do escritor, Caçadas de Pedrinho. O documento recomendava a sua utilização em sala de aula apenas “quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil”, de modo a acolher os diversos segmentos populacionais que formam a sociedade brasileira, em especial os negros.
Ao ler a notícia sobre a adaptação, de imediato tentei recordar qual era a minha percepção, no passado, acerca das criações de Lobato. Interessei-me principalmente pelas referências que marcaram a minha infância, distantes do atual debate sobre o assunto. Ainda muito pequeno, assisti, com minha mãe e meu irmão mais novo, à primeira versão da série Sítio do Picapau Amarelo, transmitida pela Globo entre 1977 e 1986. A obra audiovisual é uma adaptação dos inúmeros livros infantis de Lobato que tinham como paisagem o sítio de Dona Benta, onde se desenrolavam as tramas vividas por seus netos Pedrinho e Narizinho, Tia Nastácia, a boneca falante Emília, o Visconde de Sabugosa e demais personagens que povoam a imaginação de muitos brasileiros. Eu, particularmente, sentia uma atração especial por esse universo fantástico e ainda o tenho como referência dos momentos mais criativos de minha infância.
Foi só mais tarde que entrei em contato com a literatura de Lobato propriamente dita: primeiro, com textos avulsos contidos nos livros escolares; em seguida, com Reinações de Narizinho e Caçadas de Pedrinho. A leitura da obra e a série televisiva surtiram efeitos distintos sobre mim. Talvez por ter alcançado os escritos de Lobato poucos anos depois de ver a adaptação, seus textos não me encantaram tanto quanto a série, suavizada nas passagens de racismo explícito. As aventuras literárias da turma do Sítio não conseguiam competir com o brilho urbano dos livros infantojuvenis de Lúcia Machado de Almeida e Marcos Rey.
Na série, eu gostava especialmente de Dona Benta e Tia Nastácia, duas personagens que remetiam às mulheres da minha família, descendente de portugueses, tupinambás e negros escravizados oriundos da Nigéria e de Serra Leoa. Dona Benta, interpretada por Zilka Salaberry, era o estereótipo da boa avó, terna e carinhosa. Minha avó materna também tinha o cabelo branco, usava vestidos em casa e nutria grande afeição pelos trabalhos manuais, principalmente a costura. Por sua vez, Tia Nastácia me evocava parentes que usavam lenços para cobrir o cabelo crespo, sempre “por arrumar”, como elas mesmas diziam, considerando-os fora do padrão de beleza vigente. Exibindo uma bondade subserviente, a personagem transitava sobretudo pela cozinha, ambiente doméstico que foi meu lugar preferido durante muitos anos, em razão dos cheiros e sabores que ativavam os meus sentidos.
Tia Nastácia também era quem me despertava mais compaixão no Sítio, talvez por eu compreender que aquela não era a sua família e suspeitar de sua carência por vida própria. A ela só cabia servir, e uma vida de servidão parece muito triste, mesmo para uma criança que não sabe bem o porquê das coisas. Hoje percebo que não encontrei na Tia Nastácia literária o mesmo carisma que Jacira Sampaio emprestou à serviçal da tevê. A atriz, com sua sutil interpretação, conferiu humanidade à Tia Nastácia da série – atributo de que carecia a dos livros. Sempre alvo de chacotas e preconceito por parte de Emília, de Pedrinho e do narrador Lobato, a personagem foi desumanizada na literatura, destinada a um lugar de subserviência, comumente associado às mulheres negras de uma época.
Todas essas questões são indissociáveis do autor e mantêm relação direta com minha própria história. A minha identificação racial tem sido vivida e formada desde que nasci em Salvador. Transitei do “pardo” registrado na certidão de nascimento ao “moreno” que o projeto eugenista brasileiro, do qual Lobato foi divulgador, me destinou durante um tempo. Nem branco nem preto; a mestiçagem, símbolo de uma falsa democracia racial, era a justificativa para que eu permanecesse no limbo de minha própria existência. Enquanto a remota origem europeia, mesmo que se resumisse ao casal de imigrantes portugueses pobres e analfabetos que chegou aqui na década de 1910, era exaltada como algo a ser lembrado, o equivalente não ocorria com minha ascendência negra e indígena. O projeto de embranquecimento brasileiro culminou num apagamento brutal da minha memória familiar.
Aos poucos, fui descobrindo que há versões distintas sobre a existência de vários dos meus ancestrais. Embora uma prima mais velha garanta que minhas bisavós paternas eram negras – e isso seja evidente nos poucos registros fotográficos que temos –, muitos continuam a chamá-las de “morenas”. Meu bisavô José Alcino, o Seu Zeca, pai da minha avó que evocava os afetos que encontrei em Dona Benta, também é descrito como “mulato” por diversos descendentes. Insistir em denominá-lo negro, principalmente para os mais velhos, ainda soa ofensivo. Negro é o vocativo recorrente para descrever Tia Nastácia na obra de Lobato, sempre de maneira jocosa. Assumir-me negro-indígena, além de resgatar a origem da minha existência social em um país estruturalmente racista, se tornou um ato político diante do grande projeto eugenista que tentou e ainda tenta nos extinguir.
É impossível dissociar o escritor de sua obra, até mesmo porque o eugenismo do homem Lobato se reflete na sua literatura. Também é impossível imaginar como Lobato – figura contraditória, que editou Lima Barreto, um autor negro, quando ninguém mais queria fazê-lo –, reagiria à leitura de seus próprios textos nos dias de hoje. A reedição de Narizinho Arrebitado, com a retirada de trechos racistas, não apaga a marca do preconceito na obra de Lobato, como o que está registrado em sua correspondência pessoal sobre a decepção com o fato de seu livro O Presidente Negro, por ser considerado racista, não ter encontrado editor nos Estados Unidos, onde o escritor era adido cultural: “[Eu] devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros.” Mesmo assim, não defendo qualquer censura à sua obra. Ela deve continuar disponível para ser lida como exemplo de uma época e de um país onde ainda precisamos lidar com a chaga do racismo.
Leia Mais