John le Carré na sua casa em Londres, em 1983: em sua obra há uma noção atávica de certo e errado; às vezes, ele soa como um pastor falando sobre os perigos de cair em tentação CRÉDITO: TRINITY MIRROR_MIRRORPIX_ALAMY_FOTOARENA_1983
Sobre a última entrevista de John le Carré
Moralidade e culpa nas derradeiras declarações do maior escritor de espionagem do século XX
Alejandro Chacoff | Edição 205, Outubro 2023
No início da década de 1950, David Cornwell era um estudante de graduação na Universidade de Oxford. Bom aluno, versado nos trejeitos e maneirismos da aristocracia de seu país, escolhera letras modernas como especialização. Certo dia, seu pai, Ronald Thomas Archibald Cornwell, apareceu na faculdade de surpresa. Furioso, perguntou ao tutor que história era aquela de o filho estudar letras, e não direito, como havia lhe dito? Apesar da pressão do pai, o tutor de David na época, Vivian Green, não se comoveu. “Mostrou a porta de saída para ele”, David relembra.
Na superfície, o episódio é prosaico. O pai que aspira a ter um filho advogado é um clichê – talvez antiquado a essa altura, mas banal em sua universalidade. O que dá potência à anedota é sua ambiguidade implícita. Ronald Cornwell (“Ronnie”), o pai de David, era um estelionatário que passou a vida dando golpes financeiros. Na descrição do próprio filho, mudava de endereço com frequência, saindo na surdina e deixando contas por pagar. Entre idas e vindas, passou cerca de sete anos na prisão. Caía e depois se reerguia com novos esquemas, fiando-se em sua retórica, no seu carisma, combinando seu talento para enganar com o desejo inconsciente que muitas pessoas têm de serem enganadas. Um filho advogado, formado em Oxford, teria sido um parceiro valioso nos negócios; mas poderia, ao revés, trazer redenção, um expurgo moral retroativo. Segundo o filho, “Deus era um grande chapa dele. Se acreditava ou não em Deus era algo misterioso, mas ele tinha certeza que Deus acreditava nele”. Uma frase recorrente de Ronnie: “Quando eu for julgado, meu filho, e julgado serei, será pela forma como tratei você e seu irmão.”
Reportagens apuradas com tempo largo e escritas com zelo para quem gosta de ler: piauí, dona do próprio nariz
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