Morar à beira-mar
Da Barra ao Flamengo, as mutações dos prédios da orla mostram não só os estilos diferentes mas também as concepções de vida urbana que os cariocas tiveram ao longo de mais de setenta anos
Danuza Leão e Fernando Serapião | Edição 14, Novembro 2007
ALFABARRA
Av. Sernambetiba, 6500
A área verticalizada dos bairros da orla carioca pode ser dividida em três partes. A mais antiga é resultado do Plano Agache, do final dos anos 20, que definiu a chamada cidade-quarteirão, situação em que os prédios são construídos no alinhamento da calçada. Exemplo desse tipo de ocupação são o centro, Flamengo e Copacabana. Em segundo lugar estão os bairros intermediários, onde a cidade-quarteirão convive com edifícios isolados, independentes um dos outros. É o caso de Botafogo, Ipanema e Leblon. Por fim, há a cidade moderna, planejada, com torres isoladas, como ocorre em São Conrado e na Barra.
Assim, na Barra, a vista para o mar foi democratizada. De acordo com o plano de Lucio Costa, mesmo quem está mais distante da praia pode desfrutar da brisa e enxergar o mar, graças aos prédios altos e afastados uns dos outros. Embora esse planejamento tenha melhorado as condições de ventilação, de iluminação e, sobretudo, de proteção ambiental, ele não garantiu a qualidade da arquitetura dos prédios. Na Barra, é dificílimo encontrar boa arquitetura. É um salve-se quem puder, com ênfase no grotesco populista. Tal como os cassinos de Las Vegas, os prédios seguem estilos temáticos. Há o “estilo Miami”, o “estilo Nova York”, o “estilo mercado comum” e já desponta até mesmo o “estilo neoclássico-cafona-paulistano”.
Nesse show de horrores, entre os edifícios beira-mar, destaca-se (para melhor) o Alfabarra. É um conjunto de prédios de apartamentos e áreas comerciais (há ainda escola, igreja e clube), desenhados no início da década de 80 por uma equipe liderada por Luiz Paulo Conde, que dezessete anos depois foi prefeito do Rio e hoje é presidente de Furnas.
O empreendimento é dividido em duas partes, separadas pela avenida Ayrton Senna: na área mais próxima do centro, chamada de Alfabarra 1, ficam cinco torres de dezoito pisos, que abrigam mil apartamentos de um e dois quartos. Na gleba oposta ficam doze prédios, com seis andares, e sete com dezoito pisos, que somam duas mil unidades com até quatro quartos.
A torre mais interessante fica no lado leste, o mais antigo, e é chamada de Alfapark, o único apart-hotel do conjunto. Diversos detalhes, como os pequenos balcões arredondados, a predominância de cheios sobres vazios nas fachadas, as varandas reentrantes e os toldos fazem lembrar a arquitetura protomoderna carioca – a paixão de Conde.
Aquilo que, do ponto de vista arquitetônico, é exemplar – morar num bairro arejado, com as facilidades do comércio na porta de casa – contudo, não funcionou na vida real. No Alfabarra 1, a zona comercial é quase uma cidade fantasma. FERNANDO SERAPIÃO
O Rio sempre foi polarizado. No século XIX, o máximo era viver em São Cristovão, onde morava a família imperial. Os chiques da época tinham horror à praia, que era considerada lugar de gente pobre, e só entravam no mar por recomendação médica. Pouco a pouco o Rio foi indo, inexoravelmente, rumo ao sul. Primeiro, era bem morar no Flamengo e Botafogo. Depois, em Copacabana. Depois, Ipanema, depois Leblon, depois São Conrado, agora Barra e Recreio. (Daqui a pouco, será in o carioca morar na praia do Gonzaga, em Santos). Houve um tempo em que a divisão era entre a Zona Sul e a Norte, hoje a cidade se divide entre as pessoas que moram ou não na Barra.
A Barra e o resto da cidade são dois universos distintos, que raramente se misturam. Quem mora lá freqüenta as academias de ginástica, salões de beleza, médicos, dentistas, psicanalistas, hospitais, butiques, cinemas, veterinários, escolhidos não pelo critério de serem os melhores, mas por outro, muito mais importante: são localizados na Barra. Lá não há ruas nem calçadas, todo mundo anda de carro. Os prédios são enormes e sem características marcantes, como o Alfabarra. A alma do bairro está nos shoppings.
As mulheres costumam ser louras, de cabelo comprido e liso, e fazem muita ginástica.
Quem mora entre o Leblon e o centro dá um grito se alguém sugerir jantar num restaurante além-túnel. Pode ser o melhor do mundo, eles não querem nem saber. E tente convidar um habitante deste outro planeta a jantar do lado de cá: eles vão dar uma desculpa qualquer, mas de lá não saem. Por isso bons restaurantes do Rio têm aberto filiais na Miami carioca. É imenso o número de pessoas que, tendo se mudado para lá, acabaram transferindo seus escritórios para perto de suas casas. Mal disfarçando a empáfia, eles contam que levam de cinco a sete minutos para ir e voltar do trabalho.
A maior tragédia de uma mãe é quando seu filho comunica que vai se mudar para a Barra. Ela sabe que vai ser pior do que se ele fosse morar em São Paulo ou no exterior. Se fosse para a Europa, ele sentiria saudades da terra em que nasceu, e viria visitar seu país uma vez por ano; ela também iria encontrá-lo e, apesar da falta que sentiria do seu filho, teria que se conformar em vê-lo tão pouco. Mas se ele for morar e trabalhar na Barra é muito pior. Adeus almoços de domingo, jantares familiares, telefonemas do carro, pelo celular, enquanto ele estava no congestionamento do trânsito. Se seu filho se mudar para a Barra, prepare-se para vê-lo uma ou duas vezes por ano, quando ele tiver que sair do seu paraíso para uma importante reunião de trabalho em, digamos, Botafogo. Aí, talvez – talvez – ele telefone e diga que, como estará perto de sua casa, vai dar uma passada para te ver. Mas por que essa mãe não vai visitá-lo naquele apartamento tão lindo, com um varandão enorme de frente para o mar?
É simples: assim como os de lá se recusam a vir para cá, os de cá têm horror a ir para lá, mesmo para ver um filho querido. Resulta que a Barra desagregou as famílias e separou os amigos, pois quem mora lá passa a se dar apenas com quem mora lá. Por isso, previna-se: quando conhecer aquela pessoa maravilhosa, que poderia vir a ser seu amor definitivo, pergunte onde ela mora. E só dê prosseguimento ao romance se morarem do mesmo lado da cidade.
A Barra se tornou também o reino dos jogadores de futebol, que compraram apartamentos imensos e caríssimos, para a infelicidade dos seus vizinhos. Os moradores odeiam quando as famílias desses jogadores – – imensas, com montes de crianças – vão visitá-los e usufruir dos luxos que estes condomínios oferecem, como a piscina e demais apetrechos de lazer. Houve até um caso famoso em que, não sabendo que se tratava dos pais de um desses jogadores, alguns moradores chamaram o porteiro para impedi-los de subir pelo elevador social. DANUZA LEÃO
HOTEL NACIONAL
Av. Niemeyer, 769
Entre as obras de Oscar Niemeyer na orla carioca (a sede da falida Manchete, no Flamengo; o prédio da Fundação Getúlio Vargas, em Botafogo; e o edifício JK, em Ipanema), o Hotel Nacional é a mais inspirada. O autor afirma, no entanto, que o “projeto original foi traído” e que foram usados “revestimentos deploráveis que comprometem a harmonia”. O projeto foi modificado em função da sua construção conturbada, que envolveu um cliente cheio de opiniões e um arquiteto indo e vindo da Europa, devido ao seu auto-exílio. Exageros à parte – qualquer arquiteto ficaria feliz de ter assinado tal obra –, o volume do Hotel Nacional impressiona, mesmo que, dos cinqüenta andares previstos, só trinta tenham sido construídos.
A construção é dividida em duas partes: a torre de planta circular com 20 apartamentos por andar e a base que possui conformação sinuosa e cinco pisos. O contraste formal entre estas duas partes é um achado: enquanto a base, de forma barroca, define uma ocupação maciça e urbana, a torre, quase minimalista, esguia e alta, não agride a paisagem. A agressão é feita ao espaço interior: numa época em que não existiam vidros especiais, não havia ar-condicionado que desse conta do calor do sol, que bate em cheio na face norte.
De forma absolutamente incomum diante da legislação, os dois quarteirões que o hotel ocupa foram unificados pelo volume do embasamento, e a via pública passa por baixo de um trecho da construção. Sobre o volume sinuoso ainda resiste, mesmo que maltratado, o jardim suspenso de Burle Marx.
O volume do fundo da base, ocupado pelo centro de espetáculos e convenções, foi detalhado pela empresa do idealizador do hotel, José Tjurs, de quem os contemporâneos contam que era atarracado e rude no trato. Ele começou a vida como taxista e construiu um império hoteleiro e de serviços, que incluía o Hotel Jaraguá, edifício que abrigou o jornal O Estado de S. Paulo, o Hotel Nacional de Brasília e os Conjuntos Nacionais de São Paulo e da capital federal. FS
Inaugurado em 1972, o Hotel Nacional tinha tudo para ser um sucesso. Ele ficava numa moldura perfeita para explicar a cidade: de um lado, uma das praias mais lindas do Rio, do outro a Rocinha, que naquele tempo não era perigosa. Ele era o maior e mais moderno hotel da América Latina, e marco da expansão imobiliária que, desde a década anterior, começava a tomar o rumo da Barra. A receita começou a desandar pouco depois da inauguração, quando um incêndio no teatro matou várias pessoas.
Ainda assim, durante mais de duas décadas, o hotel foi símbolo do glamour carioca. Cenário de filmes, ele sediou e festival de Cinema do Rio e o Free Jazz Festival e hospedou celebridades como Michael Jackson, Diego Maradona, Michelangelo Antonioni, Ray Charles, Little Richard e James Brown.
Num dos festivais de jazz, Chet Baker chegou atrasadíssimo. Tomou tantas caipirinhas que se esqueceu da vida, mas descontou tocando horas seguidas. Outro grande momento foi a apresentação de Miles Davis, uma verdadeira apoteose. Foi lá que Cazuza fez um de seus últimos shows, já em cadeira de rodas.
O Nacional fechou as portas em 1995, quando a sua controladora, a Hotéis e Turismo da Guanabara, decretou falência. Um ano depois, a Interunion Capitalização, dona do extinto Papa-Tudo, comprou o empreendimento. Pouco depois, Artur Falk, dono da Interunion, foi condenado por gestão fraudulenta e emissão de títulos sem lastro financeiro. Com isso, a empresa e o hotel entraram em processo de liquidação.
Ele está completamente abandonado. Seu interior foi saqueado, até as torneiras foram levadas. Quinze seguranças particulares vigiam a parte interna do hotel, que, embora tombado pelo Patrimônio Histórico, está cercado apenas por frágeis tapumes de madeira.
Já houve quatro tentativas de vendê-lo, frustradas por falta de compradores, surgimento de liminares de última hora ou embargos judiciais de credores da massa falida. O imóvel valeria algo entre 70 e 80 milhões de reais. Há também as dívidas, que os proprietários garantem não ultrapassar R$ 15 milhões, enquanto os credores calculam ter cerca de R$ 40 milhões a receber. DL
CONDOMÍNIO HORIZONTAL
Av. Niemeyer, 179
No início dos anos 60, Sérgio Bernardes foi contratado para projetar um condomínio horizontal em um terreno fantástico – uma península entre a avenida Niemeyer e o mar – e trocou os honorários pelo lote na ponta do terreno. As demais casas, oito, cada qual com três andares, formam um volume único. A rua interna de acesso, que separa as casas das respectivas garagens, também leva à casa de Bernardes, situada um pouco abaixo. Ela é um deslumbre. A sua entrada é por cima, em um pavilhão transparente, onde ficavam a sala de estar, jantar e a cozinha. Embaixo, estavam os quartos e a área de lazer. Em outro volume, ficava a garagem e o escritório do projetista, enfant terrible da arquitetura nacional.
Reza a lenda que Bernardes inventou a laje pré-moldada, de concreto e cerâmica, que é utilizada em 99% das construções brasileiras – e foi experimentada pela primeira vez na casa da avenida Niemeyer. Os muros de pedra, levemente inclinados e com pequenas aberturas, se assemelham às fortalezas da costa brasileira. Recebendo presenças ilustres, como Le Corbusier, Bernardes se sentiu seguro por quase uma década, desfrutando de ambientes limpos, com poucas mobílias, típica casa de arquiteto (enfeites, adornos e bibelôs são coisas de decorador, ora!). Até que a casa foi invadida por um assaltante. Ao perceber a presença do meliante, Bernardes se aproximou e começou a conversar. Depois de um tempo, ele disse: “Olha, odeio esta prataria de minha mulher. Vou te ajudar a juntar tudo, você leva e resolve meu problema”. Acabou sendo padrinho do filho do assaltante.
Em 1993, Cláudio, filho de Bernardes, reformou a casa a pedido de um novo proprietário. Ela estava quase em ruínas, mas Cláudio preferiu não derrubá-la completamente. Lá ainda estão os muros de pedra, que sustentam o teto com espelho d’água. FS
O condomínio horizontal de Sergio Bernardes é vizinho ao Sheraton. Mas, antes dele, ficava ali o hotel Colonial. Como ainda não havia motéis, o Colonial quebrava o galho. O título de campeão dos amores transitórios, hoje, fica um pouco mais adiante, no VIPs, um dos motéis mais antigos do Rio.
Dos apartamentos do condomínio de Sergio Bernardes se contempla uma das vistas mais bonitas do Rio, a do Leblon, Ipanema e das ilhas Cagarras. À noite, vê-se a Vieira Souto iluminada. Algumas janelas dos quartos dos apartamentos do condomínio dão para a praia do Sheraton, o que permite dormir ouvindo o ritmado ruído das ondas. O chato é que, às vezes, se dorme ouvindo os tiros disparados na favela do Vidigal, do outro lado da avenida Niemeyer.
Logo que sua casa ficou pronta, Sergio Bernardes, orgulhoso, chamava todos os dias um grupo diferente para mostrar sua obra – com direito a banho de piscina. Muitos famosos moraram lá, caso da atriz Carolina Ferraz e do fotógrafo de moda Mario Testino. Na casa de Bernardes morou uma época João Roberto Marinho, um dos donos da Globo. DL
CAP FERRAT
Av. Vieira Souto, 564
Um decreto de 1970 mudou as normas de altura máxima na construção dos edifícios do Rio. Ele permitiu os edifícios mais altos, desde que afastados das divisas laterais um metro por piso. Ou seja, para ter vinte andares teria que ter recuos de vinte metros. Era o começo do fim do Plano Agache e da cidade-quarteirão. Os novos prédios, altos e isolados, mudaram a cara de Ipanema. Sérgio Dourado, o construtor de boa parte desses edifícios, ficou conhecido como “O algoz de Ipanema”. Em 1975, novas regras permitiram varandas nas construções, andares só de garagem e áreas de lazer, além de limitar em dezoito pisos a altura máxima para prédios isolados.
Construído em 1986, o Cap Ferrat, é resultado dessas leis. Mas se as dimensões dos apartamentos e a situação privilegiada fazem com que ele tenha os apartamentos mais caros da orla carioca, seu pedigree arquitetônico não tem nada de exclusivo.
Tirando o gosto corrente da época, que valorizava revestimentos de granitos escuros, vidros fumê e janelas de alumínio bronze, é curioso observar como o mercado regrediu. Com boa vontade, percebe-se até algumas virtudes no Cap Ferrat, que ainda se relacionava com a arquitetura que se aprende nas universidades. Os grandes pilares do Cap Ferrat, por exemplo, são salientes nas fachadas, seja nas extremidades ou no miolo, e dão a tônica do projeto. Isso desapareceu nos grandes lançamentos de hoje, nos quais predominam as grandes varandas são a tônica (em São Paulo, elas comportam até churrasqueiras). Quem diria, mas dentro do que apresenta o mercado imobiliário hoje, o Cap Ferrat deixou saudades. FS
Quando os apartamentos do edifício Cap Ferrat – de 600 m2 – foram postos à venda, no final do anúncio havia as seguintes palavras: “sigilo absoluto”. É que o preço era tão alto, mas tão alto, que os compradores não queriam aparecer. O edifício, pelo seu luxo extravagante, foi apelidado de “Gaiola das Loucas”, e até hoje assim é conhecido.
Um apartamento no prédio não sai por menos por menos de 3,5 milhões de dólares. Só de energia elétrica, (a conta é uma só, dividida entre os moradores) são R$ 25 mil mensais. O condomínio no prédio é de R$ 5 mil. A cobertura duplex, com 1 300 m2, quatro suítes e cinco vagas na garagem, está avaliada em R$ 25 milhões. O preço se justificaria porque a atual legislação não permite mais prédios tão altos na orla de Ipanema. Mas ela não está à venda. Murilo Meirelles, proprietário desde a inauguração do prédio, já recebeu muitas propostas, mas continua irredutível.
Vittorio Tedeschi, empresário envolvido na operação Roupa Suja, da Polícia Federal, acusado de fraudar licitações em hospitais públicos, está em prisão domiciliar no Cap Ferrat. No réveillon de 2005, oito policiais foram mobilizados para cuidar da entrada de seus convidados para a megafesta, regada a champanhe de 300 dólares a garrafa.
Pouco depois de o Palace II ter desabado, na Barra, o seu proprietário, Sergio Naya, procurou um empresário de Brasília, José Celso Gontijo, e lhe ofereceu o seu apartamento no Cap Ferrat. Gontijo interessou-se pela compra e, depois de acertado o preço, pagou 50% de sinal. Mas Naya jamais desocupou o apartamento, não entregou as chaves a Gontijo e a escritura nunca foi lavrada. Para pagar débitos de Naya, o apartamento acabou indo a leilão e o empresário brasiliense foi o comprador. Ou seja: Gontijo pagou pelo belo apartamento uma vez e meia seu valor. DL
EDIFÍCIO JK
Av. Vieira Souto, 206
A legislação carioca da época em que o edifício JK foi construído só permitia edifícios em Ipanema com pilotis e mais quatro andares. No JK, no número 206, o maior apartamento ocupa os dois últimos pisos mais a cobertura. Há diversos edifícios do mesmo tamanho e perfil na Vieira Souto (outro interessante é o n° 350, que foi desenhado por Álvaro Vital Brazil), mas o JK é o único edifício residencial da orla que foi desenhado por Oscar Niemeyer. Se estivesse em Nova York, seria o equivalente a uma town house no Upper East Side, de frente para o Central Park e desenhada por Philip Johnson, um dos papas da arquitetura moderna.
Se a legislação foi sábia ao demarcar um gabarito baixo – o que espantou Ipanema de ter, para o bem ou para o mal, o destino de Copacabana – ela também restringiu a criatividade dos arquitetos. No JK, baixou o santo de Mies van der Rohe para conter a voluptuosidade do projetista que acabara de desenhar Brasília. O que se vê no pequeno prédio é só a essência: um prisma de vidro, de 20 metros de largura por 14 de altura, suspenso por pilotis com três apoios centrais. E só. A assinatura de Niemeyer – suas famosas curvas – está um tanto quanto escondida. Uma abertura sinuosa e uma escada escultórica interligam, visual e fisicamente, os dois últimos andares do prédio. Se os reflexos ajudarem, o curioso do calçadão consegue enxergar o gesto de Niemeyer.
O prédio foi construído por Sebastião Paes de Almeida, presidente do Banco do Brasil e ministro da Fazenda (interino) de JK. Paes de Almeida emprestou um apartamento para o ex-presidente morar, o que causou a JK um processo por corrupção, do qual foi inocentado. Por isso, Juscelino não guardava boas lembranças do edifício. FS
Em junho de 1964, Juscelino pretendia pedir asilo numa embaixada antes de partir para o exílio. Começaram entendimentos para que se refugiasse na residência do embaixador da Espanha. Seria muito prático, já que ambos moravam no mesmo edifício da Vieira Souto. A Espanha não tinha como Brasil acordo que permitisse asilo político, mas o embaixador Jaime Alba Delibes, depois de consultar seu governo, recebeu JK. Dias depois Juscelino embarcou para Madri, iniciando um exílio – interrompido por dois breves retornos – que duraria até 9 de maio de 1967.
Nos últimos anos, os mais famosos moradores do prédio foram Caetano Veloso e Paula Lavigne, que entregaram a reforma do imóvel a Claudio Bernardes. Com a separação, em 2004, o baiano instalou-se a 100 metros da mulher e dos filhos, num flat com um décimo do tamanho – suíte, quarto, cozinha e banheiro – no apart-hotel Residence Service, onde mora também seu ex-sogro, o advogado Arthur Lavigne. DL
YPIRANGA
Av. Atlântica, 3940
O estilo arquitetônico que caracteriza Copacabana é o art déco. Intermediário entre o ecletismo (que misturava vários estilos) e o moderno, os prédios art déco fazem alusão ao progresso, à velocidade e às formas geométricas. São fáceis de serem identificados pelas suas varandas arredondadas, volumes salientes, escalonamentos e simetrias. Muitas vezes fazem alusões a temas, como motivos marinhos ou relacionados à arte marajoara. Na beira-mar de Copacabana, a quadra entre a rua República do Peru e a Fernando Mendes, é inteirinha ocupada por edifícios do gênero.
O art déco por excelência da orla copacabanense é o Ypiranga, desenhado, em 1935, por Mário Freire. Ele tem grandes varandas em balanço, num desenho sinuoso, que os proprietários fecharam com janelas há bastante tempo. Devido aos desenhos das varandas, o edifício era conhecido pelo apelido de “Mae West”, diva hollywoodiana de fartos seios.
Além de abrigar na cobertura o escritório de Oscar Niemeyer – que modificou parcialmente a fachada – no plano arquitetônico há um vizinho ilustre: entre o Ypiranga e a esquina da Júlio de Castilhos, fica um edifício desenhado, nos anos 60, por Sérgio Bernardes. FS
Como a maioria dos edifícios próximos ao Posto 6, o Ypiranga é um prédio de pessoas mais idosas. É uma vizinhança tranqüila, até um pouco sem graça. Niemeyer não mora ali. Chega todos os dias às nove da manhã e fica até o final da tarde.
Os outros moradores têm uma forte relação com o prédio. Há uma disputa pela administração e o síndico é sempre ajudado pelos moradores. O condomínio é supereconômico: trezentos reais.
Nas imediações do edifício há uma feira de bugigangas para turistas que é um pavor. Mas confusão mesmo só acontece no réveillon, como é de praxe em toda a Atlântica. Para facilitar a vida dos porteiros, os moradores fazem uma lista de convidados e deixam na porta. DL
GOLDEN GATE
Av. Atlântica, 2038
Copacabana também teve seu auge. Entre os edifícios residenciais, o Golden Gate é a prova disso. Na época em que foi construído, no final dos anos 40, ele era um dos mais requintados da cidade, e continuou nessa condição por várias décadas. O projeto e execução foram realizados pelo escritório Costa Pereira Bokel. O prédio foi rebatizado de Tancredo Neves, mas ainda é mais conhecido pelo nome original.
De inspiração protomoderna, a fachada é discreta. Se não chega a ser uma obra de grande interesse arquitetônico, demonstra, pelo menos, alta qualidade de arquitetura imobiliária, da qual há décadas não se tem notícia. A fachada é demarcada por uma saliência arredondada, antes destinada a uma varanda que se estendia por toda a frente. As varandas foram transformadas numa espécie de jardim de inverno, ampliando ainda mais a área dos imóveis.
De fora, chama a atenção o clone ao lado, o Silver Gate. Com dois andares a mais e com pé-direito do térreo mais baixo, o vizinho foi construído dez anos mais tarde, pela mesma empresa. O irmão gêmeo surgiu no auge da explosão imobiliária de Copacabana. Em 1955, foram registrados incríveis 225 novos prédios no bairro.
Com um apartamento por andar, a distribuição interna do Golden Gate é bem setorizada – na frente fica a área de estar, no miolo, a zona de serviço, e no fundo, com mais silêncio, os dormitórios. FS
O Golden Gate era o edifício dos mineiros. Lá moraram Tancredo Neves Magalhães Pinto, e Maria Lúcia Pedroso, a amada de JK. O edifício, calmo e discreto, é dos mais luxuosos de toda a Zona Sul. Lá ninguém dá festas de arromba, mas grandes conchavos políticos aconteceram ali, inclusive no início de 1964, sempre com a proverbial discrição mineira. Quem mora no Golden Gate costuma entrar com o carro na garagem, mesmo que seja um táxi, e de lá toma o elevador direto para o apartamento, para não ser visto na portaria por ninguém, nem pelos vizinhos, nem pelos porteiros.
Eis que um dia começou a subir, bem ao lado, um edifício exatamente igual ao Golden Gate. A planta do apartamento era igual, a fachada igual, mas havia algo que fazia com que ele não tivesse a nobreza e o porte do original. Talvez os seus moradores, que não eram nem poderosos, nem famosos.
Assim surgiu o Silver Gate, que não chegou a fazer história na cidade, mas está lá, firme, desfrutando da fama e do apelido do seu vizinho.
O estilista Valentino, quando esteve no Rio, no carnaval de 2004 (e aproveitou para dar uma rápida rejuvenescida com o cirurgião plástico Carlos Fernando Gomes de Almeida), caiu de amores por Copacabana. Começou a negociar a compra da cobertura do Silver Gate. A um amigo que lhe perguntou por que não a Vieira Souto, a resposta foi: “Aquilo ali me lembra Rimini”, referindo-se à cidade da costa italiana. Valentino visitou o apartamento e chegou a começar as negociações, posteriormente vetadas pelo grupo que controla sua marca, que considerou o Rio muito inseguro para o maestro da moda. Ele estava disposto a pagar cinco milhões de dólares pelo apartamento. DL
EDIFÍCIO CHOPIN
Av. Atlântica, 1782
O desenho do Chopin é atribuído a Jacques Pilon, arquiteto de origem francesa que trabalhou em São Paulo. Ele desenhou, entre outras obras, a biblioteca Mário de Andrade, no centro da capital. Quando o Chopin foi desenhado, no início dos anos 50, no entanto, quem chefiava os projetos no escritório de Pillon era Adolf Franz Heep – um racionalista da gema.
Nascido na Alemanha, Heep trabalhou com duas lendas da arquitetura moderna. Em Frankfurt, foi assistente de Adolf Meyer e, em Paris, colaborou no ateliê de Le Corbusier. Com a falta de trabalho na Europa pós-guerra, Heep imigrou para o Brasil e se estabeleceu em São Paulo. Seu trabalho solo ainda carece de um lugar mais alto no panteão arquitetônico. Ele é o autor, por exemplo, de três belíssimos edifícios residenciais no 16ème arrondissement, em Paris, que estão entre os primeiros exemplares modernos do gênero e, no entanto, não fazem parte do roteiro arquitetônico da cidade.
Se o volume do Chopin não possui propriamente novidades – as fachadas são marcadas por grelhas e os únicos destaques são as marquises de acesso – por que o projeto tem valor? Sua grande idéia foi utilizar o vazio da piscina do hotel vizinho, o Copacabana Palace, para abrir as áreas nobres de outros edifícios que formam um conjunto com o Chopin – o Balada, o Prelúdio e o Barcarola. O acesso a estes prédios é realizado por meio de uma rua interna, situada entre o hotel e o volume de Heep, que possui lojas, antiquários e galerias, criando um belo espaço semipúblico. No muro, há pequenas aberturas que permitem observar a piscina do Copa.
Na cobertura de todos os prédios, estava prevista uma área de lazer comum – o que era chamado por Le Corbusier de “teto-jardim”. A idéia não foi levada a cabo e o último andar do Chopin é compartilhado por dois grandes apartamentos.
Um ano depois do Chopin, Heep abriu um escritório em São Paulo, onde realizou um grande número de projetos de altíssimo nível para o mercado imobiliário –como o edifício Itália, sua obra-prima. FS
Onde hoje é o Chopin, quem diria, havia uma pedreira. Seu dono se cansou de oferecer ao dono do hotel o terreno, com pedreira e tudo, mas Octavio Guinle, teimoso, não quis comprar, pois achou que seria impossível removê-la. O pioneiro doutor Octavio, que construiu o hotel quando o bairro de Copacabana não existia – em troca da promessa de poder explorar um cassino em suas dependências –, praticamente deixou de fazer talvez o melhor negócio de sua vida. Não imaginou que bastava um punhado de dinamite para pô-la abaixo.
Quem comprou o terreno, com a pedreira e tudo, foi o empreendedor Henryk Spitzman Jordan, que mandou derrubá-la e construiu o Chopin. Doutor Octavio virou uma fera quando percebeu que a construção do prédio impediria que o sol batesse na piscina o dia inteiro. Um acordo foi firmado: o hotel não poderia jamais construir nada no lugar da piscina para não tirar a vista dos apartamentos.
O rígido regulamento do hotel não permite que a piscina seja usada à noite. Uma exceção foi feita para a princesa Diana, que, hospedada no hotel, quis dar umas braçadas noturnas, sozinha. Um fotógrafo da revista Manchete conseguiu flagrá-la, da janela de um dos apartamentos do prédio.
O Chopin ficou mais famoso quando alguns de seus moradores começaram a dar festas de réveillon. A pioneira foi Regina Marcondes Ferraz, e depois dela outros foram abrindo suas portas para ver, das janelas, os fogos de Copacabana. Como alguns eram convidados para três ou quatro festas, os elevadores ficavam congestionados e o jeito era subir (ou descer) pela escada de serviço. Seria cômico, se não fosse ridículo: mulheres elegantes, segurando as saias dos seus longos vestidos, cobertas de jóias, pulando por cima de sacos plásticos de lixo e se esquivando das centenas de garrafas de champanhe vazias que não tinham mesmo onde ficar, a não ser na área e nas escadas de serviço. A balbúrdia chegou a tal ponto que um dia houve uma reunião de condomínio, na qual ficou decidido que naquele ano só entrariam no prédio convidados que estivessem com pulseirinha de plástico igual às usadas nos camarotes no carnaval. Mesmo assim, não funcionou, e outra reunião aconteceu, dessa vez mais dura: cada apartamento teria direito a certo número de convidados, e nem um a mais. Foi um barraco só, todo mundo gritava, ninguém se entendia, e tudo voltou ao que era antes.
O Chopin jamais desmoronou num 31 de dezembro, por obra e graça do Espírito Santo.
Pelo menos até agora. DL
GUINLE
Praia do Flamengo, 284
As construções realizadas pelos Guinle já renderam até um mestrado em arquitetura, na PUC do Rio, defendido por Roberto Cattan. Entre os edifícios residenciais construídos por integrantes da família, destacam-se os edifícios ecléticos da orla do Flamengo. Um deles, localizado no número 116, foi idealizado pelo doutor Octávio e desenhado, em 1923, pelo mesmo arquiteto do Copacabana Palace, Joseph Gire. De estilo parisiense, os empregados de cada um dos enormes apartamentos de cinco quartos – num dos quais morou o poeta João Cabral de Melo Neto – ficavam na mansarda. Outro menos conhecido é o localizado na esquina da rua Tucumã, feito quinze anos mais tarde. O prédio foi construído, em 1941, como resultado de uma operação imobiliária idealizada pelo doutor Carlos, que trocou a casa da praia de Botafogo pelo terreno e construção do prédio.
O edifício tem feições predominantemente protomodernas, como a curvatura do balcão da esquina. Há ainda uma mescla com elementos clássicos simplificados, como a colunata do porte-cocherè da entrada, ou as aberturas em arcos do último piso, que mais parece um jardim suspenso. A cobertura era o único apartamento que tinha garagem, e contava com onze quartos de empregados (era um tempo em que os ricos tinham poucos carros e muitos serviçais). Dentro, há uma escada que circunda um vazio, que é talvez o mais impressionante espaço interno de edifícios de apartamentos da época. FS
Nos anos 20, a família Guinle era uma das mais ricas do Brasil. Sua fortuna, em valores de hoje, era estimada em dois bilhões de dólares. Foi Carlos Guinle quem construiu o belíssimo edifício na esquina da rua Tucumã. Deu um apartamento para cada um de seus dois filhos, Carlinhos e Jorginho, o playboy mais famoso do Brasil, e ficou, como de praxe, com os três últimos andares para ele e dona Gilda. Também, como de praxe, tinham seu elevador particular.
As casas onde os Guinle moravam eram todas projetadas por arquitetos franceses, e que casas! Era de um dos irmãos o Palácio Laranjeiras, de outro a antiga embaixada da Argentina, na praia de Botafogo, a casa onde é hoje o Parque da Cidade, a Ilha de Brocoió. O doutor Octavio morava na avenida Atlântica, e sua casa tinha uma quadra de tênis de frente para o mar. Eram famosos os bailes que doutor Carlos e dona Gilda davam uma vez por ano, nos quais o traje exigido para os homens era a casaca.
Carlinhos morreu moço. Nos últimos anos de vida, ficou amigo de Dorival Caymmi, e com ele compôs “Sábado em Copacabana” e “Não tem solução”. As más línguas da época diziam que Caymmi entrava com a inspiração e Carlinhos com o uísque.
Quando o triplex do doutor Carlos foi posto à venda – muito discretamente – um banqueiro telefonou para Jorginho querendo comprá-lo. Jorginho disse que já tinha fechado o negócio, apesar de a escritura ainda não estar assinada. O banqueiro, bem informado, sabia não só que o comprador era José Carlos Fragoso Pires, mas também que o valor da venda era um milhão de dólares, uma pechincha. Fingindo que não sabia, ofereceu o dobro, fosse qual fosse o preço combinado. Jorginho respondeu que como já tinha dado sua palavra, não podia voltar atrás.
Sem nunca ter trabalhado um só dia de sua vida, Jorginho morreu pobre. Mas, segundo dizia, nunca se arrependeu por um só segundo da vida que levou. DL
BIARRITZ
Praia do Flamengo, 268
O Rio de Janeiro é influenciado pela arquitetura francesa há quase 200 anos. Teve a missão francesa, depois o modernismo de Le Corbusier e agora, a nova missão, com Christian de Portzamparc (Cidade da Música), Phillippe Starck (Hotel Fasano) e Jean Nouvel (com o naufragado Guggenheim). Menos conhecidos, são os outros arquitetos franceses que aqui trabalharam na primeira metade do século XX, como Joseph Gire, do Copacabana Palace, especializado no neoclássico francês, e Henri Sajous, que criou prédios art déco. É de Sajous, autor também do edifício da Mesbla e da igreja da Santíssima Trindade, na rua Senador Vergueiro, um dos décos mais significativos da cidade, o Biarritz.
O edifício no número 268 da praia do Flamengo, é do início dos anos 40 e tem duas confortáveis unidades de quatro dormitórios por andar, com pequena diferença de tamanho entre elas. Das cinco varandas por piso que marcam a fachada, o apartamento mais perto do centro possui três módulos e o mais perto de Botafogo, dois. As duas unidades são ótimas: confortáveis e com acabamentos impecáveis para a época.
Por fora, o destaque da fachada são os graciosos balcões arredondados, com dupla curvatura, detalhes frisados na massa e gradil artístico equilibrado. A delicadeza dessa solução contrasta com a rigidez da estrutura, que forma uma grelha na fachada. Isso, somado aos toldos, dá uma forte expressividade ao volume, difícil de atingir em construções de meio de quadra. A cobertura que possui vibrantes volumes arredondados é escalonada, conforme a legislação da época. FS
O arquiteto francês que construiu o Biarritz não teve muito trabalho na concepção: fez o prédio exatamente igual a outro que existe até hoje na avenida Montaigne, em Paris.
Um dos moradores mais ilustres do prédio foi Percival Farquhar, que habitou a cobertura até 1952 (na minissérie Mad Maria, foi o vilão encarnado por Tony Ramos). Farquhar, que já nasceu milionário, tornou-se um dos maiores empresários do mundo. Começou em 1898, arrematando os bondes de Havana. Em 1912, encarnava a globalização da belle-époque latino-americana. Em dinheiro de hoje, o investimento das empresas que criou na região chegava a vários bilhões de dólares. Fez maus negócios no Sul e na Amazônia, mas faliu, em 1913, porque exagerou na especulação com o papelório.
O Biarritz sempre foi calmo, até porque seus moradores não se mudam com freqüência. A única pessoa que fazia o Biarritz ferver era Harry Stone, o poderoso representante da Motion Pictures no Brasil, mais conhecido como o embaixador de Hollywood no Brasil. A cada estrela que ele convidava para conhecer o Rio, o edifício estremecia (e os cineastas brasileiros o odiavam).
O Biarritz tem um belo jardim interno e, como o apartamento de Harry Stone era térreo, dava a impressão de que todo aquele verde pertencia só a ele. A nova proprietária do apartamento é Lourdes Catão, que depois de viver trinta anos em Nova York, voltou, e só moraria em um apartamento assim: cheio de charme e totalmente silencioso, o que é raro de encontrar no Rio de hoje. DL
SEABRA
Praia do Flamengo, 88
O primeiro edifício de apartamentos do Rio (e do Brasil) data de 1910. Feitos de olho no aluguel da população de baixa renda, os edifícios de moradia logo caíram no gosto da elite, por influência da ponte marítima Rio-Paris. Na capital francesa, os prédios de apartamentos de luxo existem desde o século XIX. No Rio, havia ainda outro incentivo para os edifícios residenciais, que apareceram primeiro no centro. Além do aspecto da modernidade – os anúncios da época destacavam, por exemplo, o elevador, o “frigidair” e o “telephonio” – havia a questão higiênica. Morar à beira-mar, com condições de sol e vento favoráveis, era bem visto.
Finalizado antes da metade da década de 30, o Seabra já tinha incinerador de lixo. No projeto, com quatro apartamentos por andar, também já aparece uma área de circulação principal independente da área de serviço, característica do apartamento brasileiro até hoje, apesar das leis contra a discriminação no uso dos elevadores.
Na fachada e no saguão principal, o Seabra é típico da arquitetura eclética, o estilo que rompeu com a ortodoxia do modelo clássico e embaralhou ordens de proporção, ornamentos e composições bem definidas. O ecletismo apareceu na metade do século XVIII, quando o excêntrico Horace Walpole criou uma salada estilística no projeto da residência de seu pai, o primeiro-ministro da Inglaterra Robert Walpole. Depois dele, principalmente no século XIX, o estilo percorreu o mundo ocidental e deu asas à imaginação de projetistas e clientes “criativos”. Desenhado por Mario Votret, o Seabra possui, predominantemente, elementos toscanos. Mas se pode observar outras influências, como a semelhança com os edifícios de Louis Sullivan, principal arquiteto da escola de Chicago, que difundiu a idéia do arranha-céu. Há ainda outra curiosidade: as venezianas são do tipo “Copacabana”, popularizadas na verticalização do bairro. Ou seja, é um verdadeiro samba do crioulo doido. FS
Quando o chique era morar no Flamengo, o comendador português Gervásio Seabra trouxe da Itália um arquiteto para fazer o projeto do que seria o segundo edifício construído na Praia do Flamengo, cópia de um castelo da Toscana pelo qual ele se apaixonara. O arquiteto usou (e abusou) de sua imaginação, e o prédio ficou conhecido como o Dakota carioca, em oposição ao prédio novaiorquino onde John Lennon tinha um apartamento.
A portaria pode ser descrita como psicodélica. As paredes são todas pintadas com motivos os mais diversos, o chão é de mármore – importado, claro –, fazendo desenhos, diferentes uns dos outros, as paredes são feitas com óleo de baleia, e um imenso lustre de ferro coroa a obra. Por fora, o prédio é cinza escuro, quase preto.
O comendador e sua esposa, dona Assunta, moravam nos três últimos andares, de 800 m2 cada, e tinham sua portaria particular, onde um elevador privativo os levava ao lar. Dona Assunta gostava de freqüentar os cassinos do Rio, e quando entrava, dizia-se que se as luzes se apagassem, suas jóias eram tantas, de tal porte, e brilhavam tanto, que iluminariam todo o salão.
Os dois filhos do casal, Nelson e Roberto, eram doidos por corridas de cavalos. Dessa paixão surgiu o Stud Seabra; era deles a égua Tirolesa, ganhadora do Grande Prêmio Brasil de 1950. As selas de seus cavalos e as camisas dos jóqueis vinham todas de Paris, da Maison Hermès.
Outra das paixões de Nelson era participar de leilões e comprar antiguidades. Uma das catorze salas do apartamento tinha prateleiras em todas as paredes para abrigar apenas objetos de prata – insólitos, por sinal. Eram apenas 452.
Durante anos, Nelson morou em Paris, no Hotel George V, mas passava o mês de julho no Rio, para cuidar dos negócios. Era assim: quando ele ia para Paris, uma empresa de mudanças embalava todos os quadros e objetos de arte, e levava para o guarda-móveis; dez dias antes de ele chegar, tudo era recolocado nos seus lugares, através de fotos de cada canto do apartamento. Simples, não? DL
Danuza Leão (1933-2022), jornalista e escritora. Autora de Quase Tudo e Na Sala com Danuza, entre outros.
Crítico de arquitetura, curador e editor, finaliza a biografia de Oscar Niemeyer, a ser publicada em 2022 pela Companhia das Letras
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