ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2017
Morcegos dão o sangue
A peleja entre góticos e alternativos
Paulo Raviere | Edição 133, Outubro 2017
O vestiário – um contêiner abafado e escuro – não poderia ser mais adequado para a preleção dos morcegos. Os atletas esperavam em silêncio pelo discurso do líder, Guilherme Freon, um professor de geografia de 33 anos. Com pescoço e braços tomados por tatuagens, Freon vestia preto dos óculos escuros às botas de bico fino e usava brincos, colares e pulseiras pontudas; um chapéu de abas largas cobria seu moicano comprido. “Cadê as velas?”, perguntou um rapaz. Freon pediu a palavra. “O jogo de hoje é sério, como sempre”, anunciou. “Mas é somente um amistoso.”
O contêiner estava à beira de um campo de futebol soçaite no bairro da Penha, na Zona Leste de São Paulo. Os morcegos – apelido dos atletas do Real Gothic Brasil – se concentravam para enfrentar o Via Underground, um combinado que reúne personagens da cena alternativa da cidade. O uniforme dos góticos não poderia ser outro – todo preto, com o detalhe sutil da gola branca.
O sol em brasa daquela tarde não intimidou o vampiresco Freon, que entrou em campo com todos os seus adereços, além de um short de couro, meia-calça preta e meiões com desenhos de teias de aranha. Os dois times começaram a partida com sede de sangue. Berravam e gesticulavam como se houvesse um título em jogo. Logo Freon mostrou por que carregava a faixa de capitão e abriu o placar com um chute rasteiro do lado direito.
“Meu propósito, ao fundar o time, foi unir duas paixões”, explicou Freon numa entrevista antes do jogo. A origem dos morcegos remonta a 2009, quando ele reuniu góticos da Grande São Paulo para uma partida de futebol. Depois disso, o paulistano jogou em equipes convencionais até 2012, quando descobriu que, no Reino Unido, a mesma tribo tinha seu time, o Real Gothic fc. “A Inglaterra é o berço da nossa subcultura e do futebol”, notou Freon.
O professor decidiu então formar uma equipe brasileira com o mesmo nome do escrete britânico. “Entrei em contato com eles, que nos incentivaram e enviaram o material”, disse, enquanto esticava uma faixa preta com “Real Gothic Brasil” escrito em tipos roxos. Os ingleses mandaram também um modelo para o escudo que adorna o uniforme e a bandeira, inspirada na capa de um álbum da banda The Sisters of Mercy.
No amistoso contra os alternativos, a defesa do Real Gothic vacilou e permitiu o empate. A partida seguia morna até que, no fim do primeiro tempo, o taciturno lateral direito gótico viu o goleiro adversário adiantado e chutou do meio da rua para recolocar sua equipe à frente do placar. Na etapa complementar, os seis titulares foram substituídos, para que os novatos ganhassem ritmo de jogo. O plantel dos morcegos contava naquele domingo com onze rapazes e quatro moças.
“Chamamos muita atenção por sermos góticos, mas as mulheres do time são o que choca mais”, disse Taís “Pandora” Souza, uma assistente comercial de 33 anos que joga como atacante. O Real Gothic disputa peladas contra desconhecidos nas quadras públicas da cidade, quase sempre homens, e muitos resistem a enfrentá-los, por receio de machucar as meninas. “Uma vez só aceitaram jogar depois que assumi o risco de uma contusão”, relatou a atleta. “Acabei fazendo o gol da vitória.” Souza estava proibida, porém, de entrar em campo, por estar esperando seu primeiro filho.
O principal requisito para um aspirante a morcego é se identificar com a subcultura gótica, geralmente reconhecida pela indumentária com couro abundante, maquiagem pesada, acessórios metálicos e a onipresente cor preta. Mas o time acolhe também simpatizantes que não incorporaram o visual sombrio ao dia a dia. “Temos integrantes de aparência normal, mas que vivem o gótico”, disse Freon.
Para alguns, “viver o gótico” pode significar apenas o apreço pelo cinema expressionista, por escritores como Edgar Allan Poe e Charles Baudelaire ou por bandas como The Cure e Siouxsie and the Banshees. “O mais importante, no entanto, é a reflexão sobre a morte”, frisou Freon. “Memento mori: lembra-te que morrerás.” Coerência também é fundamental. Certa vez, um candidato foi flagrado numa balada sertaneja. “Aí não dá”, desabafou o capitão. “Um cara desses acabaria abençoando nosso manto maldito.”
O manto em questão pode ganhar em breve um pentagrama acima do escudo, no lugar da estrelinha convencional, em comemoração ao único troféu conquistado pelos morcegos. Foi em fevereiro deste ano, no Festival Rosa Negra. Na semifinal, os góticos superaram uma equipe experiente, contra todos os prognósticos. “Imagine o Real Madrid perdendo para o Juventus da Mooca”, comparou Freon, referindo-se ao time pelo qual torce.
No segundo tempo na Penha, a marcação dos morcegos afrouxou e os alternativos voltaram a empatar o jogo. Diante do repentino domínio adversário, a torcida – formada por cerca de quinze pessoas – se agitava como hematófagos em revoada. Uma bola na trave dos góticos alertou para o risco de virada iminente. Inquieto, Freon tirou o chapéu e amarrou o cabelo para voltar ao jogo. Com os titulares de novo em campo, os morcegos retomaram a dianteira após apostarem numa bola perdida que resultou em gol. Real Gothic 3 x 2 Via Underground.
“Bora correr”, gritou um torcedor de preto. “Isso tá parecendo Walking Dead!” No ataque, os góticos articularam uma elegante tabelinha e Freon ampliou o placar, pouco antes de voltar ao banco de reservas. Mas o resultado confortável duraria pouco; no lance seguinte, logo após a última saída do capitão, o Via Underground diminuiu a diferença.
“Segura essa bola no ataque! Falta menos de um minuto!”, gritava Freon da lateral do campo, orientando os novatos que estavam em campo. A torcida ensaiava um grito de guerra quando um dos estreantes marcou um gol e sepultou as esperanças dos alternativos: 5 a 3 para os góticos. “Agora podemos tampar o caixão”, gritou Freon, antes de invadir o gramado com os outros morcegos.