ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2008
Morte em Paquetá
Nem toda excursão à ilha é um sonho de valsa
Cristina Tardáguila | Edição 22, Julho 2008
Quando o veículo da empresa Último Adeus cruzou o calçadão da Praça XV, no centro do Rio de Janeiro, e puxou o freio de mão a poucos metros do portão das barcas, quem estava na fila da bilheteria se benzeu. Da Kombi branca de placa LUX 1588 desceu o caixão de Joseneide Barbosa. A família se uniu num abraço e chorou.
Antes de se suicidar, vítima de uma velha e incurável depressão, Joseneide, carioca de 42 anos de idade, havia feito um pedido ao marido e aos três filhos: queria ser enterrada longe de casa. De preferência, na ilha de Paquetá, em plena Baía de Guanabara. Vivera ali boa parte da juventude e lá sonhava passar a eternidade. Assim, às 13h15 do dia 3 de junho, 48 horas depois do óbito, seu cortejo fúnebre esperava a partida das 13h30. O grupo de quinze familiares e amigos fazia fila como todos os outros passageiros. As únicas diferenças eram a tristeza e o caixão — que se configurava um problema incontornável.
Apesar de ter quase 4 mil habitantes e contar com um cemitério para 700 túmulos, Paquetá não dispõe de uma casa funerária. Assim, sempre que um defunto do continente deve ser enterrado na ilha ou sempre que um ilhéu encerra sua jornada no torrão natal, não há outro jeito senão despachar um caixão para lá, a bordo de uma das treze naus do consórcio Barcas S.A. Para espanto ou horror dos passageiros, a viagem sobre as águas é feita na companhia de um ataúde. “Não precisa ter medo, gente! Às vezes o caixão está to-tal-men-te vazio!”, conclama Paulo Roberto da Silva, que trabalha há trinta anos como coveiro de Paquetá.
Pedido inútil. As pessoas têm medo, sim, e muito. A dor por Joseneide é contundente, mas de longe se nota igualmente o desconforto e um grande acanhamento por parte de todos, passageiros ou parentes. O cortejo deveria ter chegado quarenta minutos antes — num horário mais discreto para embarcar, sem tumulto, antes das filas —, mas o inferno do trânsito no centro do Rio e a má vontade dos policiais de plantão na Praça XV atrapalharam os planos da família. Joseneide iniciaria sua última travessia marítima como outra vivente qualquer. (Apenas sem precisar pagar.)
“Olha que situação”, repetia o irmão mais novo da falecida, Sérgio, enquanto ajudava os sobrinhos a pousar o caixão no corredor, entre a última fileira de assentos e a parede dos banheiros. Referia-se sobretudo à reação dos quase vinte passageiros que haviam embarcado antes e que agora mudavam de lugar para tomar distância do esquife. O rearranjo levou alguns minutos, e só duas pessoas ousaram permanecer num raio de três metros do caixão: um senhor grisalho que, antes mesmo de a barca zarpar, já cochilava com a cabeça tombada no peito e uma senhora de cabelos brancos presos em coque, entretida em devorar um sonho de creme ultra-recheado. Todos os demais trocaram a popa pela proa.
No Estrela do Mar, um boteco de mesinhas azuis em frente à estação das barcas de Paquetá, três amigas largaram a cerveja e se benzeram ao ver o enterro chegar. Nenhuma delas gosta de viajar em barca de defunto, mas a professora Cláudia Baere, de 42 anos, a mais supersticiosa das três, já deixou de embarcar inúmeras vezes para evitar a proximidade forçada. “Espero uma hora ou mais pela próxima barca”, diz, “mas não acompanho morto.”
Os caixões são só a ponta do iceberg, conforme explica Ubirajara Zapponi, atual presidente da Associação de Moradores de Paquetá. “A ilha precisa mesmo é de uma embarcação exclusiva para cargas. Não dá para viajar do lado de geladeira, sacos de batata, gaiola de passarinho e gente morta”, reclama. “Principalmente os turistas, que são a nossa maior fonte de renda.” Em Paquetá não há clientela para mais de uma sorveteria, lógica que se aplica também ao negócio da morte. “Não é economicamente viável abrir uma funerária na ilha”, esclarece Zapponi. Logo, enquanto se mantiver o status quo, os vivos terão de tolerar os caixões, com ou sem ocupantes.
Até o início de junho, o cemitério Santo Antônio havia registrado apenas dezoito enterros no ano, contando o de Joseneide Barbosa. “O problema é que a morte dela é só a primeira do mês. Agora vêm mais seis”, diz Cláudia Baere, com voz de Bela Lugosi. Trata-se de uma lenda insular de potência inquestionável: em Paquetá, quando morre um, morrem sete. “É que a morte demora para pegar a barca e vir até aqui. Quando chega, fica sentada na praça e não vai embora antes de completar sete vítimas”, murmura a professora. Como névoa na Transilvânia, a morbidez se espalha pelo Estrela do Mar. Alguém se arrepia. Um gato retórico mostra os dentes.
Que o diga seu Bernardino Dias da Silva. Em 1982, amedrontado com a onda de enterros na ilha, ele decidiu arrumar as malas e fugir para seu sítio em Minas Gerais. Era o dono da única loja de materiais de construção de Paquetá. De tempos em tempos, ligava para saber como andavam os negócios e sondar se a morte já embarcara de volta para o Rio. Passado um mês, quando considerou que tudo voltara à normalidade, reassumiu forte e sacudido o balcão da loja. Dias depois, sofreu um infarto fulminante. Perplexa, a família encomendou um belo caixão do Rio. O ataúde veio de barca.
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