O que está em jogo nesta eleição é se os Estados Unidos devem preservar seu modesto Estado de bem-estar social e as instituições criadas no século XX para regular a economia ILUSTRAÇÃO: PHIL DISLEY_GUARDIAN NEWS & MEDIA LTD_2012
Muito longe da esperança
Nos termos convencionais da política, Obama deveria perder em novembro por causa da recuperação lenta da economia. Mas esta eleição não é convencional
Alexander Keyssar | Edição 73, Outubro 2012
Traduzido por Flora Thomson-Deveaux
A campanha presidencial americana é uma mistura estranha – ou mais estranha que a habitual – de personalidades e ideologia. A imprensa dedicou grande atenção aos contrastes entre as personalidades do presidente Obama (que é considerado muito simpático) e de seu adversário, Mitt Romney (mais rígido e menos simpático), e, no fim das contas, é possível que suas características pessoais venham a determinar o resultado das eleições. Não há dúvida de que a diferença será apertada, e que o fator “simpatia” poderá ser determinante para uma faixa decisiva de 2% a 4% do eleitorado.
Ainda assim, esta é uma das eleições presidenciais mais definidas ideologicamente na história recente dos Estados Unidos. Desde 1984, quando o muito “liberal” (no sentido norte-americano do termo) ex-vice-presidente Walter Mondale enfrentou Ronald Reagan, então ocupante do cargo, os dois principais candidatos à Presidência não apresentavam um contraste tão agudo em suas visões do país e de seu futuro. E desde 1964, quando o senador pelo Arizona Barry Goldwater (o padrinho do moderno conservadorismo americano) enfrentou nas urnas o então presidente Lyndon Johnson, não existia a impressão de que tanta coisa estava em jogo nas eleições, seja no plano doméstico ou no internacional. Nem uma nem outra dessas eleições, porém, foi decidida por pequena margem – fato que até certo ponto tornou o confronto ideológico menos contundente.
Acima de tudo, a campanha atual vem sendo travada num clima muito mais conservador que o das disputas de 1984 ou 1964. Os dois grandes partidos deslocaram-se para a direita depois que Ronald Reagan ocupou a Presidência, e estão a anos-luz de distância da década de 60 (quando ambos, por exemplo, acreditavam que a erradicação da pobreza era de responsabilidade do governo federal). Os republicanos de hoje são defensores inflexíveis do desmanche da rede de proteção social criada entre as décadas de 30 e 60, muitas vezes com o apoio de republicanos moderados como os presidentes Dwight Eisenhower e até Richard Nixon. Paul Ryan, o candidato republicano à Vice-Presidência e herói do Tea Party, defende a privatização não só do Medicare (o seguro-saúde para os idosos) como de todo o sistema de Previdência Social. Os republicanos consideram inaceitáveis as alíquotas atuais de impostos para os ricos, que já são muito mais baixas do que eram no governo de Ronald Reagan.
A corrente dominante do Partido Democrata, além disso, também deu uma guinada considerável para a direita, distanciando-se muito dos liberais clássicos como Johnson e Mondale. Liderados por Bill Clinton, os democratas reduziram seu apoio a programas de ajuda aos pobres, deram ênfase à redução do déficit fiscal e contribuíram para a desregulação da economia, inclusive da indústria bancária. Foi durante a Presidência de Clinton que a Lei Glass-Steagall (aprovada em 1933 para impedir que uma mesma empresa atuasse como banco comercial e de investimento) foi revogada, lubrificando os mecanismos que acabaram levando à debacle financeira de 2008. Barack Obama, claro, escolheu como principais conselheiros econômicos precisamente as autoridades da área na era Clinton, como Lawrence Summers, um dos defensores dessas calamitosas políticas de desregulamentação.
Obama, na verdade, vem governando do centro do espectro político americano – o que significa que se coloca bem à direita das posições e das tradições de seu próprio partido antes de 1990. Sua reação à crise financeira foi promover o resgate dos bancos, ao mesmo tempo em que fez muito pouco para ajudar os milhões de famílias cujas hipotecas “sumiram pelo ralo”. Devido em parte a decisões estratégicas tomadas na Casa Branca, as novas regras que governam as instituições financeiras (a Lei Dodd-Frank) são muito mais fracas do que desejava a maioria dos reformistas. Só no final do seu mandato, Obama empreendeu ações em defesa dos imigrantes ou dos sindicatos. Mesmo seu muito alardeado programa de seguro-saúde, o Affordable Care Act, é menos abrangente do que uma proposta encaminhada nos anos 70 pelo presidente Richard Nixon. (Os democratas da época julgaram a proposta insuficiente e a rejeitaram.) A política externa de Obama, enquanto isso, divergiu muito pouco da de seu antecessor, George W. Bush, e, contrariando sua promessa de campanha, nossa anômala prisão internacional em Guantánamo continua funcionando.
Por esses motivos, um dos problemas sérios enfrentados por Obama no início da campanha eleitoral foi a perda de apoio entre os progressistas que tanto se empenharam para elegê-lo em 2008. A relutância de Obama em lutar por causas progressistas e sua inclinação a fazer concessões aos conservadores levaram a um afastamento daquela que o falecido senador Paul Wellstone chamou de “ala democrata do Partido Democrata”. A maioria dos progressistas – diante da alternativa Romney e Ryan – voltou ao rebanho, mas na convenção democrata em Charlotte, no início de setembro, houve vários protestos da esquerda do partido.
Este panorama levanta questões que, por sua vez, podem lançar alguma luz sobre a dinâmica mais profunda da atual campanha. Se, como acreditam muitos democratas progressistas e analistas independentes, Obama tem sido um presidente cauteloso, conservador e centrista, por que os ataques dos republicanos contra ele são tão ferozes? Por que os banqueiros de Wall Street se voltaram contra o presidente que os resgatou? Por que os líderes republicanos denunciam Obama como socialista ou um social-democrata ao estilo europeu? Por que a temperatura ideológica está tão alta, e a campanha vem sendo tão suja? As respostas a essas perguntas podem ser encontradas em três vastos desafios enfrentados pela sociedade e pelo Estado americanos.
DE QUEM É O PAÍS, AFINAL?
Um traço fundamental da vida política americana das últimas décadas é que as bases sociais dos dois principais partidos políticos são muito diferentes entre si, mas ainda assim cada um deles é apoiado por uma coalizão que não observa os limites entre as classes. Os republicanos, claro, são o partido das empresas (grandes e pequenas), às quais se unem segmentos da classe média baixa e da classe trabalhadora branca, especialmente no Sul. São financiados por grandes empresas, como as do setor de energia, enquanto boa parte de sua militância de base vem dos ativistas – quase todos brancos – do movimento Tea Party, muitos dos quais participam há décadas de movimentos políticos conservadores. (É digno de nota que, em 2008, Wall Street se dividiu entre Obama e McCain, mas hoje, em bloco, apoia Romney.)
Os democratas, em contraste, são apoiados pelos profissionais de classe média alta (e da elite), pelos afro-americanos, pelos trabalhadores sindicalizados e por uma parcela cada vez maior da população de origem hispânica. A cobertura televisiva das convenções dos dois partidos evidenciou um traço fundamental do nosso panorama político: a convenção republicana foi (nas palavras de um observador) “de uma brancura ofuscante”, enquanto o plenário da convenção democrata era um reflexo mais fiel do país diversificado em que os Estados Unidos, de fato, se transformaram.
Por trás desse recorte sociopolítico estão dois fatos históricos cruciais, que influenciam diretamente a eleição atual. O primeiro foi a aprovação das leis de direitos civis e de voto na década de 60, que barraram a segregação e garantiram aos afro-americanos do Sul o exercício do sufrágio. Embora essas leis tenham sido apoiadas pelos dois partidos, elas são identificadas com o Partido Democrata de maneira geral e, em particular, com Lyndon Johnson (junto com John Kennedy). Sua implementação logo transformou a comunidade afro-americana num bloco eleitoral democrata sólido (num ponto anterior da nossa história, os negros adotaram o Partido Republicano porque era o partido de Abraham Lincoln). Ao mesmo tempo, empurrou os brancos conservadores do Sul – democratas desde o final do século XIX – para o Partido Republicano. No Sul, os afro-americanos adquiriram poder político e influência em algumas áreas, mas tanto eles quanto os aliados democratas brancos que lhes restam costumam ser derrotados nas eleições em âmbito estadual. O Sul, que se transformou na mais populosa região do país depois da Segunda Guerra Mundial, é hoje o bastião do Partido Republicano.
O segundo fato crucial é a escala da imigração para os Estados Unidos nos últimos quarenta anos, e o consequente crescimento das populações de origem hispânica e asiática. Graças tanto à imigração (regular ou não) quanto às altas taxas de fertilidade, a população hispânica passou de 14,6 milhões em 1980 para 50,4 milhões em 2010: hoje, constitui mais de 16% da população do país. No mesmo período, a população de origem asiática – especialmente importante na Costa Oeste e em algumas cidades de outras regiões – cresceu de 3,8 milhões para 14,6 milhões. Esse fenômeno alterou de modo significativo a composição social do eleitorado em muitos estados, e transformou-se recentemente num trunfo para o Partido Democrata. Alguns líderes republicanos (entre eles George W. Bush) reconheceram mais de dez anos atrás que o voto hispânico tinha uma importância crescente, e fizeram o possível para cortejá-lo. Mas esses esforços, sempre modestos, acabaram sendo sobrepujados pelo tom anti-imigração da ala direita republicana – em vários estados, ela aprovou leis que parecem definir todos os residentes de origem hispânica como estrangeiros ilegais passíveis de deportação. Nesta eleição, espera-se que mais ou menos 70% dos hispânicos votem nos democratas.
Há mais coisas em jogo nesse ponto do que a política partidária. Por trás das disputas políticas (e muitas vezes contribuindo para inflamá-las) está a realidade de que a população não branca dos Estados Unidos cresce muito mais depressa do que a branca. A população negra cresce mais que o dobro da taxa da população branca não hispânica, e o número dos americanos que se descrevem como de raça mista vem disparando. Os brancos já são minoria na Califórnia, o maior estado do país, e a maioria das estimativas indica que os Estados Unidos serão um país majoritariamente não branco já em 2050.
O Partido Democrata destaca-se como o partido político que aceita, e até saúda, a existência (e a conveniência) de uma sociedade multirracial, multiétnica e multilinguística. Os republicanos, não. Especialmente para os apoiadores do Tea Party e para simpatizantes mais pobres dos republicanos, as mudanças sociais que vêm transformando a sociedade americana são alarmantes: põem em risco um modo de vida, uma cultura, um conjunto de valores, uma “identidade nacional”, nas palavras do cientista político Samuel Huntington. Nos comícios do Tea Party e em outras reuniões republicanas, os oradores rogam à plateia que “tome seu país de volta” e apoie leis voltadas à repressão e à deportação de imigrantes sem papéis. A cautela de Obama, mesmo em sua política de imigração, em nada atenua os medos desses setores. A direita republicana quer “retomar” o país das mãos de Obama e das pessoas que ele representa, política e visualmente.
O MAIOR PAÍS DO MUNDO?
A política externa desempenhou até aqui um papel relativamente menor na disputa. O governador Romney não tem nenhuma experiência ou especialização em relações internacionais (nem Paul Ryan), e prefere manter os holofotes na situação da economia. Essa preferência, sem dúvida, é reforçada pela tendência de Romney a cometer gafes diplomáticas sempre que se manifesta, como quando, por exemplo, insultou seus anfitriões britânicos externando dúvidas sobre seus preparativos para as Olimpíadas, ou quando deu a impressão de denegrir a cultura palestina ao elogiar Israel por suas realizações econômicas. Recentemente, atraiu até reações de companheiros de partido quando emitiu uma crítica prematura e incorreta ao governo Obama depois do ataque sofrido por diplomatas na Líbia.
Ainda assim, a política externa permeia a campanha e contribui para o seu grau de animosidade. Em termos simplificados, a questão é: os Estados Unidos vão ou não continuar a ser a superpotência dominante? Para os republicanos, a resposta é simples: não há dúvida de que os Estados Unidos precisam dominar a cena mundial em caráter permanente. Temos esse direito graças ao nosso papel preponderante nos conflitos internacionais do passado (incluindo as nossas vitórias na Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria) e devido ao nosso caráter “excepcional” de nação forte, democrática, amante da paz e promotora da justiça. O tema da “excepcionalidade americana” está muito presente nos textos conservadores, e os republicanos sempre criticaram Obama por sua suposta relutância em celebrar as virtudes singulares do país. Um dos textos do programa de Romney acusa os democratas de ter uma ideologia derrotista que os levou a abrir mão da liderança global.
A posição democrata é mais complexa e matizada. A verdade é que o presidente Obama invocou a “excepcionalidade americana” em várias ocasiões (em parte, talvez, para aplacar os críticos republicanos), e seu governo não hesitou em usar a força militar para defender ou promover os interesses americanos. Afinal, foi Obama quem aumentou o número de soldados americanos no Afeganistão e mandou um esquadrão de forças especiais ao Paquistão para matar Osama bin Laden. Mas os democratas – absorvendo as lições tanto do Afeganistão quanto do Iraque – estão atentos aos limites do poderio americano,como demonstram seus movimentos cautelosos no Oriente Médio desde o início da Primavera Árabe. Também tentaram lidar – com cautela, é claro – com algumas das fontes, contemporâneas e históricas, do antiamericanismo que irrompe periodicamente em vários pontos do planeta. Esses esforços foram denunciados pelos republicanos como “pedidos de desculpas” desnecessários e degradantes (como ocorreu depois dos protestos em Bengasi e no Cairo).
É difícil antecipar o quanto a política externa de Romney poderia ser diferente da de Obama: depois que um presidente toma posse, as realidades concretas tendem a temperar as visões ideológicas do aspirante ao cargo. (A política de Obama, por exemplo, difere muito menos da do governo Bush do que se poderia imaginar na campanha de 2008.) A campanha de Romney certamente dá a impressão de que ele estaria mais disposto do que Obama a intervir na Síria e a tolerar um ataque de Israel ao Irã. O republicano fala mais duro sobre a política comercial com a China e provavelmente tenderia a lidar com a América Latina sob uma ótica mais próxima à da Guerra Fria.
Mas o tom rancoroso da campanha não se deve ao debate sobre políticas específicas ou pontos críticos particulares do planeta. (O Afeganistão, onde os Estados Unidos travam a guerra mais longa de sua história, mal foi mencionado.) Tem origem, em vez disso, na percepção republicana de que Obama e os democratas se mostram dispostos a aceitar um mundo multipolar em que os Estados Unidos não deteriam mais o poder que tiveram por meio século depois da Segunda Guerra Mundial. Muitos democratas consideram que essa posição é um reconhecimento da nova realidade global, embora relutem em falar abertamente sobre ela: em 2004, Howard Dean, na época o principal candidato democrata à Presidência, foi atacado por ter dito que os Estados Unidos não seriam para sempre a nação mais poderosa do mundo.
Para os conservadores, a aceitação de um mundo multipolar constitui uma afronta ao nacionalismo americano. E num país ferido pelo terrorismo, com sérios problemas econômicos e frustrado pela falta de vitórias nas guerras no estrangeiro, o nacionalismo continua a ser uma força poderosa. Nas convenções dos dois partidos (mas com frequência maior nos encontros dos republicanos), os delegados irrompiam de vez em quando num fervoroso grito de guerra: “USA! USA! USA!”
O GRANDE ACORDO
Com respeito à política interna, o que está – ou o que se acredita que está – em jogo na eleição é se os Estados Unidos devem manter seu modesto Estado de bem-estar, bem como as regras e as instituições reguladoras que governaram a atividade econômica no país na maior parte do século XX. Dito de outra forma, o que está em questão é se será ou não desfeito o “grande acordo” do século passado – acordo alcançado não só nos Estados Unidos, mas também na Europa ocidental e em partes da América Latina.
Esse “grande acordo”, que nos Estados Unidos emergiu em várias fases entre as décadas de 1890 e 1960, foi um arcabouço institucional destinado a equilibrar as necessidades do povo americano e as desigualdades de riqueza e poder produzidas pelo triunfo do capitalismo industrial. Essas desigualdades deram origem a uma variedade de movimentos socialistas e reformistas que reivindicavam alguma forma de “comunidade baseada na propriedade comum”, o desmembramento compulsório das grandes corporações ou, no mínimo, uma regulação estrita dos interesses privados, de modo a impedir que prevalecessem sobre o bem comum. Na eleição presidencial de 1912, exatamente um século atrás, 75% dos votos foram para candidatos que se diziam “progressistas” ou “socialistas”.
Essas forças políticas socialistas e reformistas não atingiram, é claro, suas metas mais ambiciosas. Entretanto, com o tempo, garantiram um novo acordo com o capital. Os termos eram bem diretos, embora nem sempre ditos com clareza. O capitalismo continuaria a existir, bem como quase todas as grandes empresas. As grandes ferrovias, os grandes bancos e outras companhias – com poucas exceções – deixariam de ser ameaçadas de estatização ou de fragmentação. Em troca, o governo federal adotou uma série de reformas para proteger e aumentar o poder dos cidadãos, salvaguardando o caráter democrático da sociedade.
As primeiras dessas reformas tiveram a ver com a regulação da concorrência nos negócios, a fim de impedir práticas contrárias à competição (e lesivas ao consumidor). Entre elas destacam-se a Lei Antitruste Sherman (1890), a Lei de Alimentos e Remédios Seguros (1906) e a Lei Glass-Steagall (1933). Esta última foi aprovada já sob o longo (1933-45) e fundamental governo do democrata Franklin D. Roosevelt.
O segundo braço da reforma foi garantir aos trabalhadores o direito à formação de sindicatos e a promover acordos coletivos. A Lei Nacional de Relações Trabalhistas (1935) procurou aumentar o poder dos trabalhadores não por meio de regras detalhadas para as relações entre patrões e empregados (como é comum na Europa e na América Latina), mas pela promoção da sindicalização e das negociações coletivas. Para os trabalhadores menos favorecidos, foi estabelecido um salário mínimo e um número máximo de horas de trabalho (1938).
O terceiro ingrediente foi a Previdência Social, criada nos Estados Unidos mais tarde do que em boa parte da Europa ocidental. Sistemas de seguro-desemprego e de aposentadoria por idade foram criados em 1935, bem como um programa de ajuda a famílias pobres com crianças. Seguiram-se, na década de 60, os programas de assistência médica para os pobres e idosos (Medicaid e Medicare). O novo plano de saúde de Obama (o Affordable Care Act) foi o primeiro acréscimo significativo à rede de proteção social americana desde 1965.
Essa série de medidas resultou num novo contrato social que moldou a vida política e econômica na América moderna. Por mais imperfeito que fosse, esse contrato reduziu a desigualdade e preservou o dinamismo do capitalismo, ao mesmo tempo em que protegia os cidadãos dos desequilíbrios de poder e das incertezas inevitáveis numa economia de mercado.
Ainda assim, esse grande acordo está há décadas sob o ataque sistemático dos conservadores, ataques que aumentaram nos últimos anos e atingiram novas alturas nesta longa campanha eleitoral. A regulação das atividades econômicas é tachada hoje, como era em 1880, de interferência indevida no funcionamento do livre mercado. As leis antitruste deixaram de ser aplicadas com rigor; as agências reguladoras vêm sendo asfixiadas por cortes orçamentários; instituições financeiras de vários tipos (bancos comerciais, bancos de investimento, companhias de seguros) foram autorizadas a fundir-se em grupos gigantescos que, agora, tornaram-se grandes demais para falir.
Os democratas centristas como Bill Clinton defenderam alguns desses movimentos desreguladores, mas nem de longe com o zelo dos republicanos de hoje. Nas eleições primárias, todos os aspirantes à candidatura presidencial republicana identificaram a “liberdade”, um valor americano fundamental, com ausência de regulação dos negócios e do meio ambiente. Num dos debates republicanos, Romney caracterizou a Agência de Proteção Ambiental como “uma ferramenta nas mãos do presidente para esmagar a iniciativa privada, esmagar nossa possibilidade de ter mais energia, seja do petróleo, do gás, do carvão ou nuclear”.
Os republicanos também são ferozmente contra os sindicatos. A porcentagem de trabalhadores do setor privado que pertence a algum sindicato decresceu muito nas últimas décadas (para menos de 10%), e os empregadores se sentiram mais fortes para atacar os sindicatos desde a famosa demissão dos controladores de voo por Ronald Reagan no início dos anos 80. Recentemente, os republicanos voltaram sua atenção para os trabalhadores do setor público (que têm um índice de sindicalização muito superior), aprovando leis em estados como Wisconsin que minam os direitos de greve e de negociações coletivas. A campanha de Romney declara que os sindicatos são indesejáveis porque freiam o crescimento econômico e contribuem para o aumento do desemprego.
Os programas de assistência social também estão sob fogo cerrado. Os seguros-desemprego são ínfimos em muitos estados, e o Congresso recusou-se a prorrogá-los para fazer frente à duração da crise econômica. O programa de ajuda às famílias pobres com crianças foi eliminado durante o governo Clinton, e os republicanos no Congresso propuseram cortes drásticos no Medicaid e a privatização do Medicare. (Há até quem seja a favor da privatização de toda a Previdência Social e da diminuição do alcance da educação pública.) Os republicanos afirmam que, se vencerem as eleições, irão derrubar a nova lei do sistema de saúde.
O eleitorado americano, portanto, está diante de duas visões profundamente contrastantes de política econômica e social. Obama e os democratas representam a preservação, talvez até um ligeiro fortalecimento, do “grande acordo” do século XX. Embora falem muito de inovação, sua posição é, em aspectos críticos, conservadora: não propõem novos programas em grande escala, preferindo defender instituições e práticas longamente estabelecidas. Mesmo as suas propostas de aumento de impostos (para ajudar a reduzir um déficit insustentável) são modestas (e provavelmente insuficientes): tudo o que pedem é a eliminação dos cortes de impostos dos ricos implementados pelo governo Bush.
Os republicanos propõem uma ruptura mais dramática com a história recente. Prometendo a prosperidade e celebrando o elixir mágico da liberdade de mercado, oferecem um futuro que – pelo menos para um historiador – se assemelha ao passado distante, um mundo do final do século XIX com pouca regulação das empresas, sem seguro social e nenhuma proteção legal para os trabalhadores. A seus olhos, o contrato social do século XX precisa ser revogado porque é indesejável (sobrecarregando as empresas enquanto cria “dependência” entre os pobres) e, ao mesmo tempo, inviável: pagar por ele exigiria aumentos significativos nos impostos. A insistência dos republicanos em diminuir o déficit, ao mesmo tempo em que não admitem novos impostos de jeito nenhum, implica cortes imensos nos gastos governamentais (com exceção dos gastos militares), e particularmente nos programas sociais.
O próprio presidente Obama tem chamado atenção para a aura de “volta ao passado” do programa republicano. Num importante discurso em dezembro, ele afirmou que os republicanos parecem “sofrer de algum tipo de amnésia coletiva”, esquecendo o sofrimento que os americanos atravessaram durante a Grande Depressão e períodos anteriores da história do país. Obama identificou-se com Theodore Roosevelt, presidente republicano que no início do século XX apoiava um salário mínimo, alíquotas progressivas para o imposto de renda e “um seguro para os desempregados e os idosos”. E Ted Roosevelt também, lembrou Obama, foi “chamado de socialista – até mesmo de comunista”.
NOVEMBRO SE APROXIMA
Dadas as discordâncias profundas sobre as diretrizes de governo, combinadas às posições contrastantes dos partidos em temas candentes e emocionais como a identidade nacional e a supremacia global, não surpreende que os embates desta campanha sejam os mais amargos e contundentes das últimas décadas. Barack Obama pode ser um político cauteloso e conciliador, mas é considerado um obstáculo a uma agenda de extrema-direita que passou a prevalecer entre os republicanos. O presidente amedronta os que defendem um papel internacional único e “excepcional” para os Estados Unidos, e simboliza uma América multiétnica que muitos cidadãos acham inquietante ou até ameaçadora.
Ao mesmo tempo, os republicanos provocam o medo (e a hostilidade) de muitos democratas, tanto de centro como progressistas, temerosos de que uma vitória republicana represente o retorno a uma política externa mais belicosa, o renascimento da discriminação contra minorias raciais e étnicas, e o esfacelamento de uma rede de proteção social já bastante esgarçada. A polarização que hoje marca a vida política americana só piora com o fato de os dois campos em guerra recorrerem a fontes diferentes de notícias e informações. Há dias em que parece que os leitores do New York Times e do Wall Street Journal, ou os espectadores da Fox News e da MSNBC, habitam planetas diferentes.
O extremismo de muitas posições republicanas também ajuda a entender por que estas eleições permanecem tão disputadas, e por que parece provável a vitória do presidente Obama, segundo a maioria das pesquisas de opinião. Todos os indicadores usados em análises eleitorais sugerem que Obama tinha tudo para ser um presidente de um único mandato. A recuperação econômica vem sendo lenta e penosa, e a taxa de desemprego teima em permanecer alta, com 20 milhões de pessoas ainda sem trabalho. O índice dos que veem Obama de modo favorável permanece abaixo do nível geralmente considerado necessário para a reeleição de um presidente, e boa parte de sua base de apoio original continua desencantada com sua Presidência. A verdade é que Obama não foi um presidente muito bem-sucedido, e, malgrado a sua eloquência, não foi capaz de propor uma narrativa convincente e promissora para o futuro. (Na convenção democrata, essa tarefa coube a Bill Clinton, que deu conta dela com brilho.)
Em termos políticos convencionais, portanto, Obama deveria perder a eleição de novembro. Mas esta eleição não é convencional: os eleitores precisam escolher entre alternativas reais, e a visão republicana pode ser conservadora demais para a maioria do eleitorado. O fato de Romney ter escolhido Paul Ryan como companheiro de chapa, embora popular com os conservadores em matéria social e tributária, assinalou para muitos independentes e centristas que Romney tinha atrelado integralmente sua sorte à ala direita do seu partido.
A causa democrata vem sendo ajudada pelas deficiências de Romney como candidato. O ex-governador de Massachusetts recusa-se com frequência a dar detalhes concretos de suas propostas, especialmente quando anuncia sua intenção de reduzir o déficit e, ao mesmo tempo, reduzir impostos. Tende a fazer afirmações erradas, e muitas vezes demonstra incapacidade de ouvir o público. Tentou, por exemplo, credenciar-se como defensor da indústria automobilística americana – muito embora tenha sido contrário ao resgate da General Motors por Obama –, afirmando que sua mulher era dona de dois Cadillacs. (Num dos debates republicanos, propôs uma aposta de 10 mil dólares a um de seus adversários.) Romney exala a sensação de julgar-se com direito a privilégios, especialmente em sua notória relutância a divulgar a maioria das suas declarações de renda e na despreocupação com que busca abrigar parte da sua fortuna em paraísos fiscais. Ele tenta mostrar que seu triunfo nos negócios o qualifica para promover a recuperação da economia, mas a campanha de Obama o representa, e com sucesso, como um homem muito rico sem qualquer contato com o americano médio. Essa representação negativa teve um poderoso reforço em setembro, com a divulgação de um vídeo em que Romney, discursando num encontro privado com doadores, falou com desdém dos “47% dos americanos” que “não pagam impostos”, veem-se como “vítimas”, e seriam eleitores de Obama.
Muita coisa ainda pode acontecer no último mês da campanha. Obama e Romney irão participar de três debates na tevê transmitidos para todo o país, enquanto os candidatos à Vice-Presidência debaterão uma vez. Novos dados econômicos serão divulgados em outubro, o que pode representar boas ou más notícias para Obama; e acontecimentos no exterior sempre poderão provocar uma reviravolta. Mas, no momento em que a disputa entra nas últimas semanas, parece haver mais preocupação com uma Presidência de Romney do que com a permanência de Obama na Casa Branca. Isso é muito longe da “esperança” e da “mudança” que levantaram Obama em 2008, mas estes foram anos difíceis.
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