CRÉDITO: GIORGIA MASSETANI_2022
A mulher que amo mexe os quadris de cansaço numa dança
Tatiana Pequeno | Edição 192, Setembro 2022
PARTIDA DE ANA LUÍSA AMARAL
Ana, como partes entre tantas coisas
das mais comuns ao mundo escuro
sem as pequenas luzes na tua mão de
escrita
partir, ficar?
Ana, como partes assim da vida
da graça da tua veste branca
ensinando leve entre os arbustos a
poesia
amar, arder?
Ana, como partes em tantos
gestos a tua altura gentil de quimeras
desculpa-me a ternura diante do
teu desejo longo de ser justa tu
cidadã no mundo sendo a mais bela
sob a luz primaveril do Porto?
Ana, como partes em tantos
vazios sentidos de vozes,
livros, a aragem difícil do amor
e como nós, que ficamos, vivendo
daremos testemunho de ti,
senhor?
INTERNAÇÃO
do conjunto das coisas que doem
tenho o punho pelo falcão perfurado
ave que me fugiu lenta do texto
razão para que a escrita estilhace
o pulso que adormeceu ao mastro
não parece temer o túnel do bardo
aquilo que dói mas é transformado
é coisa grande e amada, sereia
canto, furo da linha no tecido
colar de fita colorida, dobrada
as cruzes no leito do desfiladeirodiante do ávido no corpo
risco. bainha. sutura. poesia
(esta pele na gaze sobre os bordados)
“VOCÊ NÃO É UMA POETA LÉSBICA”
a mulher que amo fuma pela janela
não está nua ou com os seios à mostra
ela pensa nos sapatos em que não cabe
na carestia do aluguel e das mercadorias
a mulher que amo fuma pela janela
ouve a rigidez empobrecida dos apartamentos
e mexe os quadris de cansaço numa dança
rindo com seu corpo gordo e voraz da
lenta melancolia da tarde de outro domingo
a mulher que amo fura a janela o concreto
não é rosa não é musa, sua e dirige carros
deita comigo luminosa em lençóis de margaridas
canta romances de flor e luna gauchadas
a mulher que amo me puxa para a janela
respiro melhor com ela e seu humor
esta corpulência que desagrava o terror
pego emprestada a leveza da sua fumaça
e de repente derrubamos a tradição domingueira
das famílias entre líquidos, cassiopeia e risadas
LIÇÃO DE DERMATOLOGIA
as urtigas os adeuses
as bombas os terrores
animais que logo fui anteontem
sempre abertos da carne sobre a mesa
um leitão com a maçã envenenada
calando a minha boca
dourando a pele mameluca
– muito obesa a sua ossatura –
agora que acordei com nova ranhura
quero escrever para além das cruzes
mas tenho um tronco costurado
vivo nascida fora do anti-horário
e a pele não é vítima
é o primeiro desenho das grutas
a pele é o órgão mais arcaico da
letra
(terá sobrado som para a lira?)
o nome dos livros garante o
esconderijo na assinatura
NECROBRASÍLIA II – O TEMPO DOS AGRAVOS
Ovo
expandindo-se no tempo
sulfúrico
Luís Carlos Patraquim
teria como não perceber a ferrugem
daquilo que se gasta dia após dia e
queima como um führer bradando
nesses dias sob o drone alucinado
filmando a falta de ar e as covas
enquanto a explicação do mundo
se afasta mais um pouco de cada
possibilidade mínima de sentido?
eu nunca soube ter o ferro puído
o punhado de azedo no esôfago
ferido de ver a bala acertar amigos
ou ficar aqui sem deixar de ver a
marca que nos faz perceber a
gastura vertiginosa da ferrugem
imagens de fuzis nas casas das
crianças e um quarto só sangue
não sei se não teria como não ver
uma coisa que é a nossa vergonha
um cheiro de comida mal digerida
esses homens de cinza na falta de
sombra da capital federal um país
que ia mas hoje só vai ao fundo e
a águia altaneira do führer rasante
ou um anjo no sobrevoo sem futuro
altivo e grosso o nosso abandono
durante a atividade presidencial
das moendas que servem à milícia