Na incerteza sobre o que é a arte contemporânea, os museus vivem um impasse: como projetar uma edificação para algo que não se sabe o que é nem se pode prever o que virá a ser? FOTO: RUSSELLKORD.COM
Museus sem fim
Não param de surgir instituições de arte mundo afora. Mas para quê?
Hal Foster | Edição 105, Junho 2015
A Tate Modern II, projetada pelo escritório de arquitetura Herzog & de Meuron, vai surgindo à beira do Tâmisa. No Hudson, do outro lado do Atlântico, o novo Whitney Museum, concebido por Renzo Piano, abriu suas portas em maio. Sob a orientação de Diller Scofidio + Renfro, o Museum of Modern Art planeja nova expansão (a anterior aconteceu há apenas dez anos), e o Metropolitan Museum of Art terá transformado sua ala dedicada à arte moderna e contemporânea até o final da década. Extraio esses exemplos de Londres e Nova York, passando por cima do florescimento dos museus hoje em curso no Oriente Médio, na China e em outras partes do mundo. Mas, na verdade, todas as instituições que têm por fim abrigar a arte moderna e contemporânea enfrentam problemas semelhantes, nem todos eles de natureza política ou econômica.
O primeiro dilema diz respeito à variedade de escalas que essa arte apresenta e aos diferentes espaços necessários para sua exibição. O cenário inicial para a exposição da pintura e da escultura modernas – produzidas, como eram, tipicamente para o mercado – foi o espaço interior do século XIX, em geral a residência burguesa, e os primeiros museus dedicados a essa arte constituíram-se, muitas vezes, de salões de características semelhantes, remodelados para tal fim. Esse modelo foi sendo pouco a pouco substituído por outro. À medida que a arte moderna foi se tornando mais abstrata e autônoma, ela passou a demandar um espaço que espelhasse essa sua condição destituída de um lar, um espaço que ficou conhecido como “o cubo branco”. Esse modelo, por sua vez, viu-se pressionado pela obra de arte mais ambiciosa, que, depois da Segunda Guerra Mundial, começou a expandir suas dimensões – das vastas telas de Jackson Pollock, Barnett Newman e outros, passando pelos objetos seriados de minimalistas como Carl Andre, Donald Judd e Dan Flavin, até as instalações vinculadas a espaços específicos, de uma gama de artistas posteriores que vai de James Turrell a Olafur Eliasson.
Conciliar os grandes salões necessários para abrigar a produção contemporânea com as galerias delimitadas que a pintura e a escultura modernas exigem não é tarefa fácil, como qualquer visita à Tate Modern ou ao MoMA pode atestar. E o problema se complica pelo fato de parte da nova arte reivindicar ainda outro tipo de espaço: uma área fechada e obscurecida para a projeção de imagens, o que veio a ser conhecido como “caixa preta”. Para completar, em decorrência do interesse atual em também apresentar performances e dança nos museus, grandes instituições preveem a necessidade de criar ainda outros espaços – a proposta inicial para a expansão do MoMA os chama de “caixas cinza” e art bay. (Imagino que a caixa cinza seja um cruzamento do cubo branco com a caixa preta, e que art bay seja um híbrido de área para performances com um espaço para eventos, mas isso é só um palpite.) Qualquer museu que pretenda expor um conjunto representativo da arte moderna e contemporânea precisa, de alguma forma, oferecer todos esses tipos de espaço, e todos eles de uma só vez.
Dois fatores foram centrais na expansão dos museus de arte moderna e contemporânea. Nos anos 60, quando a atividade industrial começou a entrar em declínio em Nova York e em outras grandes cidades, espaços antes reservados à manufatura foram transformados em ateliês de baixo custo por artistas como os minimalistas, em parte com o objetivo de produzir obras aptas a pôr à prova as limitações do cubo branco. Velhas estruturas industriais, como centrais elétricas, foram remodeladas e transformadas em novas galerias e museus capazes de comportar as novas dimensões dessa arte. Emergiu daí uma circularidade que pode ser vista em instituições como o Dia:Beacon, por exemplo, meca da arte minimalista e pós-minimalista localizada no estado de Nova York; ali, uma velha fábrica da Nabisco foi transformada num conjunto de amplos salões prontos a acolher esculturas imensas de artistas como Richard Serra.
A segunda via tomada por essa expansão foi mais direta e traduziu-se na construção, a partir do nada, de museus projetados como amplos contêineres para obras de arte gigantescas. Um exemplo disso é o Guggenheim de Bilbao, de Frank Gehry. Em alguns aspectos, essa dimensão avantajada é consequência de uma corrida por espaços maiores disputada entre arquitetos como Gehry e artistas como Serra, resultando numa grandiosidade que hoje nos parece quase natural. Porém, não há nada de definitivo nela: artistas renomados surgidos nas duas últimas décadas, como Pierre Huyghe, Rirkrit Tiravanija e Tino Sehgal, entre outros, não requerem tanto espaço e, em muitos aspectos, o recusam. (A grandeza dos espaços produziu, ademais, efeitos colaterais ruins, como os saguões imensos, que, embora importantes como espaços para eventos, são letais como galerias de arte.)
O Guggenheim de Bilbao é o exemplo mais claro de um terceiro problema: o museu como ícone. Líderes de cidades decadentes ou de uma região urbana negligenciada, desejosos de reaparelhá-las para uma nova economia do turismo cultural, creem que um símbolo arquitetônico que sirva também como emblema midiático poderá ajudá-los nesse seu intento. Para que a edificação alcance um caráter icônico, o arquiteto escolhido é autorizado, e mesmo incentivado, a modelar formas singulares em escala urbana, em geral nas proximidades de bairros pobres, que sofrem, assim, considerável perturbação, quando não são removidos completamente. Alguns museus são tão esculturais que a arte que apresentam é secundária, figurando apenas em segundo plano. Esse é, com frequência, o caso do MAXXI de Roma (o Museu Nacional das Artes do Século XXI), um entrelaçado neofuturista de volumes baixos desenhado por Zaha Hadid. Museus assim demandam tanto do nosso interesse visual que acabam por ser, eles próprios, a obra dominante em exposição, ofuscando a arte que foram concebidos para exibir. Embora seja ainda muito cedo para dizê-lo, é possível que essa venha a ser a impressão deixada também pela Tate Modern II.
Outros museus se tornam tão teatrais que os artistas sentem-se obrigados a responder, antes de mais nada, à arquitetura. É claro que arquitetos também operam no âmbito visual, e não se há de levar a mal que o façam, mas por vezes a ênfase no design poderoso negligencia questões fundamentais ligadas à função. Em parte, foi isso que ocorreu no American Folk Art Museum, concebido por Tod Williams e Billie Tsien e situado na porção central de Manhattan: capital arquitetônico em excesso, preocupação insuficiente com o uso. No fim, o prédio teve de ser vendido ao MoMA, e o museu retornou a sua antiga sede, na Lincoln Square (ameaça parecida paira sobre o MAXXI).
A questão da função aponta para um quarto problema, que é a incerteza generalizada sobre o que é a arte contemporânea, e sobre como fazer uso de um espaço. Como é que se pode projetar uma edificação para algo que não se sabe o que é e que tampouco se pode prever como virá a ser? O resultado dessa incerteza se manifesta no surgimento de “galpões culturais” quase desprovidos de um propósito aparente. Uma estrutura desse tipo – o Culture Shed desenhado por Diller Scofidio + Renfro e dotado de uma cobertura móvel, que pode ser mantida ou levantada de acordo com a modalidade do evento em cartaz – está prevista para a área dos Hudson Yards no West Side de Manhattan.
A lógica parece ser a de construir um contêiner e deixar aos artistas a tarefa de lidar com ele, mas é provável que, do lado da arte, o resultado seja uma forma padrão de instalação. Enquanto isso, do lado da arquitetura, a invenção de novos espaços como caixas cinza e art bays pode vir a limitar as próprias práticas que esses espaços visam fomentar. O que parece flexibilidade pode se revelar o contrário disso – vejam-se as galerias altíssimas de arte contemporânea no New Museum do Lower East Side, ou mesmo no MoMA, salões que sobrepujam quase toda arte que abrigam. Serra, por certo, produz grandes trabalhos, mas isso não significa que a dimensão de suas obras deva servir de padrão para todo e qualquer espaço expositivo.
Talvez esses museus novos e renovados tenham, sim, um propósito, afinal de contas, e um megapropósito tão óbvio que nem é enunciado: o do entretenimento. Ainda vivemos numa sociedade do espetáculo, ou, para empregar aqui uma expressão inofensiva, vivemos numa “economia da experiência”. Que relação os museus de arte moderna e contemporânea guardam com uma cultura que preza tanto a experiência do entretenimento? Já em 1996, Nicholas Serota situou “o dilema dos museus de arte moderna” num quadro excludente de “experiência ou interpretação”, ou, dizendo-o de outra forma, num quadro que separa entretenimento, de um lado, e contemplação estética e/ou compreensão histórica, de outro. Quase vinte anos mais tarde, no entanto, não temos por que nos deter diante desse ou/ou. O espetáculo chegou para ficar, não vai embora enquanto houver capitalismo, e os museus são parte dele. Isso é um fato e, por isso mesmo, não deveria ser um projeto.
Contudo, trata-se, sim, de uma meta para muitos museus, mesmo para aqueles que não dependem da venda de ingressos. Isso fica evidente no espaço dedicado pelos museus a salões de eventos, grandes lojas e belos restaurantes, e é também o que sugerem certas tendências de programação. Veja-se a guinada na direção da performance e da dança, e a remontagem de exemplos históricos de ambas, nos museus de arte ao longo dos últimos anos. Foi representativa disso a retrospectiva de Marina Abramović no MoMA, em 2010 (que, ao longo de dez semanas, incluiu um espetáculo no qual a artista encarava fixamente qualquer um que se sentasse defronte dela).
Essa guinada pode ser vista, do ponto de vista negativo, como uma institucionalização de práticas outrora alternativas, e, do ponto de vista positivo, como o resgate de eventos que, do contrário, se perderiam (assim como o filme independente, a performance e a dança experimentais recorreram aos museus em parte porque suas salas passam por momentos difíceis). Mas isso não explica a súbita acolhida de eventos ao vivo por parte de instituições que, em geral, se dedicam à arte inanimada. Durante a primeira onda de criação de museus na “nova Europa” pós-1989, o arquiteto Rem Koolhaas observou que, como não havia passado suficiente para tantas instituições, os artefatos do passado só podiam se valorizar. Hoje, ao que parece, não há presente que baste: por razões mais do que óbvias numa era hipermidiática, a demanda pelo presente é igualmente grande, assim como por qualquer coisa que se pareça com uma presença real.
Outra razão para a acolhida de eventos performáticos nos museus é a crença de que eles fazem do visitante um observador ativo – uma crença que, para começo de conversa, supõe equivocadamente ser o visitante de um museu um observador passivo. Hoje em dia, os museus parecem não querer nos deixar em paz; eles nos motivam e nos incitam da mesma forma como fazemos com nossos filhos. E, muitas vezes, esse empenho por nos tornar espectadores ativos se torna não um meio, mas um fim em si mesmo.
Assim como na cultura em geral, comunicação e conectividade são promovidas por si próprias, sem grande interesse na qualidade da experiência subjetiva e das interações obtidas. Tudo isso contribui para validar o museu – tanto aos olhos de seus gestores como aos de seus frequentadores – como relevante, vital ou simplesmente movimentado. Todavia, o que o museu busca tornar ativo é antes a si mesmo que a seu frequentador. Estranhamente, isso só vem confirmar a imagem negativa que seus detratores têm dele há muito tempo. Para estes, a contemplação estética é tediosa, a compreensão histórica é elitista e, mais do que isso, o museu é um lugar morto, um mausoléu.
Essa argumentação me veio à mente enquanto eu assistia a National Gallery, um excelente documentário recente de autoria de Frederick Wiseman. Ao longo de três horas, o filme mostra um bom número de pessoas no grande museu londrino, interagindo com a arte e umas com as outras de maneiras as mais diversas. Ainda assim, Wiseman sentiu necessidade de encerrar seu tributo com um número de balé nas galerias, como se as figuras nos quadros precisassem de corpos performáticos a animá-las. Não precisavam nem precisam.
“Museu e mausoléu não estão ligados apenas pela associação fonética”, escreveu Adorno em 1953, em “Museu Valéry Proust”. “Os museus são como sepulcros de obras de arte, testemunham a neutralização da cultura.” Adorno atribui esse ponto de vista a Valéry: é a visão do artista em seu ateliê, que só pode ver o museu como um lugar de “reificação” e “caos”. Outro ponto de vista é atribuído a Proust, que parte de onde Valéry parou, da “vida póstuma das obras”, que Proust contempla da perspectiva do espectador no museu. Para o espectador idealista, à la Proust, o museu aperfeiçoa o ateliê: é um reino espiritual em que a confusão material da produção artística é destilada, ou, em suas próprias palavras, em que o “salão do museu […], em sua nudez e abstinência sóbria de todos os detalhes, [simboliza] os espaços interiores onde o artista se recolhe para criar”. Em vez de um lugar de reificação, o museu é, para Proust, um meio de reanimação.
Assim como o observador precisa ser concebido como passivo para que possa ser transformado em ativo, a obra de arte precisa ser considerada morta, a fim de que possa ser ressuscitada. Essa ideologia, central para o discurso moderno sobre o museu de arte, é fundamental também para a história da arte “como disciplina humanística”, cuja missão, como escreveu Erwin Panofsky há 75 anos, é “dar vida ao que, do contrário, permaneceria morto”. Aqui, a resposta adequada de nossa época vem da historiadora da arte Amy Knight Powell: “Nem uma instituição nem um indivíduo podem devolver à vida um objeto que nunca viveu.”
A conclusão é, por um lado, que os espectadores não são passivos a ponto de precisarem ser transformados em ativos, e, por outro, que as obras de arte não estão mortas a ponto de necessitarem que sejam reanimadas. Quando bem projetados e dotados de programação inteligente, os museus admitem tanto entretenimento quanto contemplação, e nesse processo promovem também alguma compreensão. Ou seja, eles podem ser espaços nos quais as obras de arte revelam sua “promiscuidade” com outros momentos de sua produção e recepção.
Um papel central do museu é, dessa forma, operar como uma máquina do espaço-tempo, transportar-nos para diferentes períodos e culturas – para diversos modos de perceber, pensar, representar e ser –, a fim de que possamos testá-los em relação a nossas próprias época e cultura, e vice-versa, e, nesse processo, quem sabe transformarmo-nos um pouco. Esse acesso a vários passados e a vários presentes se reveste de particular urgência numa era de um presentismo consumista, de paroquialismo político e de cidadania truncada. No fim das contas, se os museus não são locais em que se cristalizam diversas constelações de passado e presente, para que precisamos deles?
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