Mute
Nada melhor que bico calado para aquecer a relação
Bruno Moreschi | Edição 24, Setembro 2008
O silêncio pactuado do casal Aragão deu o primeiro sinal de vida na esteira de berros emitidos durante a festa de 22 anos do sobrinho Carlos. Fazia dias que Marlene, de 42 anos, estava furiosa com João, um ano mais velho. Moradora do bairro da Liberdade, em São Paulo, não aguentava mais as desculpas pedestres do marido para explicar por que chegava em casa na mesmíssima hora em que o galo anunciava a aurora.
Naquele dia, quando todos se preparavam para o Parabéns pra você, João fez um comentário infeliz: “Aniversário estranho. Nem vela no bolo tem.” Era o fim: “Você sempre vê defeito em tudo!”, gritou Marlene. “Chega! Chega!” O marido vituperou à altura – e assim, em público, se delineou a futura relação sem comentários. Foi tamanho o constrangimento que os dois emburraram pelos três dias seguintes.
Silêncio pesado costuma ser comum em casamentos de dezessete anos, mas Marlene apelou. De cara virada para a parede, disse em alto e bom som: “Ai, meu Deus, que bom se fosse sempre assim.” Acostumado a revides, João foi até o banheiro e, com o batom vermelho da mulher, sentenciou no espelho: “Pois assim será.”
Nas semanas seguintes o silêncio ainda foi parcial, volta e meia se ouviam rosnados que aludiam à contenda. Mas a raiva foi passando, passando, e a inusitada harmonia agradou. Sem palavras, voltaram a sorrir.
Quando o sobrinho Carlos apareceu em missão diplomática para esfriar os ânimos e negociar o entendimento conjugal, encontrou tio e tia de mãos dadas – em tecla mute, por assim dizer. Na primeira meia hora tudo lhe pareceu normal, mas aos poucos reparou que, embora os dois respondessem às perguntas, não se comunicavam entre si. À noite, ainda atônito, escreveu um e-mail ao primo Claudio, filho do casal mudo: “Pode parecer piada, mas parece que eles não se falam mais. Uma palavrinha ou outra, mas coisa rara. Mesmo assim, me pareceram felizes.”
Aqui e ali algum espasmo sonoro ainda perturbava o silêncio: “Vai demorar muito no banheiro?”, perguntava João, querendo escovar os dentes. “Querido, o café está na mesa”, avisava Marlene. Com o passar dos meses, nem essas lascas de conversa sobreviveram. Hoje, a única criatura disposta a tagarelar entre os muros amarelos da casa na rua Dom Duarte Leopoldo é o papagaio de estimação. Educado, ele repete a cada visita que chega: “Como vai?” No ranking mensal de palavras, é o habitante mais loquaz da casa.
O casal resolveu o problema da comunicação com post-its amarelos, mas daqueles menores, nos quais só cabe mesmo o essencial. Neste mês de setembro estão completando dois anos de mutismo. Garantem que, se houver comemoração, ela será discreta, bem diferente da festa do sobrinho.
Marlene e João guardam o que se dizem no criado-efetivamente-mudo ao lado da cama de casal. São os arquivos de uma relação que vai bem. O festival de post-its, além de folhas de caderno e guardanapos de papel rabiscados atestam o dia-a-dia do casal: “Pode pegar minha mãe na natação hoje?”, “Aniversário da sua irmã Aguiar”, “Te amo. Fiquei orgulhosa da sua atitude anteontem, quando defendeu o direito ao aborto na mesa do bar. Da sua radiante Marlene.” Esse último comentário, um dos mais extensos, quase transbordou o exíguo papelzinho amarelo. Há também exemplos de bilhetes apressados, escritos em dias que não permitem devaneios: “Eu ♥ Lene.”
Por mais que no início as famílias tenham chiado, elas acabaram tendo de se conformar. “É só pensar que são mudos enamorados”, aconselha dona Claudia, de 82 anos, mãe de João, tentando convencer o neto Claudio. Morando há três anos na Dinamarca, ele testemunhou, a oceanos de distância, o progressivo emudecimento dos pais. Da última vez que esteve no Brasil, ensinou os dois a usar o Skype. Era uma estratégia. Claudio imaginava que, além de reduzir os custos telefônicos, diante do computador eles voltariam a se falar. Engano. O casal se posta religiosamente em frente à webcam e uma cara-metade chega até a comentar o que diz a outra, mas invariavelmente é ao filho que se dirigem.
Amantíssimos, Marlene e João costumam dormir agarrados, no melhor estilo conchinha. Parece mesmo que João, ao sonhar, deixa vir à tona uma ou outra palavra. Já é um recomeço. Há um mês, ao receber mais um e-mail exasperado do filho, Marlene fez suspense: “Você se engana quando pensa que vivemos mal só porque não nos falamos. Não estamos nos separando, somos, sim, um casal. Acalme-se: em breve ensaiaremos um bate-papo.”
O casal evita contar detalhes, mas entre a família correm fofocas. Suspeita-se de que, via e-mail, João teria proposto carinhosamente à mulher marcar uma data para a reconciliação sonora, ao que Marlene teria respondido que estipular dia e hora seria superficial. E não há como comprovar, mas tem gente dizendo que, na cama, antes da conchinha, os dois andam ensaiando um discreto “Boa noite, amor”.