Isolamento social? Para mim, não havia nenhum. Eu estava cercada de gente – a minha gente ILUSTRAÇÃO: RONALDO MARTINS_2020
Na companhia de Maréia
O isolamento pode ser uma aventura transgressora
Miriam Alves | Edição 164, Maio 2020
Lembro bem: em 2016, me programei para escrever meu segundo romance, Maréia. Estava ainda empolgada com a recepção calorosa ao primeiro, Bará: Na Trilha do Vento, que escrevi em sete meses, mas levei sete anos para publicar. Várias editoras devolveram os originais, sob a alegação de não se enquadrarem na proposta delas, o que sempre me pareceu um argumento evasivo. Quando eu já estava desistindo de ver o livro nas lojas, Moema Parente Augel – professora aposentada da Universidade de Bielefeld, na Alemanha, e doutora em letras – mediou, junto a uma instituição germânica, o financiamento da publicação no Brasil. Foi assim que Bará acabou saindo pela editora Ogum’s, da Bahia, em 2015.
Acostumada com o processo de escrever primeiro e depois correr atrás dos meios que me permitissem alcançar os leitores, comecei a fazer as pesquisas para o segundo romance, que ainda não tinha nome. Simultaneamente, esbocei o eixo narrativo do livro. Em 2017, enquanto me debatia com essa fase embrionária do trabalho, a editora Malê, do Rio de Janeiro, manifestou o interesse de lançar a obra. À época, eu já somava 35 anos de carreira e nunca havia recebido nenhum incentivo dessa natureza para seguir adiante no meu ofício. Estreei em 1982 com alguns textos no quinto volume dos Cadernos Negros, célebre publicação dedicada à literatura afro-brasileira. Um ano depois, editei por conta própria minha primeira coletânea de poemas, Momentos de Busca.
Animadíssima com a oferta da Malê, calculei que terminaria o segundo romance até meados de 2018, mas a empreitada se revelou bem menos amena do que eu supunha. Grosso modo, o enredo de Maréia gira ao redor de duas famílias: uma de negros, os Nunes dos Santos, e outra de brancos, os Menezes de Albuquerque. Quando concebi tais núcleos familiares, me guiei por duas bússolas. Queria que os Nunes dos Santos, espiritualizados e bem-sucedidos, vingassem a sina de Bertoleza, escrava que, no romance O Cortiço, de Aluísio Azevedo, se suicida e chafurda no próprio sangue, como um bicho, após uma desilusão amorosa. Já os Menezes de Albuquerque serviriam para eu rever e questionar alguns feitos considerados heroicos, mas que resultaram na invasão de territórios com o objetivo de dominar, escravizar e dizimar civilizações – um ato predatório que frequentemente me causa pesadelos.
A princípio, julguei que poderia escrever em paralelo às tarefas domésticas, infelizmente definidas como próprias do gênero feminino, e aos encargos de yakekerê, a segunda no comando de um terreiro de candomblé. Entretanto, mal concluí o quinto dos dezessete capítulos que compõem o livro, senti a necessidade de ter mais tempo e disponibilidade emocional para dar conta não apenas da trama, mas principalmente dos personagens, que se revelaram muito intempestivos.
Parei, então, de escrever em casa. Deixei minha filha e a namorada dela no nosso apartamento da Vila Nova Cachoeirinha, em São Paulo, e busquei refúgio no lugar que me parecia mais propício, o meu terreiro, localizado em outro bairro paulistano, o Imirim, onde nasci, 67 anos atrás. Imaginei que, me mudando temporariamente para lá, conseguiria ficar em paz com minha criação. Afinal, as atividades exigidas pelos orixás me tomavam apenas um dia por semana, a segunda-feira. Logo, porém, minha presença atraiu a curiosidade dos filhos de santo, que vira e mexe vinham conversar comigo.
Só me restou voltar para casa. A essa altura, já não pensava em outra coisa senão em meus personagens. Tornei-me absolutamente monotemática e falava o tempo inteiro do livro, para desespero de parentes e amigos. Em 31 de dezembro de 2018, coloquei um ponto final na primeira versão do romance. Estava muito atrasada. Meus cálculos tinham ido para o ralo…
A segunda e definitiva versão me obrigaria a um mergulho ainda mais profundo no trabalho. Eu precisaria reler o texto infinitas vezes, cortar ou acrescentar palavras, corrigir imprecisões, dar coerência ao todo. Por isso, em março de 2019, tomei uma atitude radical: resolvi abdicar das rotinas que ainda mantinha e me confinar em algum lugar tranquilo. Aluguei uma quitinete em Maricá, cidade do litoral fluminense, a uns 60 km do Rio de Janeiro, e a batizei de Cafofinho.
Por três meses, convivi comigo mesma e com a musicista Maréia, o industrial Alfredo, o marinheiro Marcílio, a conselheira Dorotéia, a desvairada Guilhermina e todos os outros personagens do romance. Eu não saía para praticamente nada, mal recebia visitas, não tinha televisão nem perdia horas em telefonemas ou na internet. Me impus prazerosamente o que hoje, lamuriosos, muitos chamam de isolamento social. Para mim, não havia isolamento nenhum. Eu estava cercada de gente – a minha gente.
Enquanto lapidava o livro, refleti bastante sobre a literatura e me fiz várias indagações de cunho pessoal. Desse mergulho, nasceram argumentos para outros três romances, que comecei a esboçar ali mesmo. Em julho do ano passado, finalmente lancei Maréia, durante a Flip – Festa Literária Internacional de Paraty.
Virginia Woolf dizia que as mulheres necessitam de “dinheiro e um teto todo seu” caso queiram escrever ficção. Sempre considerei tal afirmação exageradamente burguesa. Se as condições que a romancista britânica preconizava fossem mesmo essenciais, a escrita de negras como eu se inviabilizaria, já que vivemos outra realidade. A quarentena em Maricá, porém, me fez concordar em parte com Woolf. De fato, um teto todo meu – e tempo – me ajudou a criar. A reclusão também me mostrou que a solidão, quando desejada, pode ser uma aventura transgressora numa sociedade que valoriza tanto o estar com o outro, ainda que em circunstâncias desagradáveis.
O ano de 2020 se prenunciava auspicioso. Minha agenda, lotada, previa palestras de março até o final de outubro. Mas o absurdo nos espreitava. A pandemia se instaurou e transformou o mundo num pandemônio. Gestos banais, de repente, viraram risco de vida. O confinamento doméstico se tornou obrigação.
De minha parte, continuo isolada em Maricá, mesmo depois de lançar Maréia. Descobri que gosto de certo recolhimento. Não foi fácil convencer minha filha de sangue, meus filhos de santo, minha irmã e meus amigos de que morar sozinha, numa cidade pequena, me agrada. Não estou deprimida, não me sinto abandonada, nem acho que abandonei ninguém. Sigo viva e convivendo, mas com menos alarido, menos correria e muito mais afeto em relação a mim e aos outros.
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