Bolsonaro e a cúpula das Forças Armadas no desfile de blindados, em agosto: a distribuição de cargos e benesses, que é uma forma de atrair apoio militar, não existe em democracias liberais, mas é comum em ditaduras que se cercam do poder armado, como a Coreia do Norte CRÉDITO: MARCOS CORRÊA_PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA_2021
Na encruzilhada
A incansável jornada de Bolsonaro para cooptar as Forças Armadas – e o que esperar disso
Consuelo Dieguez | Edição 183, Dezembro 2021
O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, leu a mensagem de WhatsApp na manhã de sábado, 27 de março passado: o presidente Jair Bolsonaro insistia que o comandante do Exército, o general Edson Pujol, fosse demitido imediatamente. O presidente estava irritado com o silêncio do general. Queria que ele tivesse feito um pronunciamento público contra as tentativas dos governadores de decretarem lockdowns para combater o avanço da pandemia. A última vez que um presidente da República pediu a cabeça do comandante do Exército foi em 1977, no governo militar de Ernesto Geisel. O general Azevedo e Silva, que ocupava o cargo de ministro desde o início do governo, leu a mensagem de Bolsonaro em seu celular, mas manteve sua posição: não demitiria Pujol.
Bolsonaro martelou ao longo do fim de semana, enviando diversas outras mensagens ao ministro. Dizia que os lockdowns eram uma violência contra “a liberdade individual” e um atentado à “recuperação econômica”. Queria dar uma demonstração de força e mandar um recado aos governadores de que tinha o apoio dos militares. Mas o general Azevedo tentou explicar que o Exército não poderia e nem dispunha de meios para evitar que os governadores adotassem lockdowns, pois tinham amplo amparo legal para fazê-lo. Nada resolvia o impasse. As mensagens começaram a subir de tom. Com seu perfil conciliador, o general sugeriu que deixassem para conversar pessoalmente, no Palácio do Planalto, na segunda-feira.
A insatisfação de Bolsonaro com Pujol era antiga. No fim de abril do ano passado, durante uma visita ao Centro de Coordenação de Operações de Saúde, do Exército, em Porto Alegre, Bolsonaro estendeu a mão para cumprimentar Pujol, que, em vez de responder com o mesmo gesto, ofereceu-lhe o cotovelo, em respeito às medidas de contenção do vírus. Seria um desencontro banal, como aconteceu a tantas pessoas e tantas vezes na pandemia, mas não para um presidente que sempre fez questão de desprezar as orientações sanitárias. Bolsonaro jamais perdoou o general. O desacerto entre eles só aumentou ao longo dos meses seguintes. Compreendendo a gravidade da pandemia, Pujol se recusava a criticar as medidas de isolamento social em vigor nos estados, o que deixava Bolsonaro ainda mais irritado.
Na tarde de segunda, conforme ficara combinado por WhatsApp, o general Azevedo e Silva entrou no gabinete de Bolsonaro, no terceiro andar do Planalto. Nem foi convidado a sentar-se. “Fernando, quero o seu cargo”, disparou o presidente. O general ficou surpreso, mas não se alterou. “Pois não, presidente, o cargo é seu.” Como compensação ao general, com quem tinha uma amizade antiga, desde a década de 1970 quando cursaram a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), Bolsonaro ofereceu-lhe uma vaga num conselho de alguma estatal no Rio de Janeiro, cidade onde o ex-ministro tem apartamento. Azevedo declinou. O encontro transcorreu em clima frio e, ao final, o general fez um alerta. “Saiba que o senhor não irá colocar as Forças Armadas numa aventura”, disse. “O senhor não vai levar as Forças para a política.”
A piauí reconstituiu o contato entre o presidente e o ministro – das mensagens de WhatsApp à demissão – a partir das versões que Bolsonaro e Azevedo contaram mais tarde para seus interlocutores, entre civis e militares. Demitido, Azevedo e Silva deslocou-se para o Ministério da Defesa. Em seu gabinete, convocou uma reunião com os comandantes das três Forças. Pujol, comandante do Exército, soube da demissão do ministro naquele momento, mas seus colegas da Marinha, almirante Ilques Barbosa Junior, e da Aeronáutica, tenente-brigadeiro do ar Antônio Carlos Bermudez, não ficaram surpresos. Já pressentiam o desfecho desde a véspera, quando receberam um telefonema do ministro da Casa Civil, o general Walter Braga Netto, pedindo-lhes que permanecessem em seus postos caso Azevedo e Silva e Pujol deixassem o governo. Os dois ouviram o apelo de Braga Netto, mas nada prometeram. Na reunião com Azevedo e Silva e Pujol, os dois disseram que também sairiam.
No dia seguinte, 30 de março, houve pela manhã uma tensa reunião dos três comandantes militares com o general Braga Netto, já então nomeado o novo ministro da Defesa em substituição ao general Azevedo e Silva. Segundo três fontes ouvidas pela piauí – duas militares e uma civil –, o almirante Ilques Barbosa Junior era o mais alterado. Deu socos na mesa, discutiu em tom inflamado com Braga Netto. Os dois quase chegaram ao ponto da agressão física. O almirante estava possesso com o apoio de Braga Netto às tentativas de Bolsonaro de envolver as Forças Armadas em seu projeto político pessoal. Na tarde do mesmo dia, os três comandantes comunicaram sua disposição de pedir demissão, acompanhando o ministro Fernando Azevedo e Silva.
No dia seguinte, o general da reserva Paulo Chagas, um dos principais apoiadores de Bolsonaro na campanha de 2018, mas que depois rompeu com ele, esteve no regimento da Cavalaria do Exército, localizado no Setor Militar Complementar, onde pratica equitação. Encontrou-se com Pujol. Na conversa, Chagas ouviu Pujol reclamar que Bolsonaro vinha cobrando dele “posições incompatíveis com a postura que as Forças Armadas têm que ter em função de suas responsabilidades”. Pujol frisou, ainda segundo Chagas, que “as Forças não podem ser partidárias”.
A demissão de toda a cúpula militar – a primeira desde a criação do Ministério da Defesa, em 1999 – coroava a incansável jornada de Bolsonaro para cooptar as Forças Armadas. Em sua nota de despedida, o general Azevedo e Silva deixou implícito que a demissão se dera pela resistência dos quatro militares em ceder às manobras autoritárias do presidente. “Nesse período preservei as Forças Armadas como instituição de Estado”, dizia um trecho. Não era a primeira vez que Bolsonaro tentava subjugar os militares, e também não seria a última. No próprio curso da crise, o presidente já estava empenhado em indicar os novos comandantes sem respeitar as regras tradicionais de antiguidade. Para comandar o Exército, a maior e mais influente das três Forças, queria o general Marco Antônio Freire Gomes, então comandante militar do Nordeste.
A resistência foi robusta. O Alto Comando do Exército, composto por dezessete generais, resolveu se reunir. No encontro, apesar do temor de criar um enfrentamento com o presidente de desfecho imprevisível, os generais tomaram três decisões que desagradaram Bolsonaro. Reafirmaram a posição do general Azevedo e Silva de barrar a politização das Forças Armadas, avisaram o ministro Braga Netto que o critério de antiguidade teria que ser respeitado e elaboraram uma lista tríplice com os nomes dos mais antigos. Fizeram questão de mandar dizer que preferiam que a escolha do presidente recaísse sobre o primeiro nome da lista – no caso do Exército, a lista era liderada pelo general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, então chefe do Departamento-Geral do Pessoal, em Brasília.
Inconformado, Bolsonaro ainda insistiu na indicação de Freire Gomes, cujo nome não constava na lista. Mas o próprio general Gomes apoiou o critério de escolha do Alto Comando e não se apresentou para a vaga. Coube a Braga Netto informar o presidente de que as Forças não aceitariam a quebra do critério de antiguidade. Um dia depois da saída da cúpula militar, os três novos comandantes – todos no topo da lista de suas armas – tomaram posse. “É óbvio que houve uma queda de braço entre o presidente e o Alto Comando”, avalia Raul Jungmann, que ocupou o cargo de ministro da Defesa durante quase dois anos no governo Michel Temer. “E quem ganhou a briga foram os militares.”
Em conversa por telefone, em agosto, o general Paulo Chagas, que concorreu ao governo do Distrito Federal pelo PRP em 2018, interpretou a crise como uma tentativa de golpe do presidente, desmontada pelo Alto Comando do Exército. “No momento em que Bolsonaro concluiu que com aquele quarteto ele não conseguiria uma demonstração de apoio das Forças Armadas, o que ele fez? Demitiu os quatro. Qual a impressão que dá? ‘Olha, se não me apoiar, eu derrubo’”, diz Chagas. Bolsonaro teve de engolir a decisão, mas não deixaria de fustigar as Forças Armadas, sobretudo o Exército. “O comportamento de Bolsonaro tem sido um desgaste para as Forças Armadas”, avalia Chagas. “Ele é uma fonte permanente de tumulto.”
Antes de completar dois meses da crise militar, o presidente arrastou o Exército para uma situação-limite, cujos efeitos ainda reverberam nos quartéis. Mesmo sabendo que militares da ativa são proibidos de participar de qualquer ato de natureza política, Bolsonaro convidou o general da ativa Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, para subir no seu palanque numa manifestação de apoio ao seu governo, no Rio de Janeiro. Pazuello topou, fez um breve discurso – e quebrou uma regra pétrea da disciplina da caserna. O general Paulo Sérgio de Oliveira, recém-empossado no comando do Exército, tinha poderes para decidir sozinho pela punição ao insubordinado, mas preferiu consultar o Alto Comando do Exército, em uma reunião por videoconferência. Queria ouvir seus pares que, por unanimidade, concluíram que a punição era inevitável. O primeiro passo era pedir a Pazuello uma carta de justificação e, então, abrir um processo disciplinar.
Bolsonaro reagiu com irritação e voltou a confrontar os generais. Informado sobre a decisão do Alto Comando pelo general Braga Netto, disse que não aceitaria que seu ex-ministro fosse punido. Entre os generais, como um deles confidenciou à piauí, circulavam comentários de que Bolsonaro estava inclinado a demitir o comandante do Exército caso insistisse no processo contra Pazuello. Entre os oficiais da reserva, disseminou-se a informação segundo a qual os generais do Alto Comando decidiram que, se o comandante fosse demitido, nenhum outro aceitaria o cargo. A adoção dessa postura nunca foi desmentida nem confirmada. Levada à prática, criaria um impasse com consequências imprevisíveis.
O comandante Paulo Sérgio de Oliveira julgou que, ao abrir um inquérito contra Pazuello, não teria como evitar que o próprio Bolsonaro fosse envolvido, já que veio dele, o comandante em chefe das Forças Armadas, “a ordem” para que o ex-ministro subisse num palanque político. Então, cedeu por inteiro à pressão de Bolsonaro: não puniu Pazuello, chancelou a mais evidente quebra de disciplina de um general da ativa e ainda decretou sigilo de cem anos sobre o caso. Na conversa com o Alto Comando, de acordo com o relato de um oficial, Oliveira pediu que o generalato “permanecesse calmo”. Bolsonaro saiu do episódio com uma vitória retumbante: humilhou a cúpula do Exército e, dias antes, ainda decidira proteger Pazuello ao indicá-lo para um cargo no Palácio do Planalto.
No dia seguinte à sua absolvição pública, Pazuello esteve no Clube do Exército, no Lago Sul, em Brasília. Ali, encontrou-se casualmente com o general Paulo Chagas, o ex-bolsonarista. Tiveram uma rápida conversa sobre o assunto. “O próprio Pazuello me disse que achava que deveria ter sido punido”, rememora Chagas, para quem o comandante do Exército, ao isentar o ex-ministro da Saúde, cometeu um erro brutal pelo qual o Exército ainda poderá pagar muito caro. “Isso não pode ser assim. O Paulo Sérgio, ao querer evitar uma crise com o presidente, acabou provocando um mal maior, que foi a abertura de um precedente dentro das Forças Armadas. É claro que isso vai dar problema. Ainda não aconteceu. Mas, se um sargento resolver subir em um palanque e se manifestar, como ele poderá ser punido, se o Pazuello não foi?” E completou: “É claro que o Pazuello sabe o problema que ele criou para a Força.”
Com a chegada de Braga Netto ao Ministério da Defesa, um militar que comunga com a visão da direita radicalizada, Bolsonaro nem precisava mais assumir a linha de frente das crises. Quando o senador Omar Aziz (PSD-AM), então presidente da CPI da Pandemia, disse que “militares da banda podre do Exército” estavam “envolvidos em falcatruas do governo”, Braga Netto acusou o golpe, mas não se contentou em repudiar a declaração do senador. Soltou uma nota ameaçadora, assinada por ele mesmo e pelos novos comandantes das três Forças. As Forças Armadas “não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”, dizia a nota.
“Embora Aziz não devesse ter falado isso, a reação veio muitos tons acima do recomendável”, avalia Raul Jungmann. Ao incluir os comandantes, Braga Netto ampliou a crise. Apesar de levar seu nome, o general Oliveira, o chefe do Exército, nem chegou a ser consultado sobre a nota. Quando foi redigida e distribuída, ele estava voando de Brasília para Porto Alegre. Mas o comandante da Aeronáutica, o tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior, não só aprovou a nota como fez questão de aumentar a temperatura da crise. Em entrevista ao jornal O Globo, disse que a nota era um “alerta” e ameaçou: “Nós não enviaremos cinquenta notas para ele. É apenas essa.” Jungmann critica: “A manifestação do brigadeiro Baptista Junior foi gravíssima. Até então, só quem falava eram militares da reserva. O Baptista foi o primeiro a cruzar a linha e isso é muito grave.”
Nos dias do conflito, Bolsonaro não se manifestou, e nem precisava. As coisas corriam naquele ambiente de tumulto e instabilidade que o presidente tanto estimula. No mês seguinte, em julho, deu-se nova crise, quando uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo informou que o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), recebera um recado ameaçador do general Braga Netto dizendo que, se o voto impresso não fosse aprovado pelos deputados, não haveria eleição em 2022. Braga Netto desmentiu. Lira, não. “O mundo da política em Brasília sabia que a ameaça de Braga Netto era real e foi transmitida pelo Ciro Nogueira [deputado do PP que, no mês seguinte, viraria ministro da Casa Civil]”, disse um deputado que preferiu não se identificar. “Com isso, Braga Netto ficou com fama de golpista. É tudo muito grave.” O procurador-geral da República, Augusto Aras, abriu uma apuração preliminar para investigar o general por “possível infração político-administrativa”.
“O Braga Netto é muito criticado fora e dentro do Exército pelo fato de estar politizando e partidarizando do jeito que está”, disse o general Paulo Chagas. “Mas é preciso que fique claro que, por ser oficial da reserva, ele não está na função de general, e sim numa posição política. Mesmo assim, ele deveria se policiar. Até pela experiência dele como militar ele sabe que não é um político qualquer.” No dia da votação sobre o voto impresso, Bolsonaro tentou dar uma demonstração de força, novamente escudando-se nos militares, e promoveu um desfile de veículos de guerra na Praça dos Três Poderes. O episódio ajudou a esgarçar a relação entre os poderes, mas o voto impresso foi rejeitado, e o desfile virou piada nas redes sociais, com a imagem patética de uma frota, velha e ultrapassada, soltando fumaça de óleo diesel.
Das conversas e entrevistas realizadas nos últimos dois meses com militares da reserva, um oficial da ativa, ex-ministros, consultores e analistas, a piauí identificou uma apreensão generalizada com as tentativas de Bolsonaro de envolver as Forças Armadas para atender suas ambições políticas. Um deles, general da ativa, fez um diagnóstico cortante: “O Jair precisa parar de defender incompetentes, como o Filipe Martins [o assessor palaciano que fez o gesto dos supremacistas brancos numa audiência no Senado e foi inocentado pela Justiça], e gente como o Ricardo Salles, envolvido com o contrabando de madeira ilegal para os Estados Unidos. É uma traição aos desejos da tropa que se mobilizou para levá-lo ao Planalto. Lutamos contra a corrupção e, por isso, fomos contra o candidato do PT. Não dá para o presidente ter bandido de estimação.”
O general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz, de 69 anos, é um dos mais respeitados militares brasileiros. Seu desempenho na missão de paz do Haiti, liderada pelo Exército brasileiro, lhe valeu o convite da Força de Manutenção da Paz da Organização das Nações Unidas (ONU) para comandar a missão de estabilização no Congo, em 2013. Sua indicação criou mal-estar entre os militares brasileiros porque Santos Cruz já havia passado para a reserva quando a ONU fez a solicitação ao governo de Dilma Rousseff. Coube ao então ministro da Defesa, embaixador Celso Amorim, a tarefa de explicar aos comandantes que não havia alternativa. O convite era dirigido a Santos Cruz. Não fosse ele o enviado para a missão, não seria nenhum outro brasileiro.
Santos Cruz tinha uma antiga relação de camaradagem com Bolsonaro. Eles se conheceram nos anos 1970, nos tempos da Aman, a maior escola de formação de oficiais do país. Tinham 20 e poucos anos e se aproximaram por causa do esporte. “Eu era capitão, ele acho que tenente. Ele parecia normal. Era um sujeito engraçado”, avaliou. Depois, Bolsonaro foi mandado para a reserva por ter planejado atentados a bomba para forçar um aumento do soldo dos militares de baixa patente. E seguiu a carreira política. Ao tomar posse, Bolsonaro o indicou para ministro da Secretaria de Governo. Santos Cruz durou pouco no cargo. Deixou o posto em junho de 2019, depois de ser insistentemente atacado nas redes sociais por um dos filhos do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), e pela ala ligada ao ex-astrólogo Olavo de Carvalho. Criticavam-no por tentar conter os seguidos ataques que o grupo fazia contra autoridades da República.
Desde então, Santos Cruz vem aumentando as críticas ao comportamento de Bolsonaro. Num final de tarde de julho, encontrei o general em seu apartamento, na Asa Norte, em Brasília. Vestia-se de maneira informal – roupa esportiva, sandália de dedo e meia. Acomodou-se no sofá e, imediatamente, iniciou a exposição de seu ponto de vista sobre o governo e a relação deste com as Forças Armadas, como se tivesse urgência em falar. “Eu vejo que os militares têm que ficar completamente afastados da política de governo”, disse. “Por serem instituições de Estado, não tem sentido as Forças Armadas ficarem aceitando ser arrastadas pelo presidente da República para o seu projeto pessoal de poder.” E alertou: “É preciso que fique claro que o projeto de Bolsonaro é pessoal. Não tem nada de Brasil nesse projeto. É o projeto de alguém que disse que era contra a reeleição e, desde o primeiro dia de governo, está governando pela reeleição.”
Santos Cruz não esconde sua preocupação com a forma como o presidente insufla sua base de fiéis apoiadores. E relembra seus tempos de comandante em regiões de conflito para explicar por que o comportamento de Bolsonaro é um risco para o Brasil. “O investimento no fanatismo é extremamente perigoso”, disse, como quem inicia uma aula. “Eu vivi quase cinco anos em ambiente de conflito social, na América Central e no Congo. O fanatismo sempre acaba em violência.” Fez uma pausa, e continuou: “O pior é que as pessoas que se envolvem na violência são as pessoas comuns. Os líderes que estimulam a violência geralmente são covardes. Porque eles não participam. Eles insuflam os outros a participar.”
O general não descarta a possibilidade de movimentos fanáticos eclodirem no Brasil. Sua análise é de que há uma série de ações, comuns a todos os regimes totalitários, “seja de direita ou de esquerda”, que o deixam apreensivo. O primeiro deles é a divisão social. “Isso já vinha acontecendo. Não começou com Bolsonaro. Mas foi agravado neste governo.” A segunda forma de insuflar o fanatismo, de acordo com ele, é o assassinato de reputações – de pessoas e de instituições – com a disseminação de fake news. “Por falta de noção institucional, Bolsonaro está causando um prejuízo muito grande a todas as instituições. Inclusive a instituições sólidas como as Forças Armadas, que estão tendo um desgaste grande por causa do comportamento dele.” Em seguida, enumerou outras investidas do presidente. “Ele destruiu o conceito do Ministério da Saúde, ele tenta desmoralizar a Anvisa, que é um órgão técnico. Ele enfraqueceu o Coaf. Ele está destruindo a reputação e o prestígio de vários órgãos.” O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) foi o órgão que, pela primeira vez, levantou suspeitas de que o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) se apropriava de parte do salário dos funcionários de seu gabinete enquanto era deputado estadual, a chamada “rachadinha”.
A questão mais grave em todo esse processo destrutivo é, na visão de Santos Cruz, a cruzada de Bolsonaro contra o sistema eleitoral. “A família dele já foi eleita quase vinte vezes por esse sistema. Ele umas nove vezes, os filhos, quatro, seis. Nunca houve fraude, e agora eles estão planejando uma fraude.” Uma coisa, disse ele, é sugerir o aperfeiçoamento do sistema, outra é criar tumulto, descrédito, conflito, sem apresentar quaisquer provas de fraude. O general aumentou o tom de voz, deixando transparecer uma ponta de indignação. “Um governante não pode ser tão irresponsável a ponto de levar o país para a insegurança. É um show de falta de responsabilidade. É um desrespeito total com as pessoas e as instituições.”
Perguntei se, ao aceitar um cargo no governo, ele não pressentia que Bolsonaro continuaria sendo o radical que sempre foi. Santos Cruz disse que esperava que Bolsonaro, como presidente, adotasse um modo de operar mais moderado. Santos Cruz imaginava que, depois de trinta anos na política, Bolsonaro teria um comportamento compatível com o de um presidente da República. “Ele foi eleito com boas perspectivas. Com condições de tomar diversas decisões boas para o país. Por isso eu concordei em participar de seu governo.”
Então, ao tomar posse, tudo começou a desandar. “Eu fui eleitor dele e não aceito estelionato eleitoral. Aceitei ir para o governo porque acreditei no que estava sendo dito. Havia a promessa de combate à corrupção, reforçada pela presença do juiz Sergio Moro no governo. Ia acabar o toma lá dá cá, havia um projeto para a educação. Havia também a ideia de respeito. De consertar o que estava deficiente, de melhorar o serviço público, o meio ambiente, a questão indígena. Essa era a minha expectativa.”
O primeiro sinal de que tudo sairia do controle, disse o general, foi o aumento da influência de “um grupo de extremistas fanáticos dentro do governo, como Olavo de Carvalho e Filipe Martins”. Essas pessoas, disse ele, não discutiam ideias. “Era gente do mais baixo nível, era uma ralé dando mau exemplo e ainda querendo falar de educação, quando não sabem nem se expressar nas redes sociais.” O governo, ele avalia, se transformou em um culto à personalidade do presidente, característica de “um populismo barato”. E então vieram os discursos a favor do golpe militar em frente ao Quartel-General do Exército, os desfiles de motocicleta, manifestações, na sua visão, típicas de governos autoritários. “O fato é que, quando falta capacidade para governar, se substitui a gestão pelo show. E o que o país precisa? O país precisa de calma para trabalhar, para atrair investimento, para crescer.”
Para o general, sob o comando de Bolsonaro, o Brasil está jogando fora a oportunidade de dar uma virada. Parte da dificuldade na recuperação do país, diz ele, está no aprofundamento da cisão social. “Estamos assistindo a uma desorganização geral. O comportamento dele na pandemia, por exemplo, foi um espetáculo de besteiras e coisas absurdas”, disse. E enumerou os erros de Bolsonaro: colocar em dúvida a eficácia da vacina, insistir no uso da cloroquina, brigar com os governadores e com a comunidade científica. Para ele, estão claras as razões que levaram Bolsonaro para esse caminho. “Ignorância, medo da responsabilidade, falta natural de liderança. E vai fazer a mesma coisa na eleição. Vai usar o argumento da conspiração, da fraude. Isso aumenta muito o risco da violência.”
Entre os países da América do Sul que atravessaram ditaduras nas décadas de 1960 e 1970, o Brasil ocupa uma situação particular. É um dos poucos em que o retorno à democracia não resultou em punição aos militares pelos crimes que cometeram em nome do Estado, como aconteceu na Argentina e no Chile. Nesses países, é quase inadmissível um político vir a público, como fez Bolsonaro inúmeras vezes, para defender a ditadura, a perseguição, a tortura, os assassinatos. “O que acontece é que, nesses países, independentemente de esquerda ou direita, houve um pacto entre as diferentes forças políticas de que os militares tinham que se afastar”, diz Adriana Marques, professora do curso de defesa e gestão estratégica internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Aqui no Brasil, tanto num governo de centro-direita como o de Fernando Henrique, quanto nos governos de centro-esquerda do PT, sempre houve uma acomodação. Quando havia uma situação meio dúbia, a classe política dominante achava que podia recorrer ao apoio dos militares.”
Na redemocratização, criou-se a ideia de que os fardados voltariam para os quartéis e retomariam a atividade para a qual foram designados: a defesa do território nacional contra invasões externas. No entanto, um estudo de 2003, do cientista político Jorge Zaverucha, da Universidade Federal de Pernambuco, intitulado (Des)Controle Civil sobre os Militares no Governo Fernando Henrique Cardoso, já questionava essa noção. “Instaurou-se no Brasil o mito de que a nossa democracia estaria consolidada e o controle civil sobre os militares teria sido restaurado. Desse modo, os militares estariam recolhidos aos quartéis e não teriam significativa participação na vida política brasileira. Esse mito foi construído com o beneplácito da academia – nacional e internacional –, dos políticos e de jornais de grande porte.”
A ilusão de que havia uma normalidade institucional acabou por camuflar o fortalecimento do poderio militar no governo de Fernando Henrique Cardoso, o primeiro governante a cumprir seu mandato regularmente na era democrática. Em 1995, de acordo com Zaverucha, o Brasil recuperou a posição de maior importador de armas da América do Sul. De 1991 a 1996, os gastos militares saltaram de 6 bilhões para 11,2 bilhões de dólares, segundo dados do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos de Londres, entidade que analisa segurança global, riscos políticos e conflitos militares. No governo de João Figueiredo, o último general da ditadura, o Brasil tinha um efetivo de 276 mil homens. No governo FHC, eram 313 mil. Em 2000, perto do final do segundo mandato de FHC, o orçamento do Ministério da Defesa era o segundo maior. Ficava atrás apenas do da Previdência e empatava com o da Saúde.
A própria criação do Ministério da Defesa, que extinguiu os três ministérios militares e colocou um civil no comando, aconteceu em 1999, mais de dez anos depois do fim da ditadura militar. Os fardados só engoliram a proposta depois que foram convencidos por Fernando Henrique de que, sem isso, seriam muito remotas as chances do Brasil de obter um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, antiga ambição dos militares e da diplomacia brasileira. (Em 2018, no governo Michel Temer, porém, os civis perderam o lugar – o general Joaquim Silva e Luna, hoje na direção da Petrobras, foi o primeiro militar a assumir o comando do Ministério da Defesa. O seu atual titular é o terceiro militar consecutivo a ocupar o posto.)
Com Lula na Presidência, o padrão se manteve. Os militares comandaram missões de paz no Haiti, o que, de início, lhes conferiu algum prestígio internacional. O governo patrocinou cursos no exterior para o pessoal das Forças Armadas. Atendeu às antigas demandas de construção de um submarino a propulsão nuclear para a Marinha e de compra de caças para a Aeronáutica. Deu-lhes dinheiro e mais poder. Antes de indicar o diplomata José Viegas Filho para o Ministério da Defesa, Lula consultou os comandantes, invertendo as hierarquias. Tanto que, quando Viegas Filho exigiu celeridade na divulgação de documentos sobre os mortos durante a Guerrilha do Araguaia (1972-76), alguns dos quais executados quando já estavam em poder do Exército, o comandante Francisco Roberto de Albuquerque sentiu-se no direito de criticar o ministro, seu superior hierárquico. Quando Viegas Filho divulgou fotos do jornalista Vladimir Herzog, assassinado nos porões da ditadura, os militares chiaram e acusaram as imagens de “montagem”. Lula arbitrou os conflitos: demitiu Viegas Filho e deixou os militares intocados.
Por tudo isso, os militares sempre prevaleceram no objetivo de jamais prestar contas pelas torturas, assassinatos e desaparecimentos ocorridos na ditadura. No governo FHC, instalou-se a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, cuja ideia inicial era apenas obter dos militares informações sobre o destino dos corpos dos desaparecidos. Pressionada pelos militares, a Comissão acabou se limitando a indenizar os familiares dos quase trezentos mortos e desaparecidos e fornecer-lhes atestado de óbito, mas sem esclarecer as circunstâncias do que aconteceu, muito menos apontar responsáveis. No governo de Dilma Rousseff, ela própria presa e torturada na ditadura, houve uma nova tentativa, com a criação da Comissão Nacional da Verdade, que buscava esclarecer as mortes e apontar os culpados. Os militares protestaram, impediram o avanço dos trabalhos e ainda saíram ressentidos: não gostaram de ver que o pai do general Sérgio Etchegoyen, então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, foi apontado como torturador.
“Os militares nunca aceitaram os princípios básicos da democracia estabelecidos, principalmente, a partir da Constituição de 1988”, diz Adriana Marques, da UFRJ. Ela enumera as mudanças que foram sendo introduzidas desde então, como a criação de mecanismos de controle no Tribunal de Contas da União (1992), a instalação de comissões que tratam da defesa na Câmara dos Deputados (1996) e a criação do próprio Ministério da Defesa (1999), além do controle das Forças Armadas pelo Ministério Público (2019). “Os militares foram se adaptando a algumas dessas mudanças”, avalia Marques. “Mas uma coisa é se adaptar, outra é introjetar os valores democráticos. Como esses valores nunca foram introjetados, no momento em que o governo Bolsonaro ofereceu a oportunidade de voltarem a interferir abertamente na vida nacional, eles entraram de cabeça.”
O desapego militar aos valores democráticos é objeto de estudos no Brasil. O antropólogo Celso Castro, em seu livro O Espírito Militar, publicado pela primeira vez em 1990 e reeditado em setembro passado, faz um levantamento minucioso sobre o pensamento e o comportamento dos cadetes da Aman durante os anos de 1987 a 1990. Na nova edição, Castro chama a atenção para o fato de que, passados trinta anos da sua pesquisa inicial, tudo permanece igual, em que pesem as décadas de democracia. O fenômeno remete ao que ele chama de “recrutamento endógeno”, ou seja, os militares de hoje são filhos de militares de ontem. Segundo sua pesquisa, nos anos 1940, a participação de filhos de militares na Aman era de 20%. Nos anos 1980, já era metade. Na década de 90, batia em 60%. Além disso, entre 1976 e 1985, mais de 90% dos cadetes da Aman tinham estudado em colégios militares.
Os dados mostram que esses militares pouco contato tiveram com o mundo civil – e, por extensão, com as demandas democráticas que foram se cristalizando no país depois da ditadura. Eles nascem em famílias de militares, entram nas escolas militares por volta dos 9 anos e passam a vida fechados entre companheiros de fardas, nas academias militares, nas guarnições, nas vilas militares e nos clubes militares. Não é casual que alguns dos fardados de maior projeção hoje – o vice-presidente Hamilton Mourão, os generais Augusto Heleno, Villas Bôas, Sérgio Etchegoyen ou Luiz Eduardo Ramos – sejam todos filhos de militares. Além disso, embora tenham começado suas carreiras na transição para o regime democrático, esses mesmos generais passaram pelas academias durante os anos de chumbo da ditadura militar, onde absorveram os conceitos refratários a um regime de amplas liberdades. “É a construção de dois mundos, o dos militares e dos paisanos, com éticas diferentes. O nós e o eles. E os valores positivos, como patriotismo, disciplina, ordem, respeito à família e às instituições, na cabeça dos militares estão no mundo deles, enquanto os negativos, no dos civis”, diz Castro.
“Caótica e lamentável.” Com esses adjetivos, o general Augusto Heleno, então comandante militar da Amazônia, classificou a política indigenista que vinha sendo executada no governo Lula. Heleno estava dando uma palestra no Clube Militar do Rio de Janeiro e falava sobre uma medida recente do governo: a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, uma das maiores do país, situada no nordeste de Roraima. Heleno, aliado dos arrozeiros instalados na reserva, achava que a demarcação era um erro e não se intimidou de criticá-la abertamente, quebrando a hierarquia. Sua indisciplina foi punida sem demora: Lula mandou demiti-lo.
O episódio, ocorrido em abril de 2008, ilustra bem o deslocamento geográfico promovido pelos militares no regime democrático. Como a tradicional desconfiança militar em relação à Argentina estava se esvaziando com a integração regional do Mercosul, as unidades estacionadas no Sul do Brasil acabaram parcialmente transferidas para a Amazônia, que se transformou no comando mais importante do país. “O comandante militar da Amazônia era uma espécie de vice-rei”, descreve Adriana Marques, da UFRJ. Ali, numa região sensível – com garimpo, índios, agronegócio, desmatamento e fronteiras quentes –, os militares cravaram sua bandeira. De tal modo que Heleno achou que podia criticar a política indigenista do governo.
“No governo Lula, os militares começaram a fazer vários testes com os civis e o sistema político foi aceitando”, diz Marques. “O caso da Raposa Serra do Sol foi exemplar porque é a primeira vez que um general da ativa faz um pronunciamento questionando uma política pública governamental.” Não seria a única ousadia. Em Brasília, o então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, tentava neutralizar a ascendência dos militares sobre a área de segurança pública. Criou a Força Nacional, por exemplo, para intervir nos estados quando solicitada. “A ideia era tirar do Exército a ingerência sobre a segurança interna e sobre os grandes eventos. Os militares haviam coordenado a segurança da Eco-92, e o que se queria era passar essas atribuições para os civis”, lembra o advogado Pedro Abramovay, que, na época, assessorava Thomaz Bastos.
No dia 28 de novembro de 2010, no entanto, o Ministério da Justiça foi surpreendido com a presença das tropas do Exército hasteando a bandeira do Brasil no alto do Morro do Alemão, uma comunidade da Zona Norte do Rio de Janeiro, dominada pelo tráfico. Oitocentos homens do Exército e mais de 1,3 mil agentes da Polícia Federal ocuparam a comunidade sem que o governo federal tivesse sido sequer avisado. “A ocupação foi combinada pelo ministro da Defesa da época, Nelson Jobim, com o então governador do Rio, Sérgio Cabral. Eles eram do mesmo partido, o PMDB”, diz Abramovay. A ocupação acabou desconstruindo a política de controle civil na segurança pública.
“A ideia de o Exército voltar para valer para a segurança pública, depois de oito anos de esforço para tirá-los dessa função, acabou se consolidando no governo da Dilma”, explica Abramovay, “mesmo que o ato inicial tenha se dado no governo do Lula.” Mas a influência crescente dos militares chegaria ao auge no governo de Michel Temer, que se reuniu com os chefes fardados para saber se aceitariam o impeachment, depois os consultou sobre a indicação do civil Raul Jungmann para o comando do Ministério da Defesa e ainda devolveu o status ministerial ao Gabinete de Segurança Institucional, foco de influência militar no Palácio do Planalto, que Dilma retirara.
O ápice da influência militar deu-se em abril de 2018, quando o general Villas Bôas, então comandante do Exército, sem avisar o ministro Raul Jungmann, divulgou o famigerado “tuíte da ameaça”. A mensagem instava o Supremo Tribunal Federal (STF) a rejeitar o habeas corpus pedido pela defesa de Lula, então investigado na Operação Lava Jato, ou, em caso negativo, o Exército teria que tomar uma atitude para atender “o anseio de todos os cidadãos de bem”. No regime democrático, jamais um general da ativa tinha chegado tão longe, com uma ameaça tão explícita. O STF rejeitou o habeas corpus. Lula foi preso quatro dias depois.
“Os militares nunca abandonaram a sua longa tradição salvacionista”, diz a professora Adriana Marques. Ou seja: a ideia de que, nos mais graves momentos nacionais, são eles os únicos capazes de “salvar” o país. Durante o processo de impeachment de Dilma, concluído em agosto de 2016, Villas Bôas recebeu mais gente em seu gabinete para tratar da crise do que o próprio vice-presidente, Michel Temer. Depois, na eleição de 2018 que consagraria Bolsonaro, Villas Bôas recebeu não apenas políticos e empresários em seu gabinete, mas também todos os candidatos à Presidência da República. Queria ouvir seus planos para o país.
O livro Os Militares e a Crise Brasileira, organizado pelo pesquisador João Roberto Martins Filho, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) aborda uma questão-chave: “Por que tantos generais se dispuseram a patrocinar a elevação em chefe das Forças Armadas do pequeno oficial ambicioso e indisciplinado dos anos 1980, que saiu do Exército pela porta dos fundos? Por que se empenharam em influir diretamente na crise política? Por que militaram ativamente na campanha eleitoral? E por que aceitam ser cúmplices de um presidente como Bolsonaro?”
A cúpula militar das Forças Armadas sempre soube que Bolsonaro não era um lírio no pântano. “Mau militar”, já dissera o então presidente Ernesto Geisel, levando em conta o atentado a bomba que Bolsonaro planejou. Mas generais, brigadeiros e almirantes achavam que, de algum modo, conseguiriam mantê-lo sob seu controle. Antes da posse presidencial, o general Villas Bôas aconselhou Bolsonaro a não colocar o general Heleno no comando do Ministério da Defesa, por exemplo. Recomendou que o levasse para uma função dentro do Palácio do Planalto, onde seria mais “proveitoso”. Trocando em miúdos: sendo vizinho do gabinete presidencial, Heleno poderia exercer maior influência sobre Bolsonaro.
A tutela não funcionou. Bolsonaro nunca se colocou ao lado dos seus generais diante dos ataques do filho Carlos Bolsonaro e do guru ideológico, Olavo de Carvalho, e sua turma. Carvalho atacou Heleno, Santos Cruz e o próprio Villas Bôas. Sobre este último chegou a dizer o seguinte no Facebook: “Há coisas que nunca esperei ver, mas estou vendo. A pior delas foi altos oficiais militares, acossados por afirmações minhas que não conseguem contestar, irem buscar proteção escondendo-se por trás de um doente preso a uma cadeira de rodas. Nem o Lula seria capaz de tamanha baixeza.” Referia-se à situação do general, que anda de cadeira de rodas por causa de uma doença degenerativa. O presidente calou-se.
A distribuição de cargos e benesses é uma forma tradicional de atrair apoio militar em regimes de viés autoritário. É coisa que não existe em democracias liberais, como Alemanha, Estados Unidos ou França, mas é comum na Coreia do Norte, no Irã, na Venezuela, ditaduras que se cercam do poder armado. Com Bolsonaro, o governo está coalhado de fardados. São mais de 6 mil em cargos civis. Das 46 estatais sob controle direto da União, 16 são presididas por membros das Forças Armadas: 8 do Exército, 7 da Marinha e 1 da Aeronáutica. Somando-se os salários da estatal com os soldos de militar, eles ganham remunerações elevadíssimas, como o presidente da Petrobras, general Joaquim Silva e Luna, que recebe 260 mil reais por mês. Outros superam em muito o teto salarial do funcionalismo, como o general Floriano Peixoto Vieira Neto, dos Correios (77 mil reais), ou o contra-almirante Carlos Henrique Silva Seixas, da Nuclebrás Equipamentos Pesados (60 mil reais).
Um levantamento feito pelo jornal O Globo mostrou que, dos 33 generais que passaram pelo Alto Comando do Exército e depois foram para a reserva na última década, nada menos que 21 acabaram indicados para algum cargo de confiança sem qualquer relação com a área militar. Desses, 11 ganharam um posto civil no governo Bolsonaro. Para completar o quadro de favorecimento dos militares pelo governo atual, no orçamento de 2022 está previsto que os fardados da ativa ganharão um prêmio: aumento salarial de 25%.
Mas, apesar dos privilégios, até agora a cúpula militar não cedeu aos arroubos autoritários de Bolsonaro. Estudioso do assunto, o cientista político Octavio Amorim Neto, da Fundação Getulio Vargas, avalia que o episódio de março passado, que culminou com a demissão do general Fernando Azevedo e Silva do Ministério da Defesa, representou uma ruptura importante com o presidente. “A saída dele e dos três comandantes, com a decisão do Alto Comando de indicar o general Paulo Sérgio para o comando do Exército, sinalizou um comprometimento das Forças Armadas com a ordem democrática e a Constituição”, diz ele.
Na sua visão, mesmo considerando que os novos comandantes da Marinha e da Aeronáutica são bolsonaristas, era claro o constrangimento do general Paulo Sérgio no desfile da fumaça de óleo diesel no dia da votação do voto impresso. “O general Paulo Sérgio foi muito humilhado por Bolsonaro ao ter que participar daquela palhaçada. Foi muito humilhado também no caso de Pazuello. Mas, dos 17 generais do Alto Comando, tirando 3 ou 4 bolsonaristas, os outros tendem a agir de forma unânime. Vão proteger o Paulo Sérgio e não vão se aliar a movimentos golpistas de Bolsonaro.” Ele explica: “Historicamente, para se ter um golpe, como o de 1964, é preciso uma série de combinações. É preciso união das Forças Armadas em torno do movimento, apoio do grande empresariado, apoio da imprensa e apoio internacional. Nenhum desses elementos está presente agora.”
O general Santos Cruz também descarta um golpe. “O país tem lei. O Judiciário pode não funcionar muito bem, o Ministério Público também. Mas temos leis. Duvido que algum comandante vá colocar a sua carreira e toda a sua instituição em risco para apoiar um aventureiro político”, diz. Ele também não acredita em divisão das Forças Armadas. “Uma coisa é o militar eleitor. Outra é o militar representando uma instituição. Aí, ele segue o comandante. A união é muito forte em torno dos comandantes.” E completa: “Ele [Bolsonaro] está tentando, mas não vai arrastar o Exército para a política.” O general Paulo Chagas tampouco teme que Bolsonaro seduza as Forças Armadas para ações antidemocráticas. “Ele não tem liderança nem prestígio para isso. Tem liderança para tumultuar. Pode pegar um grupo de pessoas e sair às ruas para fazer baderna, como os black blocs. Mas não para insuflar as Forças Armadas.”
Encerrando a entrevista em seu apartamento em Brasília, Santos Cruz explicou por que decidiu falar tanto publicamente. “Primeiro, alertar a nossa sociedade de que ela não pode aceitar esse fanatismo que sempre acaba em violência.” Em segundo lugar, disse ele, porque “é uma obrigação de todo militar da reserva não deixar que as Forças Armadas, como é o caso do Exército, sejam arrastadas para uma aventura política pessoal.” Santos Cruz interrompeu a conversa para atender ao celular. Era o general Otávio Rêgo Barros, que foi porta-voz de Bolsonaro e acabou demitido pelo presidente. Perguntou se ele concordaria em falar comigo sobre os esforços de Bolsonaro para subjugar as Forças Armadas. Rêgo Barros declinou. Santos Cruz lhe explicou a razão de estar me dando uma entrevista. “Eu estou falando. Acho que todos nós deveríamos falar. Para alertar a sociedade.” E, apesar de todas as suas certezas, concluiu: “Porque, senão, não sei onde vamos parar.”
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