ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
Na escuta
"Você deságua em mim" ainda é batata
Roberto Kaz | Edição 31, Abril 2009
Às 22h30 de um recente dia útil, Luiz Paulo Roriz aproximou o rosto do gravador e, ao ouvir o primeiro acorde no palco, sussurrou: “Começando o registro de música ao vivo. Danceteria Far Up, Rio de Janeiro.” Acrescentou data, hora e nome completo. Depois se calou, concentrando-se na balada romântica que a banda executava: I’m never gonna dance again,/ guilty feet have got no rhythm, de George Michael. “Se alguém me pergunta o que estou fazendo, digo que explico depois. A conversa atrapalha”, justifica.
Roriz é funcionário do Ecad — Escritório Central de Arrecadação e Distribuição —, organização sem fins lucrativos criada para taxar emissoras de rádio, TVs, lojas, bares, restaurantes, academias, hotéis, motéis e qualquer outro lugar público que ofereça a seus fregueses as delícias ou os horrores da música ambiente, gravada ou ao vivo. A receita auferida fará a alegria ou a tristeza de compositores e intérpretes. Em 2008 a bolada foi de 271 milhões de reais, repartidos substancialmente por campeões de audiência como Herbert Vianna, Nando Reis e Jorge Ben Jor, nomes cativos da lista dos dez-mais.
A Luiz Paulo Roriz, assim como a outros vinte funcionários espalhados pelo país, cabe fiscalizar apenas o que é tocado ao vivo. A partir desse levantamento, é feita uma projeção estatística e se providencia a distribuição. Goste-se ou não, cada vez que um fiscal ouve um cantor de botequim entoar Você deságua em mim/ e eu oceano/ e esqueço que amar/ é quase uma dor, pinga uma moeda no bolso de Djavan.
Como todo “operador de gravação” — título engalanado que o Ecad dá a seus detetives sonoros —, Roriz sai para a faina munido de gravador MP3, prancheta, lanterninha e uma planilha em que anota as canções tocadas, a hora e, se possível, o nome do intérprete e do autor. Quando não reconhece uma música, ele transcreve um verso para procurar depois no Google. “O mais difícil é forró”, diz, “porque não dá para entender direito o que os caras falam.”
Com treze anos de profissão, Roriz está vacinado contra algumas ciladas — Parabéns a você, por exemplo. Se a música é apenas instrumental, os royalties acabam nos cofres da Time Warner, que detém os direitos da melodia. Se cantada, a arrecadação é dividida entre a multinacional americana e as famílias de Léa Magalhães e Jorge Mello Gambier, proprietárias do copyright da letra em português.
Roriz trabalha como operador de gravação de terça a domingo, o que aumenta os seus proventos em 1 100 reais; durante o dia, leciona sociologia e filosofia no segundo grau. Dono de uma coleção de 500 discos, ele se considera especialista em MPB, samba de raiz, choro, pop e rock.
Sua escala de trabalho muda de acordo com a semana e o mês. Em fevereiro ele acionou o gravador no bar Carioca da Gema, no restaurante do Hotel Sheraton, num show de mulatas na churrascaria Plataforma I, na Banda de Ipanema e no desfile das escolas de samba. Em março, o ponto alto foi também no sambódromo: show do Iron Maiden na Praça da Apoteose. Embora a banda só costume tocar músicas próprias, Roriz estava lá, de orelha em pé para se certificar de que eles não cairiam na tentação de mandar um sucesso alheio — por exemplo, a imortal At the Copa, Copacabana: “Her name was Lola,/ she was a showgirl”, de Barry Manilow. Não caíram, e Roriz ficou contente com o show.
Sem dúvida, melhor uma guitarra distorcida do que ser espremido na rua por 400 mil pessoas, como acontecera dias antes, na passagem do Monobloco pelo centro do Rio. “Gravar bloco é surreal. Todo mundo pulando que nem louco e eu no meio anotando.” A dinâmica é complexa: “Se eu ficar muito perto, não escrevo. Se ficar longe, não escuto.”
Profissional, Roriz se preocupa em adequar seu uniforme ao local de trabalho. Em bares mais simples, usa sapato preto, calça social e camisa de botão, sempre com uma bolsa de couro a tiracolo e o crachá pendurado no pescoço. Em restaurantes chiques, como o Cipriani, do Copacabana Palace, prefere paletó e gravata. “Mas lá é chato. O pianista toca três músicas e pára. Mais três, e pára de novo. Vai a conta-gotas.” Infelizmente, ele não tem como aproveitar os intervalos para abocanhar trufas pretas: “Não posso aceitar comida… Mas também eles nunca oferecem.”
Sempre colado ao palco, Roriz já assistiu a shows de Ozzy Osbourne, The Police, Santana e Madonna. Já passou Réveillon em clube de subúrbio. E já varou a noite em festival de música eletrônica: “O problema é aquele ritmo, mas tem que ir. Peguei música da Madonna e do Depeche Mode no meio da mixagem”, conta. Em casa gosta de escutar a rádio MEC e os Beatles. Jorge Vercillo, Ana Carolina e Preta Gil atravessam seus ouvidos por razões exclusivamente profissionais.
Depois de uma hora na boate Far Up, a planilha está abarrotada de informações. Is This Love, de Bob Marley, tocou às 22h52. Holiday, de Madonna, às 23h05. Can’t Take My Eyes Off of You, de Frank Valli, às 23h42. À medida que a apresentação caminha para o fim, Roriz vai se preparando para o pior. Logo adiante virá o abismo que assombra todo operador de gravação: o medley (antigo pot-pourri). É preciso ser rapidíssimo no gatilho: 23h55 País Tropical, 23h56 Fio Maravilha, 23h58 Taj Mahal, 23h59 A Banda do Zé Pretinho, 24h: fim.
Roriz respira aliviado: “Eram todas do Jorge Ben Jor.” Com a boca no gravador, registra: “Está terminando a gravação de música ao vivo. É meia-noite.” Vai para casa com a satisfação de quem acaba de tornar um compositor quatro músicas mais rico.