Celene Carvalho é católica, foi imigrante ilegal nos Estados Unidos e entende de carro. Tem rodado pelo Brasil levando o Pixuleco no porta-malas para as manifestações FOTO: ROBERTO KAZ
Na estrada com Pixuleco
Entre facadas e aplausos, o boneco gigante do ex-presidente Lula faz sua turnê pelo Brasil
Roberto Kaz | Edição 109, Outubro 2015
“Joinha”, disse Celene Carvalho, ao telefone. “Vê aí a próxima parada para eu poder ter rumo aqui. Vamos esquematizar Porto Alegre. Tem que ter gradil e segurança.” Ao desligar, comentou, preocupada, que antes seria preciso reparar o estrago. Fez um apelo aos céus: “Deus, protege e ajuda para que a gente possa costurar o Pixuleco tranquilamente.”
Eram duas da tarde de um sábado recente em Caxias do Sul. Fazia pouco que o Pixuleco – o boneco inflável do ex-presidente Lula vestido de presidiário – fora enchido, exposto e esfaqueado na praça mais movimentada da cidade. Ele havia descido de São Paulo à Serra Gaúcha em companhia de Carvalho para participar da semana que comemora a Guerra dos Farrapos. Acabou vitimado pela tempestade e, logo em seguida, pelo atentado.
“Como chovia muito, achei melhor esvaziá-lo”, explicou Carvalho, relembrando a cena. “A turma correu para debaixo de uma marquise e eu fui comprar meias Kendall na farmácia.” Foi quando, na ausência de um guarda-costas, surgiram dois rapazes encapuzados. Agacharam-se sobre o boneco, que estava sozinho, murcho, dobrado na calçada, e passaram a apunhalá-lo.
Houve correria. Alguém chamou a polícia. Ninguém foi capturado. Suspeitou-se de um homem que se aproximara aos berros, horas antes, chamando todos de “golpistas” e “safados”. O empresário Alexandre Lima, que ajudara a organizar a ida do boneco a Caxias do Sul, se dizia entristecido: “Isso mostra que a cidade abriga criminosos. Um cara que apunhala um boneco com uma faca pode qualquer coisa.” Celene Carvalho parecia menos abalada: “A gente já está preparada. O Pixuleco não é um coitado. Ele é um gorila, está aí pra briga.”
O boneco acabou sendo colocado na caçamba de uma carreta, que o transportou a um galpão, onde seria costurado.
O Pixuleco veio ao mundo em agosto, numa fábrica de objetos infláveis em São Paulo. Nasceu grande – tinha 15 metros de altura – e pesado – 100 quilos, vazio, ou meia tonelada, quando inflado. Começara a ser concebido dois meses antes, na sede do Movimento Brasil, em Maceió. O grupo, que se define como defensor da democracia, da ética, da honestidade, do civismo, do patriotismo, do antibolivarianismo e da brasilidade, foi um dos vários que surgiram nos últimos anos em oposição ao governo federal.
O empresário Paulo Gusmão, de 52 anos, é quem responde pelo marketing do Movimento Brasil. “O sucesso das manifestações estava sendo medido pelo número de pessoas”, contou-me por telefone. “Mas o brasileiro é acomodado, não vai para a rua. Ficava aquela comparação maldosa dizendo que o movimento tinha esfriado.” A diretoria do grupo pensou ser necessário criar um símbolo – ou, como explicou Gusmão, “alguma coisa que tirasse a importância do número de manifestantes”. O símbolo seria um gigantesco Lula inflável.
Orçaram a ideia e organizaram uma vaquinha para bancar o custo de 12 mil reais. Gusmão passou a rascunhar o boneco. Definiu, com sua equipe de marketing, que ele deveria ser grisalho, ter quatro dedos na mão esquerda e possuir um semblante triste e algo assustado. Usaria uniforme de detento, cujo número – 13-171 – uniria a legenda do PT ao artigo do Código Penal para o crime de estelionato. Estaria acorrentado à réplica de uma bola de chumbo com o nome da Operação Lava Jato, a investigação da Polícia Federal sobre o esquema bilionário de desvio de recursos na Petrobras. “Fizemos uma gestão de equipe”, explicou o empresário. O resultado, que lembra um personagem do desenho South Park, foi então enviado à fabrica, em São Paulo.
Faltava batizar a criatura. Pensaram em Luleco, e depois em Pixuleco – eufemismo que o ex-tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, empregava ao cobrar propina de empresas ligadas à Petrobras. O termo também designava uma fase recente da Operação Lava Jato. “Tínhamos que promover a expressão”, contou-me Celene Carvalho quando a encontrei em Caxias do Sul. “Era preciso dar ênfase ao crime, não ao cara.” Venceu Pixuleco.
Na sexta-feira, 14 de agosto, o boneco deixou São Paulo socado entre malas e caixas no bagageiro de um ônibus. Tinha estreia marcada para dali a dois dias, durante o protesto nacional que estava sendo arquitetado contra o governo Dilma. Seria inflado às nove da manhã na Esplanada dos Ministérios, deixando para trás a condição de anonimato.
O sucesso foi tão instantâneo quanto fugaz. Pouco depois de erguido, uma rajada de vento levantou o boneco. Foi um corre-corre atrás das cordas que o prendiam ao chão, na tentativa de contê-lo. A força contrária acabaria abrindo um rasgo de um metro na altura do pescoço. Como planejado, o Pixuleco saiu em jornais, revistas e sites. Depois voltou a São Paulo – onde ficaria sob a tutela de Carvalho –, para ser remendado na fábrica.
O roteiro de rasgo e remendo se tornaria constante. Na manhã de sexta, 28 de agosto, o boneco foi montado na capital paulista, em meio à ponte estaiada, na Zona Sul da cidade. Rasgou. Recebeu ajustes. À tarde reapareceu em frente ao prédio da Prefeitura. Lá, pela primeira vez, seria esfaqueado. A diligente Carvalho providenciou o conserto, enquanto a manifestante Meire Lopes – que integra os movimentos Revoltados On Line, Brasil Melhor e SOS Brasil – ia à 3ª Delegacia de Polícia registrar um Boletim de Ocorrência. Cauteloso, o delegado Renato Velloso pediu um exame de corpo de delito: “O boneco citado não chegou a ser apresentado nesta distrital, porém, ad cautelam, e com orientação para tal, determinou-se a expedição de requisição pericial a ser realizada pelo Instituto de Criminalística.” Como já estava recebendo reparos na fábrica, o boneco acabou não sendo periciado.
A partir de então, protetora e criatura virariam unha e carne. No domingo, dia 30, Carvalho o levou para desfilar na avenida Paulista: “Todo mundo tirava foto. Um rapaz deu 200 reais para ajudar a causa.” Na terça seguinte, foram a Curitiba: “Primeiro paramos em frente à carceragem da Polícia Federal. O pessoal desceu para agradecer. Depois seguimos para o prédio da Justiça Federal, onde o Moro trabalha.” (O juiz Sérgio Moro, que julga os réus da Operação Lava Jato, é idolatrado por dez entre dez integrantes do movimento.)
A dupla voltou a São Paulo e, após uma breve parada, seguiu de carro para o desfile de 7 de setembro em Brasília. Lá o boneco encontraria seu alter ego feminino – um inflável de Dilma Rousseff, também encomendado pelo Movimento Brasil, que acabaria não alcançando o mesmo sucesso. Novo rasgo, nova cicatriz, nova baixa na fábrica. No domingo seguinte, a guardiã o levou direto da oficina para um jogo de futebol da série D, em Ribeirão Preto. “É bom ele ir a um estádio, para que as pessoas saibam o que está acontecendo no país”, explicou. “Além disso, Ribeirão Preto é a terra do Palocci.”
No dia 16 de setembro, aniversário de um mês do Pixuleco, os dois viajaram de carro para Presidente Prudente, onde a presidente da República entregava 2 mil casas. “No meu hotel tinha quarenta pessoas da comitiva da Dilma. Fiquei preocupada”, lembrou Carvalho. O boneco foi inflado duas vezes, de manhã e à tarde, e nas duas ocasiões precisou ser costurado. “É um estouro danado quando rasga.”
Celene Carvalho esperava retornar a São Paulo em seguida, mas acabou convencida por Daniel Santos, representante do Movimento Brasil em Caxias do Sul, a levar o boneco ao encerramento da comemoração da Farroupilha. Dobrou seu companheiro de viagem, enfiou-o mais uma vez no porta-malas e, ao som de Elis Regina, afundou o pé na tábua. Dias depois me diria: “Para mim, mil quilômetros já virou piada.”
Às duas e meia da tarde, Carvalho chegou ao galpão onde repousava o Pixuleco, depois de ter sido esfaqueado em Caxias do Sul. O boneco, que amanhecera imponente, em praça pública, cercado de correligionários, agora não passava de um amontoado de lona suja, retorcida, molhada e perfurada. Foi tirado da carreta e estendido no chão para ter os danos avaliados. “Vai dar trabalho isso aí. Está muito cortado”, comentou sua companheira, enquanto fotografava cada buraco.
Ela voltou ao carro e tirou do porta-malas dois pedaços de lona – um preto e um branco. Notou que havia esquecido em Presidente Prudente o kit de costura que costuma levar nas viagens. Ligou para Daniel Santos, do Movimento Brasil: “Daniel, traz agulha e linha. Meu kit de costura está furado.” Depois explicou: “Sempre peço para deixar uma costureira de plantão. O Pixuleco rasga fácil.”
O galpão estava movimentado. Além de Carvalho, havia um repórter do Wall Street Journal e uma equipe do Pioneiro, o maior jornal de Caxias do Sul. Também estavam o dono da empresa, Felipe Santos, e a ativista Carla Zambelli, porta-voz dos movimentos pelo impeachment. Zambelli viera de São Paulo naquela manhã para participar da manifestação. “Eu já tinha visto o Pixuleco em Brasília”, explicou. “Mas esse ato de hoje era simbólico. A Revolução Farroupilha tem muito a ver com o que está acontecendo no país. Foi uma luta contra os impostos.”
Santos chegou com as costureiras – sua mãe e sua sogra –, que examinaram os rasgos, alguns com quase 1 metro de comprimento, e vaticinaram: “Isso na mão não serve.” Ele foi incumbido de achar alguém que tivesse uma máquina de costura. Diante da demora, as duas senhoras, com a ajuda de Carvalho e Zambelli, começaram a costurar.
“Eles acham que rasgando o Pixuleco vão parar a gente”, resmungou Carvalho, enquanto dava um ponto na lona. Carla Zambelli aproveitou a deixa: “Acho que a gente tem que fazer um vídeo nesse sentido. Alê, vamos fazer um vídeo?” O empresário Alexandre Lima pegou a câmera para filmar Zambelli costurando o boneco. Ele foi o primeiro a falar: “Nós não esmorecemos frente a agressões. Nós não esmorecemos frente a atos de violência que são praticados contra nós.” Ela emendou: “Sempre terá alguém para nos ajudar. Sempre terá alguém lutando ao nosso lado contra o PT, e contra as mazelas da corrupção. A gente vai consertar o boneco, e ele estará de pé novamente rodando o Brasil para que a gente possa colocar o Lula na cadeia e tirar a Dilma de uma vez da Presidência da República. É impeachment já.” Terminado o vídeo, Zambelli deixou a costura de lado.
Às cinco da tarde, a máquina e uma terceira costureira finalmente chegaram. O dono do galpão colocou um disco de sua banda, a The Mennas. Carvalho comentou que na semana seguinte ficaria pronto o jingle do Pixuleco. Foi interrompida por Daniel Santos, que exclamou eufórico: “Celene, a Dilma está indo para Porto Alegre!”
“Quando?”
“Hoje”, respondeu. “Querem levar o boneco para a frente da casa dela.”
“É muito invasivo”, ponderou Carvalho. “Acho que a gente não deve cutucar tão de perto.” Após um tempo em silêncio, mudou de ideia: “Mas, olha, diante dessa agressão, seria um troco interessante. É uma coisa de honra. Vamos meditar.”
A companheira do boneco conectou o celular ao wi-fi (ela se comunica quase sempre por WhatsApp e, por falta de crédito no telefone, só checa as mensagens quando encontra uma rede grátis). Entraram dezenas de mensagens. “A turma está apavorada perguntando sobre o Pixuleco”, explicou. “Esqueci de mandar feedback.” Decidiu filmar o boneco sendo remendado: “Pessoal, estamos aqui em Caxias do Sul. Pixuleco foi ultra-atacado com quinze facadas. Está sendo costurado por três senhoras; as meninas são maravilhosas, estão firmes e fortes. Foi só mais uma agressão dos petralhas. Mas se eles acham que atacando o Pixuleco vão nos parar, estão enganados. Ele vai continuar fazendo a turnê dele pelo Brasil. Está apenas começando.”
As costureiras terminaram. O boneco foi estendido de ponta a ponta no galpão, para uma última checagem. “Pixuleco já em posição aqui. Pessoal, vamos inflá-lo para ver o que acontece”, ordenou a escudeira. As duas bombas que o abastecem foram ligadas. Enquanto ele era enchido, Santos descobriu que Dilma voltaria a Brasília. Carvalho pegou o telefone: “Pessoal, vai ser abortado. Dilma volta hoje para Brasília. Pixuleco retorna para São Paulo.” Ao ver o boneco pronto, abraçou cada costureira: “Vocês salvaram o Pixuleco. Quem agradece não sou eu. Quem é agradece é o Brasil.”
Celene Salomão Carvalho é filha de Célio com Marlene. Nasceu há 50 anos em São Lourenço, Minas Gerais, mas passou a infância e a adolescência no Rio de Janeiro – primeiro no Méier, depois em Ipanema e por fim na Barra da Tijuca. Hoje mora em São Paulo, onde aluga um flat pequeno, de quarto e sala, no bairro da Liberdade. Na sala, tem uma foto do papa Francisco e um livro do padre Juarez de Castro, responsável pela paróquia que ela frequenta. Vai à igreja todo domingo, “a não ser quando tem manifestação”.
Econômica, pede desconto em restaurante, hotel e posto de gasolina. Prefere abastecer o carro nos postos da bandeira Shell – quando é Shell, com o litro a 3,09 reais, se vê impelida a parar. Dirige bem, entende de carro. “Esse Nissan novo eu não tinha visto ainda, o Murano”, comentou certo dia. Abraça, decora nomes, tem um jeitão simpático de tia do interior. Abusa dos diminutivos: “turminha”, “quilometrinhos”, “joinha”. Também adora o termo “nesse ínterim”. É solteira, não tem filhos. A mãe, os dois irmãos e a irmã moram no Espírito Santo. O pai, de quem era próxima, faleceu há vinte anos.
Sua vida, pela quantidade de reviravoltas, tem um quê de Forrest Gump. Aos 15 anos ela viajou com o pai pelos países comunistas da Europa. “Foi meu presente de aniversário”, contou. “Meu pai tinha nascido pobre, trabalhado muito, comprado um hotel. Quis me mostrar que o comunismo não funcionava.” Visitaram Rússia, Bulgária, Alemanha Oriental, Romênia e Iugoslávia. “Fomos até numa reunião dos camaradas. Ele fingia ser comunista para participar”, disse. “Nos serviram bofe, que é pior que carne de terceira. Era carne que dávamos para cachorro. Aquela ideologia nunca me agradou.”
Finda a escola, resolveu estudar hotelaria. Estagiava no hotel Sheraton, no Rio, quando uma prima, recém-diagnosticada com câncer, pediu-lhe que a acompanhasse durante o tratamento nos Estados Unidos. “De todos na família, eu era quem melhor falava inglês”, explicou. “E nem todo mundo se dava com ela.” Aceitou viajar, sob a condição de ganhar, na volta, um bilhete de avião para a Noruega. “Eu tinha uma amiga norueguesa. Sempre quis morar lá.”
Em 1991 partiu, com a prima, para um período de três meses em Pittsburgh. Servia de tradutora, amiga, guia turística. No hospital, conquistou a simpatia dos médicos, que passaram a lhe pedir ajuda para lidar com outros pacientes brasileiros. Houve ciúmes, a promessa da passagem foi rompida. A prima voltou, a acompanhante ficou.
Ilegal, passou a trabalhar numa pizzaria. Lavava prato, preparava sanduíche e, vez por outra, entregava pizza em algum set de filmagem. “Pittsburgh é importante no cinema”, disse. “Vi a Jodie Foster fazendo O Silêncio dos Inocentes. Também entreguei num set que tinha o Bruce Willis.”
Os três meses viraram dez anos. Ganhou dinheiro, comprou casa. No apuro de conseguir um visto permanente, pagou 5 mil dólares para casar com um americano que não conhecia. Arrependeu-se, divorciou-se, continuou na ilegalidade. Em 2000, foi denunciada à imigração. “Tive medo de ser deportada. Fiz o que não devia ter feito”, contou. “Vendi tudo e voltei ao Brasil.” Seu coração continuou nos Estados Unidos: “No 11 de Setembro fiquei tão triste que fui comer no McDonald’s. Foi minha forma de prestar solidariedade.”
De volta, escolheu São Paulo. Gerenciou um restaurante nos Jardins, um flat na Bela Vista e um estacionamento em Pinheiros. “O que aparece eu faço”, explicou. “Adoro pegar troço caído e levantar.” Foi o caso do estacionamento, até então deficitário. Pintou golfinhos na parede e um polvo na guarita. Pediu a um amigo, mergulhador, que trouxesse conchas para presentear as crianças. O local foi rebatizado de Aquarium Park. “Ficou um show de estacionamento”, lembrou, orgulhosa. “O pessoal fazia fila para parar.”
Em 2005, após fundar uma associação de moradores, expulsar invasores de um prédio vizinho e ter a casa invadida, decidiu mudar de vida. Abriu uma loja de bijuteria em São Lourenço, onde nasceu. Talvez pelo interesse político – ou talvez por servir um café de cortesia –, acabou virando a ouvidora informal dos 50 mil moradores da cidade. “Eu era um para-raios de reclamações”, contou. “De noite, o pessoal deixava documento de denúncia por baixo da porta.” Criou um movimento, denunciou o prefeito. Seis anos depois, por insistência dos amigos, decidiu ela mesma se candidatar.
“O problema é que só tinha um partido disponível na cidade”, contou. O partido era o PSOL. “Fui a São Paulo conversar com o Plínio de Arruda Sampaio. Disse: ‘Plínio, eu não concordo em nada com o seu partido.’” Acabou convencida. “Fingi que era um partido novinho meu. Na minha ilusão, achava que poderia salvar a cidade.” Ficou em último lugar, com 370 votos. Depois, mais uma vez, voltou a São Paulo.
Um dia depois de o Pixuleco ser remendado, Celene Carvalho voltou ao galpão em Caxias do Sul. Encontrou Felipe Santos, Daniel Santos e Alexandre Lima de rodo na mão, limpando o boneco. Ouviu deles que a prefeitura, preocupada com a chuva, cancelara o desfile da Farroupilha. Na falta de público, Carvalho achou por bem rumar para casa.
Pediu aos rapazes que a ajudassem a guardar o Pixuleco. Começou pelas mãos e orelhas, que dobrou para dentro como se fossem mangas de camisa. Continuou dobrando, até que a largura da lona atingisse 1 metro (mantendo, no entanto, os 15 metros de comprimento). “Agora tem que enrolar igual a um charuto”, ordenou, apontando para uma das pontas. Reduzido a 1 metro quadrado, o boneco foi colocado no bagageiro do carro.
A escudeira deu partida no Honda Fit preto, que tem mais de dez adesivos (“Movimento Brasil”, “Fora CorruPTos”, “#ForaDilma”, “#LulaNuncaMais”). Ligou o GPS, que respondeu em italiano: Procedere due chilometri, poi tenere la destra. “Me distrai”, explicou. “Acho tão bonita a língua. E quando eu for para a Itália, vou saber as direções.”
A meu pedido, passou a falar de política. Sempre votou no PSDB, por ser o partido “com um histórico de gestão mais completo”. No ano passado usou o próprio dinheiro para apoiar Aécio Neves: “Larguei o trabalho para me dedicar à campanha. Pus uma caixa de som no carro e espalhei placas por várias favelas de São Paulo.” Foi quando passou a integrar o Movimento Brasil. “E quando o Aécio perdeu, o movimento continuou unido para combater o governo”, disse. Admira o vínculo do candidato com a família: “Ele respeita a mãe e as irmãs. Seria bom para o país do ponto de vista moral.”
Celene Carvalho lê os blogueiros da Veja, embora tenha perdido o gosto por Reinaldo Azevedo, “que entrou numa de falar mal do Sérgio Moro”. Não gosta do presidente da Câmara, Eduardo Cunha. “Por mim eu bateria muito no PMDB”, explicou. “Renan, Temer, Cunha, tudo farinha do mesmo saco.” Lamenta a falta de lideranças políticas. “Tirando Lava Jato, Ministério Público e Polícia Federal, nada funciona. Não vejo ninguém representando a nossa causa.”
Vez por outra, virava para trás e falava com o pacote no bagageiro: “Tudo bem aí, Pixuleco?” Explicou que o boneco já não carecia de mídia: “Ele é internacional. A missão agora é levantar o astral e energizar a população.” Em vez de ir às grandes cidades, acha que o boneco tem que visitar “locais com pessoas como nós, que lutam contra a corrupção”.
Quando é assim, o custo tende a ser compartilhado. Em Caxias do Sul, ganhou dos anfitriões a estadia no hotel, mas pagou combustível e pedágio. “A viagem já me custou uns 1 300 reais”, explicou, mostrando-se habituada a esse tipo de filantropia. “Se tem uma coisa que não me importo é de usar meu dinheiro. Quando encontrei o Aécio em Brasília, depois das eleições, ele me disse: ‘Nossa, ouvi falar demais de quanto você trabalhou por mim.’”
Para não ficar no vermelho, ela vende bonecos infláveis pequenos nas cidades por onde passa – em Presidente Prudente foram 222, a 20 reais cada. “De vez em quando também pinga uma tradução aqui e ali”, explica. Em outubro, vai gerenciar o café do flat onde mora: “Sou amiga do proprietário, eu o conheci em Pittsburgh, quando a mulher dele foi tratada.”
Paramos num posto em Santa Catarina (da Shell). Um frentista elogiou o carro adesivado. Carvalho perguntou se ele conhecia o boneco do ex-presidente. Conhecia. Ela abriu o porta-malas, mostrou o pacote e deu a ele uma nota falsa de 50 reais – ou 50 pixulecos – com a imagem de Lula e Dilma. O frentista se animou, chamou mais gente. “E assim eu vou testando a popularidade dele”, ela comentou, feliz.
Na madrugada de sexta para sábado, 26 de setembro, o Pixuleco voltou a deixar São Paulo. Tinha compromisso em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, para onde seguia após nova semana de reparos. Como a viagem era longa e tinha sido decidida em cima da hora, a guardiã do boneco contratou um motorista por 2 200 reais. Chegaria ao destino às duas da tarde de sábado.
“Olha o Pixuleco aí!”, gritou, ao descer do carro em frente ao Aquário do Pantanal. Cumprimentou cada uma das vinte pessoas que a aguardavam – integrantes dos movimentos Pátria Livre e Maçons BR. O Pátria Livre, que reúne vários médicos descontentes com o Programa Mais Médicos, havia desembolsado 3 mil reais para trazer o boneco. Quase todos vestiam preto.
Um homem usava um boné escrito “Eu <3 Brasil”. Uma mulher andava com a bandeira presa às costas, como se fosse uma espada. O motivo nacional também aparecia em camisas e capinhas de celular. No gradil que protegeria o Pixuleco – exigência de Carvalho para que o público hostil não se aproximasse – havia banners amarrados: “Não mexam com a Lava Jato”, “O Brasil não será uma nova Cuba”, “#LulaNuncaMais, aqui teve Pixuleco”.
O pacote foi tirado do carro. “Vamos abri-lo”, ordenou Carvalho. “Ele vai ficar de costas para o chão e de barriga para cima.” Os dois motores de ar foram acionados; o boneco, já estendido, começou a desabrochar. Um homem entoou um grito de guerra: “Fora petista, bolivariano! A roubalheira do PT está acabando.”
Carvalho passou a andar de um lado para o outro proferindo ordens: “Aqui tem que ter mais gente”, “Segura a corda que ele vai querer voar.” Verificava cada detalhe. “Esse ventinho está perigoso”, observou. “O gradil tem que ficar mais espalhado.” Em quinze minutos, o boneco pulou de 100 para 500 quilos, o apogeu de sua forma. Restava levantá-lo.
Um grupo de cinco pessoas o ergueu pela cabeça. Outro grupo puxou as cordas que pendem de seus ombros e orelhas. O boneco, ainda que bambo, ficou ereto. “Segura atrás”, gritou Carvalho. “Tem que estabilizar.” As cordas foram fincadas no gramado – e a lona sem vida agigantou-se, transformando-se num monstruoso Lula inflável.
“O Pixuleco está de pé!”, gritaram as pessoas. “Bravo! Esse é o imbatível!”, complementou Carvalho. Olhou-o com orgulho materno: “A gente trocou várias partes porque depois ele vai pro Nordeste. Parece até que as facadas ajudaram. O bicho está imponente.”
O gradil em torno do boneco foi fechado com cinco seguranças dentro. O movimento Pátria Livre armou uma barraquinha, onde vendia camisas, adesivos e infláveis. Uma integrante passou a colher assinaturas de quem passava. Pedia apoio às dez medidas apresentadas pelo Ministério Público Federal, em março, para o combate à corrupção. É assim toda vez que o Pixuleco é inflado. O projeto – que propõe a criminalização do caixa 2 e a pena de crime hediondo para o desvio de altos valores – deve ser levado ao Congresso quando chegar a 1,5 milhão de assinaturas.
Mais calma, Carvalho passou a circular pela área. Viu um rapaz apoiando as medidas: “Vamos assinar! Chegando em casa, com calma, no ar-condicionado, você lê cada uma delas.” Também viu um homem com a filha tentando tirar foto do Pixuleco: “Quer que eu tire uma aí, pai? Eu tiro!” Falava da Lava Jato a cada nova conversa.
Por volta de seis da tarde, cantou com o grupo, diante do boneco: “Olê, olê, olê, olê, estamos na rua pra derrubar o PT.” Logo depois, as bombas de ar que o alimentam foram desligadas. O Pixuleco esmoreceu lentamente, tombando de lado. Sua companheira andou até a região da nuca e abriu um fecho de velcro para ajudar a esvaziá-lo. Botou a cabeça lá dentro e gritou: “Pixuleco! Você vai preso!”