Decididamente, a Rússia não é mais a União Soviética. Insuperável na arte de manipular fotos, o regime de Stálin jamais teria praticado erro tão crasso como o do patriarca Cirilo I FOTO: MOSCOW PATRIARCHY
Na hora errada
Blogueiros flagram a Igreja Ortodoxa Russa num pecadilho que se destinava a proteger o chefe, mas acabou indignando os fiéis
Dorrit Harazim | Edição 68, Maio 2012
Em si, o pecado cometido por Cirilo I, patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, fundada há mais de um milênio, foi venial e poderia ter passado despercebido. Uma banal foto sua, em audiência com o ministro da Justiça da Rússia, ficara exposta no site oficial da instituição durante três anos sem levantar uma só sobrancelha no seu rebanho de cerca de 150 milhões de fiéis.
E talvez permanecesse anódina para sempre não fosse Sua Eminência – ou o servidor que levará a culpa por excesso de zelo – decidir operar um milagre: fazer sumir da foto o Breguet modelo Le Réveil du Tsar, de ouro branco, 38 rubis e preço em torno de 27 mil euros (ou 67 mil reais) que o primaz ostentava no pulso.
O pecado capital foi detectado por blogueiros russos no mês passado e cometido justamente no campo artístico que mais floresceu na União Soviética de Joseph Stálin: a manipulação de imagens. O luxuoso artefato da Maison Breguet foi lindamente “desaparecido” de cena. Mas, por uma imperícia que noutros tempos despacharia o infrator para a Sibéria, o reflexo do objeto na mesa polida permaneceu esquecido – algo imperdoável nesses tempos de Photoshop e similares.
“O episódio representa uma grave violação de nossa ética e será investigado até as últimas consequências”, prometeu o Patriarcado de Moscou quando a trapaça se tornou viral na blogosfera. Não tardou para que a culpa recaísse sobre uma jovem funcionária da assessoria de imprensa da Igreja. “Infelizmente”, informou o porta-voz de Cirilo I, “essa pessoa tomou a infeliz iniciativa por conta própria, sem consentimento de seus superiores.” E garantiu: “Claramente isto é um absurdo, um mal-entendido. Não há do que se envergonhar. Não queremos esconder nada.”
Na verdade, Sua Eminência quis esconder tudo. De início, declarou que jamais usara o Breguet com que fora presenteado – não lembrava quando nem por quem – e que qualquer foto sugerindo o contrário só poderia ser obra de algum manipulador de imagem, com o intuito de comprometê-lo. Quando a verdade veio à tona, a Igreja Russa achou prudente reconhecer a fraude, classificada como “erro técnico”. Apresentou também um pedido formal de desculpas e reintroduziu a foto original no site da entidade com o Breguet no devido lugar.
Tarde demais. A essa altura uma comunidade de blogueiros já se divertia criando múltiplas versões da imagem adulterada. Uma das mais apreciadas eliminou por completo o patriarca, deixando apenas o relógio, e seu incômodo reflexo, na reluzente mesa. Uma outra derreteu a imagem do Breguet sobre o conhecido quadro de Salvador Dalí, A Persistência da Memória.
A tentativa de camuflar a realidade reacendeu o desconforto dos russos ortodoxos com o apreço da alta cúpula do Patriarcado por objetos de luxo. Um dos bispos locados na cidade de Kazan, por exemplo, revelou-se apegado a uma BMW, uma Mercedes, três apartamentos e uma casa de campo. O próprio primaz, que seria dono de dois Cadillacs, havia se encalacrado quando vazaram elogios que fez a roupas de costureiros italianos e exaltações às qualidades de um Breguet. Nisso, não terá sido o primeiro. As peças que começaram a ser produzidas no ateliê do francês A.L. Breguet, no século XVIII, ornaram os coletes do rei Luís XVI, encantaram Maria Antonieta e inspiraram a literatura de Stendhal, Balzac e Victor Hugo. Winston Churchill e Arthur Rubinstein também foram apreciadores da marca.
É pouco provável que a admissão de culpa do Patriarcado abafe o debate em torno do papel atual da Igreja Ortodoxa na sociedade da Rússia. No decorrer das últimas décadas a relação da instituição com o Kremlin tem se estreitado e o endosso oficial dado por Cirilo I à candidatura de Vladimir Putin nas eleições de março passado não agradou a todos.
Os detratores do mais alto hierarca da Igreja Russa aproveitam o momento para desenterrar uma acusação surgida no início dos anos 90, pouco após a queda do regime comunista. Antes de se tornar primaz, Cirilo I teria mantido vínculos amigáveis com a KGB durante o período soviético. Atendia então pelo codinome de Mikhailov” (seu nome de batismo é Vladimir Mikhailovich Gundyayev).
Agora, com o caso Breguet, internautas pós-comunistas podem brincar à vontade com a arte da manipulação que moldou o seu passado. Um dos mais completos registros da história soviética sob o prisma da alteração de imagens está compilado no Newseum, de Washington. Intitulada The Commissar Vanishes (O Sumiço do Comissário, em tradução livre), uma exposição montada pelo pioneiro museu americano da notícia explorou o uso de falsidades fotográficas na URSS entre 1929 e 1953.
Pelo menos nesse ramo, a Igreja Ortodoxa Russa ainda tem bastante a aprender.
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