ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Na praia em Ramos
O último domingo de verão
Tiago Coelho | Edição 139, Abril 2018
Os três rapazes bebiam em longos goles, os olhos fechados, das latinhas de cerveja que tinham trazido numa caixa de isopor. Dois deles eram altos e magros. O terceiro era baixinho. Gargalhavam com as latinhas na mão, e conversavam. Perto dali, num quiosque, tocava um pagode romântico.
Outros hits se seguiram àquele, vindos da mesma caixa de som, no limite da faixa de areia. Música sertaneja, pagode, funk. Tudo no último volume. Os três se levantaram e caminharam juntos até a água morna e salgada do Piscinão de Ramos. A praia artificial fica ao lado do Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio. Foi inaugurada no verão de 2001 no mesmo local onde até os anos 70 se encontrava a balneável e disputada praia de Ramos, à margem da Baía de Guanabara.
Mesmo no ponto de maior profundidade, a água ali não cobre mais do que 1 metro e meio do corpo de um banhista em pé. Isso não impediu que os dois rapazes mais altos formassem uma plataforma com os braços entrecruzados, nem que o mais baixinho se apoiasse nessa espécie de trampolim humano, arriscando se lançar, em seguida, num salto mortal de costas. Fazia um barulho estrondoso ao bater na água rasa.
Enquanto eles brincavam lá no fundo, Charlene Silveira, uma mulher negra de 31 anos, levantou da cadeira de praia, ajeitou o biquíni e se deitou de bruços na areia molhada, à beiradinha d’água.
Um vendedor de quentinhas passou por ela. Já passava do meio-dia. Silveira pediu uma marmita de frango com farofa. Na areia do piscinão, ninguém come biscoito Globo ou bebe mate. Trazem o almoço de casa, em vasilhas de plástico ou potes de sorvete. A proteína pode variar: carne assada, churrasco ou frango. Mas o acompanhamento é quase sempre arroz, farofa e maionese. Quem não quer perder tempo cozinhando aproveita os vendedores locais, como Silveira fazia agora.
“Aqui é sempre assim”, comentou a moça, indicando com a cabeça a extensão do piscinão. “Tranquilo demais.”
Depois de uma temporada quente, mas chuvosa, o último domingo de verão no Rio, naquele 18 de março, não tinha decepcionado: no céu todo azul, o sol forte. O ambiente sem confusão ao redor era o que fazia Silveira escolher o Piscinão de Ramos. “Não tem arrastão, assalto, gente fumando maconha. Além do mais, não gosto de como algumas pessoas me olham torto nas praias da Zona Sul. Sei que muita gente sai daqui da Zona Norte para fazer besteira lá. Mas nem todo mundo, pô. Moro na Penha, mas tenho postura. Sei me portar bem em qualquer lugar.”
“Tia, dá uma olhada no nosso isopor?”, gritou da água o garoto mais baixo do trio de rapazes, erguendo o polegar para uma mulher negra na areia. Ela havia aberto a sua cadeira de praia perto de onde estavam as coisas deles. Elzinete de Souza, de 53 anos, retribuiu o aceno. Deu um gole curto em sua cerveja, envolta num suporte de isopor. Observava os meninos fazendo algazarra na água.
Desempregada, ela mora sozinha na favela Nova Holanda, uma das muitas que formam o Complexo da Maré. O filho único morreu em 2013, aos 27 anos. Era usuário de drogas. Já estava desaparecido fazia cinco dias quando Souza recebeu a notícia do assassinato dele – que ela credita a um ajuste de contas por dívidas do rapaz com os traficantes.
“Eu venho aqui para me distrair um pouco”, explicou. “Domingo, sozinha em casa, a gente enlouquece. Passa tanta coisa na cabeça. Não gosto.”
Continuou a beber a cerveja com goles curtos. Parecia que tomava aos pouquinhos para que durasse mais. Os rapazes voltaram para a areia.
O mais extrovertido disse o nome, que depois, pensando melhor, pediria para não ver publicado. Era mulato e tinha 19 anos. Outro, o mais alto, também pardo e magro, contou ter 20 anos. O mais novo e baixinho não disse nem a idade.
Um helicóptero de cor escura cruzou o céu, depois desapareceu. “Será que é ação da polícia na favela?”, perguntou o magricela. Souza deduziu que o helicóptero pudesse ser de alguma rede de televisão, provavelmente cobrindo a manifestação pela morte da vereadora Marielle Franco, marcada para as 13 horas na Maré, perto dali. Ela balançou a cabeça. “Que tragédia! Quantos tiros foram?”
“Mereceu!”, disse o rapaz falante, entrando na conversa. Afirmou que políticos tinham mesmo que morrer, e que não confiava em nenhum deles. De nada adiantou dizer que Marielle tinha sido criada na favela, como ele, e que defendia os direitos da população pobre. “Político só quer enriquecer”, continuou. “Ela não era rica, que eu saiba”, argumentou Souza com sua voz calma e baixa.
Quando indagados pela piauí sobre o que faziam da vida, os rapazes se entreolharam e riram. “A gente está desempregado”, disse o porta-voz do grupo. “Eu estou na escola”, completou o baixinho, em tom debochado.
“Vou mandar a real”, anunciou o falante, de repente, como se tivesse tomado uma decisão. “A gente está aqui no piscinão porque, se for para a Zona Sul, toma dura. Aí, fodeu. Todo mundo aqui tem passagem pela polícia.” Os outros dois se voltaram para ele com olhares de censura.
“O que foi?”, reagiu o rapaz. “Eu não tenho vergonha, não. Quando eu era menor, tive dezessete passagens pela polícia. Quem vai me dar emprego? Eu preciso sustentar minha filha, que é um bebê ainda, minha coroa. Aqui todo mundo trabalha para o tráfico. É nosso dia de folga.”
Elzinete de Souza ouvia a conversa e arregalava os olhos discretamente. Bebericava ainda mais devagar sua cerveja.
Segundo o jovem de 19 anos, cada um deles ganhava cerca de 3 mil reais por mês, empregados como “vapores”, vendedores de varejo da droga. Sustentava a mãe e a filha, ajudava a família. Sobrava nada, ou quase nada, no fim do mês. Se conseguisse juntar 10 mil reais, calculou, poderia montar uma lojinha na favela e se aposentar do tráfico. “O que eu quero mesmo é ficar assim, de boa. Um pagodinho, cerveja e praia. Nem faço questão de ir para a Zona Sul.”
“Eu preferia estar lá”, falou o baixinho, depois de muito tempo quieto. “Ir para lá para quê, menor?”, perguntou o mais velho. “Lá a praia tem onda”, respondeu o garoto. “Eu queria pegar um jacaré. Olha essa água calminha do piscinão. Não tem graça. Parece piscininha de criança.”
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