Mathematics without Borders
Nada como a incerteza
Um matemático decide arriscar
João Moreira Salles | Edição fields, Agosto 2014
Quando menino, Jacob Palis pensava que cientista era alguém que pensava muito e fumava cachimbo. Cachimbo, ele nunca chegou a fumar de verdade; já pensar muito, sim, ele é réu confesso, mas que ninguém ache que o hábito coíba a impulsividade. “Diga aí, Elon, quem é o melhor matemático estrangeiro que passou pelo Brasil nos últimos tempos?”, perguntou ele, em 1962, aos 22 anos, ao matemático Elon Lages Lima. “Steve Smale”, respondeu Lima, na época com 33, doutor por Chicago, onde conhecera Smale.
“Então é com ele que eu vou estudar.” E foi, o que estava longe de ser uma decisão sensata. Smale tinha fama de não dar muita atenção aos alunos de doutorado por se preocupar demasiado com política – não raro, pedia aos doutorandos que deixassem a matemática de lado para participar de ações contra a Guerra do Vietnã. Como se não bastasse, tivera pouquíssimos orientandos, de forma que Palis seria um dos primeiros, quase um experimentando. O conjunto da obra não foi o suficiente para que o brasileiro mudasse de ideia. Smale era o melhor, só isso importava.
Mudou-se para Berkeley, e já no meio do doutorado começou a publicar resultados importantes em parceria com seu orientador, um dos maiores matemáticos de seu tempo. O título de doutor veio em 1967.
Não demorou muito para que Berkeley o contratasse como professor-assistente. A vida parecia arranjada – a qualidade da matemática que vinha produzindo permitia-lhe sonhar com uma carreira acadêmica estável e bem-sucedida nos Estados Unidos. Tal idílio reconfortante veio abaixo assim que lhe caiu nas mãos o pequeno volume que o cientista americano James Watson escrevera sobre os Laboratórios Cavendish, na universidade inglesa de Cambridge, nos quais ele e o inglês Francis Crick descobriram a estrutura do DNA. Aquilo foi um descortino. A circulação de grandes cientistas, o ambiente de conversas e discussões – pensou que tudo aquilo podia ser reproduzido numa instituição brasileira dedicada à matemática, uma ciência adequadamente pobre que não exige mais do que ideias, entusiasmo, papel e caneta – itens baratos. Em meados de 1968, Palis pediu demissão de Berkeley e em agosto estava de volta ao Brasil.
“Voltar nos anos 60 estava longe de ser óbvio”, conta Marcelo Viana, ex-aluno de Palis. “Um colega de doutorado dele comentou que, enquanto todo mundo queria fazer carreira na pesquisa, o Jacob tinha uma visão de futuro muito mais abrangente, que incluía a ideia esquisita de voltar para o Brasil. Na época, o que havia por aqui era uma pequena comunidade, muito sofisticada no seu topo, mas era uma sofisticação de meia dúzia.”
Meia dúzia era o que bastava. Já estavam por aqui Manfredo do Carmo e Elon Lages Lima, cientistas que fizeram um percurso semelhante ao de Palis e que pensavam como ele, além de Mauricio Peixoto e Leopoldo Nachbin, fundadores do Impa. (Lélio Gama, o terceiro fundador, figura muito respeitada pelos colegas, àquela altura se dedicava mais à administração do que à pesquisa.)
Peixoto e Nachbin dividiam o tempo entre os Estados Unidos e o Brasil. “Mauricio fazia pesquisa em Brown; Leopoldo, em Rochester. Era uma questão de sobrevivência absolutamente legítima”, diz Palis. Embora compreensível, a dupla filiação levava a matemática brasileira a ser pouco mais do que a soma das pesquisas realizadas por cientistas fora do país. Palis era mais novo, podia arriscar. Decidiu não ter dois empregos, um lá, outro cá. “Nunca tive. Isso foi muito importante.”
O primeiro emprego foi na Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas logo percebeu que não se tratava do lugar adequado para construir o seu Cavendish. “A universidade era complexa. Não queria marcar passo, queria atropelar.” O Impa era mais leve, mais ágil. Foi para lá.
Jacob Palis desceu do ônibus com livros escorrendo pelas mãos. Naquele sábado, voltava para casa depois de um dia de estudos. No caminho, deu com José Pelúcio Ferreira, homem-chave no desenvolvimento da ciência no Brasil. Ferreira criara, dentro do BNDE (ainda sem o S), um fundo pioneiro para financiar programas de pós-graduação em universidades brasileiras, e era, naquele ano de 1970, presidente da Financiadora de Estudos e Projetos, Finep.
Em parte, Palis regressara ao Brasil estimulado pelo novo ambiente de auxílio à ciência criado pelo homem com quem acabara de topar. Por orientação de Ferreira, recursos públicos passaram a ser destinados aos melhores grupos de pesquisa, não às instituições de maior renome – “Instituições são pesadas, não devem ser premiadas pela sua história”, diria Palis anos mais tarde, num vídeo produzido pelo Impa. A ideia era música para o jovem matemático.
“De onde você está vindo assim num sábado, Jacob?”, perguntou Ferreira, de olho na pilha instável de livros. “Do Impa”, respondeu Palis. “E o que você tem feito por lá?”, quis saber Ferreira. “Sonhado com um encontro internacional de matemáticos”, respondeu Palis. E foi assim, dessa troca de frases numa esquina de Laranjeiras, que nasceu o Simpósio Internacional de Sistemas Dinâmicos de 1971, de importância capital para o desenvolvimento da matemática brasileira.
Financiado pela Finep – Ferreira estendeu ali mesmo, na rua, o apoio ao evento e ainda estimulou Palis a ser mais ambicioso – e organizado por Palis, Lima e Peixoto, o encontro, ocorrido em Salvador, reuniu o que havia de melhor na matemática mundial. Vieram cerca de sessenta convidados de fora, muitos deles figuras capitais em seus campos, medalhistas Fields e futuros medalhistas Fields. Alunos e jovens matemáticos brasileiros puderam trocar ideias com os príncipes da ciência, numa convivência que confirmava a convicção de Manfredo do Carmo de que a matemática é uma “ciência de tradição oral”. Nunca havia acontecido encontro tão destacado de matemáticos no país.
Construíam-se ali as bases de uma cultura científica cosmopolita e de ambição intelectual, sem a qual nenhum processo de fertilização é capaz de prosperar. Basta um contraexemplo: nos anos seguintes ao fim da Segunda Guerra Mundial, dois dos maiores matemáticos do século XX, os franceses Alexander Grothendiecke André Weil (irmão da pensadora Simone Weil), lecionaram por dois anos na Universidade de São Paulo. Ao partirem, não deixaram nem seguidores nem legado aparente. A terra não estava preparada. Faltava um solo propício capaz de acolher o que tinham a ensinar.
A partir do congresso de 1971, tudo se acelerou. “Eu mandava brasa”, lasca Palis, no tom divertido que parece ser o seu modo de interagir com o mundo. Dois de seus primeiros alunos, o mineiro Welington de Melo e o uruguaio Ricardo Mañé, completaram o doutorado em cerca de dois anos. “A rapidez não era em sacrifício da qualidade”, esclarece, “só não tinha burocracia.”
É outro ponto importante: não só a pesquisa matemática brasileira era agora realizada no Brasil, como alunos talentosos não precisavam mais encarar o estrangeiro como único destino para um doutorado de qualidade. Numa conversa de Palis com Melo e Viana gravada pelo Impa em 2011, Viana chamou a atenção para esse aspecto: “Em muitos países ainda há a ilusão de que o pesquisador pode fazer a sua matemática longe e com isso desenvolver o campo em seu próprio país. A meu ver, isso é um erro de proporções históricas. No Brasil essa é uma etapa vencida.”
Nos anos seguintes, Palis seria um orientador ativíssimo. A sua genealogia acadêmica inclui hoje 42 alunos e 141 descendentes – doutores formados por doutores que ele formou. Tamanho empenho pedagógico se deu a par de seu trabalho de pesquisador. Palis é um dos pesquisadores mais respeitados da matemática brasileira, com trabalhos que vêm apontando direções para o campo em que atua. Parte importante de sua pesquisa se debruça sobre as regiões mais caóticas de várias famílias de sistemas dinâmicos, lugares arredios ao conhecimento, identificando neles o que pode ser sabido.
À pesquisa e ao ensino, Palis acrescentou a ação institucional. Os Laboratórios Cavendish não surgiram a partir do éter: integravam um sistema complexo, em que as dimensões acadêmica, política e econômica se interpenetravam. Não haveria de ser diferente por aqui. Para que a ciência prosperasse, era necessário articular-se com o poder público e estabelecer vínculos com instituições fortes fora do país.
A partir da década de 80, Palis começou a ocupar cargos na burocracia internacional da matemática. Concomitantemente, assumia obrigações importantes por aqui. De 1993 a 2003, foi diretor do Impa. Em 1998, foi eleito presidente da União Internacional de Matemática (IMU), cargo máximo da organização que representa o conjunto dos matemáticos do mundo. Em , livro que conta a história da IMU, Palis é mencionado logo nos agradecimentos; no índice onomástico, seu nome tem doze remissões, mais do que a maioria dos outros cientistas citados ao longo de uma narrativa que começa na virada dos anos 1900. Desde 2007, preside a Academia Brasileira de Ciências.
Palis foi também protagonista da criação de estruturas correlatas à IMU, como por exemplo a União Matemática da América Latina e Caribe, Umalca, fundada em 1995 numa das salas do Impa. “Acredito muito em redes internacionais”, diz ele, “e desde que surgiu a Umalca a colaboração entre a América Latina e o Impa passou a fluir bem.” Mais que isso: como a presença do Impa dentro da Umalca é forte, o instituto brasileiro passou a ser o destino preferencial dos alunos mais brilhantes da região.
“Com o decorrer dos anos”, escreveu Elon Lages Lima, “os limites do Impa deixaram de ser os limites geográficos do Brasil.” De fato, hoje 50% dos alunos de mestrado e doutorado da instituição – o Impa não oferece cursos de graduação – são estrangeiros. Interagem com professores do quadro da instituição oriundos dos Estados Unidos, da Rússia, da Letônia, do Chile, além de se exporem a um fluxo constante de visitantes internacionais, tradição iniciada pelos fundadores no final da década de 50, quando Stephen Smale, Fields de 1966, e o francês René Thom, Fields de 1958, passaram temporadas no Impa.
Essa lenta construção de uma massa crítica de bons pesquisadores brasileiros, essa abertura para o mundo aliada à ambição de fazer parte dele, foi aos poucos chamando a atenção da matemática internacional para uma comunidade que não era central no mundo científico.
“As pessoas odeiam a incerteza”, declarou Palis numa entrevista a Jô Soares, “pois eu tenho a mania dela: eu acho a incerteza ótima.” Falava sobre a natureza de seu trabalho – o estudo de fenômenos cujo desfecho é incerto. Mas podia ser também uma receita de percurso. Todas as apostas que fez foram tiros no escuro. Deram certo, podiam não ter dado. Palis precisou de apenas duas palavras para responder sobre que conselho daria a quem estivesse começando na profissão: “Sejam ousados.”